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“Foi quando ficou mais forte a negritude em mim”

A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.

Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro… 

O universo das escolas particulares

Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.

Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.

Universidade e o olhar para a negritude

Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil. 

Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.

Ter entrado em contato com o Gapa foi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).

No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.

Pandemia e o boicote às descobertas

Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.

O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo. 

Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown. 

A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.

“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”

Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora. 

Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.

 Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor. 

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Cis Prta

Eu sentia falta da minha rotina

Eu sentia falta da minha rotina. Esse foi o maior impacto que senti. No começo, eu pensava que ter aquele tempo seria bom, que conseguiria ter mais calma. Mas à medida que o tempo passava, senti que fui perdendo o controle. Apesar de ter mais tempo, eu não conseguia produzir por conta da ansiedade e da pressão.

Tenho 28 anos, sou uma mulher preta, cotista e feminista. Nascida e criada na região do subúrbio ferroviário, numa família evangélica pentecostal, com 3 irmãs e um irmão.

Uma infância cheia de limites, e tolhida, principalmente em questões de liberdade e autoconhecimento corporal. Apesar disso, desde muito nova, eu era questionadora.

Uma ideia falsa e uma rotina verdadeira

Com 17 anos, quando tive a primeira oportunidade de fazer um curso que oferecia uma bolsa com um valor simbólico, por exemplo, com o dinheiro que recebi – comprei a minha primeira calça – peça de roupa proibida pela igreja e, consequentemente, pelos meus pais.

Era como um grito de liberdade.

Meus pais não receberam muito bem, me apontavam como revoltada, insubmissa. Minha irmã mais velha, dizia: “como você está tendo essa ousadia? Nem eu mesma tive essa coragem”.

Mas sempre que eu identificava um desejo meu, eu buscava caminhos para realizá-lo.

obrigada a frequentar, pois em diversas vezes, me sentia desconfortável.

Não sei como e nem com quem aprendi, mas eu desenvolvi esse senso de estabelecer os meus limites.

Conhecendo o mundo

Essa experiência de conhecer o mundo, saindo das vivências domésticas, e fora do bairro, me fez desabrochar. Após entrar na faculdade, com 18 anos, no bacharelado em Direito, paguei meu primeiro curso profissionalizante: um curso de maquiagem, que era algo que — também, segundo a igreja — eu não poderia usar.

Tornei-me maquiadora profissional, atuante na área da beleza e, mesmo com todas as questões envolvidas, meu pai foi na minha formatura. Essa área, inclusive, se tornou muto importante para mim, pois é como uma fonte de liberdade e expressão.

O curso de Direito é muito técnico, e a maquiagem é como uma manifestação mais completa de quem eu sou e do que eu sinto. Outro momento importante para mim, foi quando, aos 18 anos, após passar pela transição capilar, deixando o cabelo crescer, fiz o ‘big shop’, que elimina, por completo, a química do cabelo.

Na semana seguinte ao corte, era o casamento da minha irmã. Mais uma vez minha família me fez retaliações, diziam que eu queria aparecer, como se algo que é meu não fosse.

 Era o que meu pai dizia: “Você fez algo em seu cabelo, eu não o reconheço.”

 Aquilo me chateou, mas não me fez desistir dessa trajetória identitária.

Hoje em dia, conversamos sobre essas pautas, e a minha mãe, que antes não se reconhecia enquanto mulher preta — por questões de vivências pessoais e uma série de influências que se cruzam pelo caminho —, já se vê como tal.

A rotina de viver durante a pandemia

Recebi a pandemia num momento de reencontro com a universidade. Eu já iniciara os estudos numa faculdade privada, pelas cotas, mas por uma série de problemas estruturais — que a maioria de nós já conhece — precisou quebrar esse vínculo.

 Fiquei um tanto perdida, sem saber se queria voltar, se teria uma oportunidade para retornar, ou não. E, justamente, neste retorno, no momento de ressignificação, para mim, da vida e ambiente acadêmicos, recebemos a notícia de que as aulas presenciais estavam suspensas.

Eu tinha uma rotina enlouquecida, acordando às 5 da manhã, voltando para casa depois das 22h — estágio de manhã e à tarde, e faculdade à noite. Muitas vezes, estudando e me alimentando nos trajetos entre um compromisso e outro.

Exatamente quando a pandemia começou, eu estava começando a escrever o TCC. Como disse, era exatamente o meu processo de reencontro na universidade — fazendo novos amigos e criando laços de amizade.

Foi muito difícil me deparar com a obrigatoriedade do ensino à distância, que eu considero frio, e só piorou quando a minha orientadora, grávida, contraiu Covid-19.

A faculdade se isentou da responsabilidade de me disponibilizar outro orientador, e precisei fazer tudo praticamente sozinha.

Foi muito estranho…

Eu me sentava na frente do computador e não conseguia escrever absolutamente nada. E, depois de tudo, a minha defesa para a banca aconteceu por uma ligação de áudio no WhatsApp.

Foi estranho. Eu senti como se não tivesse entregado aquele trabalho.

As perdas mais próximas, de familiares, nesse período, não foram motivadas pelo coronavírus. Foi um momento exaustivo e preocupante. Toda a rotina de cuidados, lavar tudo, passar álcool em absolutamente em tudo, era uma preocupação que beirava o desespero.

Meus pais ficaram doentes, sendo que meu pai de uma forma mais agravada. Contudo, não sabemos até hoje se foi Covid-19 ou não, porque a orientação para ir ao médico era apenas se os sintomas chegassem em um nível muito sério, — caso contrário, os hospitais poderiam ser focos de contaminação.

Tivemos medo de perder alguém, mas isso não aconteceu. E toda essa movimentação pelo medo de perder pessoas, me fez perceber que eu que eu gostava de gente.

Eu percebi que gosto de pessoas, de estar com elas, de interagir e lidar.

Vi pouquíssimos amigos, e sinto muitas saudades. Anseio muito pelos reencontros, pelos abraços. Eu realmente espero que daqui para frente, nós consigamos nos reestabelecer mentalmente