A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.
Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro…
O universo das escolas particulares
Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.
Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.
Universidade e o olhar para a negritude
Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil.
Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.
Ter entrado em contato com o Gapafoi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).
No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.
Pandemia e o boicote às descobertas
Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.
O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo.
Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown.
A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.
“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”
Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora.
Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.
Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor.
Minha trajetória no Boi foi tão magnífica, para mim, pois pude contribuir a partir do que eu faço de melhor: dançar. E, ainda, fui reconhecida por isso! Mas além do lado pessoal, é muito bom saber que você está somando – não só no palco do curral, mas também na arena do Bumbódromo, onde acontece o Festival. Cada um de nós é só um pontinho, mas um pontinho que liga os outros e que faz parte de todo o espetáculo.
Meu nome é Fernanda, moro em Parintins (AM) e faço parte do Corpo de Dança Caprichoso, conhecido CDC. Estou à frente do CDC como coordenadora, a convite de Érick Beltrão, e, mesmo ajudando nos bastidores, eu continuo como dançarina, fazendo o que eu gosto.
Comecei a minha trajetória aqui — se eu não estiver enganada — em 2008, através de uma pessoa conhecida, o Érik, que me apresentou o projeto. Recebi o convite, fui muito bem recebida e comecei a frequentar. Antes disso, tentara fazer parte de outro grupo, que não deu certo e, foi então, que o Érik me convidou para fazer parte daquele que, até então, se chamava “Troup Jovem”. De lá para cá, acabei acompanhando todo o processo de mudanças de nomes, até chegarmos ao CDC.
Do curral para a vida
Fiz muitos amigos durante meu tempo no grupo que não dá para dizer serem só “de dentro do curral”, mas para minha vida todinha, que levo para a vida toda. Até meu casamento veio de lá: me casei com um dançarino do Boi, estamos juntos há 10 anos e temos um filho! A Dança do Boi que fazíamos no CDC nos proporcionou muitas viagens para nos apresentarmos e foram nesses momentos que pudemos nos conhecer melhor.
Como em qualquer lugar, a gente tem altos e baixos, alegrias e tristezas. Mas minha trajetória aqui me deixa marcas até hoje, lembro de toda evolução (minha e do grupo) desde o início — tanto na dança, quanto na roupa, quanto na organização. É tão gostoso participar de um grupo, poder vê-lo evoluir e crescer.
A partida dos amigos do Boi
Em todo esse tempo, dói um pouquinho ver pessoas indo embora após quase 15 anos convivendo com elas. Muitos precisam prosseguir a vida, procurar o que é melhor para si — os seus estudos, um trabalho, uma moradia em outra cidade — e, com isso, ter que parar de dançar. Mesmo que doa e cause emoção lembrar dessas pessoas queridas, é a maior felicidade vê-las crescer. Mas há, também, amigos queridos que partiram, que infelizmente nunca mais vão voltar, porque estão junto do Pai.
Mesmo antes da pandemia a gente já perdeu amigos que faziam parte do Boi, fizeram sua história e partiram. Mas, com certeza, serão lembrados — tanto por sua dança quanto por seu carisma e pelas pessoas maravilhosas que eram.
A surpresa da Pandemia
No início de 2020, nós tivemos a grande surpresa: o início da pandemia. Eu, particularmente, nem conhecia esse termo. Conhecia epidemia, mas pandemia não. Foi um impacto muito grande: aquilo que no começo duraria 15 dias, logo saltou para 30, depois 6 meses, um ano… Foi uma coisa muito assustadora, muito impactante. O grupo vinha se preparando, praticamente todos os dias, coreografias novas, apresentações de toadas, montagem pAra lançamento, ensaios da Marujada.
Praticamente todos os dias nós estávamos aqui, na expectativa desse ano de 2020, preparando um ano de apresentações e, de repente, tivemos que parar, sem saber o que esperar o que viria dali para frente. Junto com isso, do nada, começamos a perder muitas pessoas. O desespero foi grande, de você querer se cuidar, querer cuidar do próximo, ao mesmo tempo querer continuar dançando, querer sair, mas vivendo uma vida reclusa, que eu acredito que muita gente não vivia.
Foi um impacto muito grande para o grupo, porque são pessoas em sua maioria jovens, ativas, que querem estar em movimento, estar fora de casa, ter o seu momento de diversão. E aqui dentro, para nós, o grupo também se tornava isso. Tanto ter a responsabilidade como dançarino, de cumprir com nossas obrigações, fazer o seu trabalho, mas, também, era nossa diversão, nosso momento de distração. Então, foi muito assustador, particularmente para mim, foi muito assustador.
Aperto financeiro e outras formas de união
Algo que também abalou muito o grupo foi a parte financeira, porque muita gente ficou sem trabalhar. E, para a nossa tristeza, a dança não é considerada um trabalho essencial para a sociedade e, por isso, não pudemos exercer nosso trabalho, porque não era essencial. Muita gente acabou ficando sem dinheiro.
Infelizmente, vimos amigos perderem seus familiares, perdemos amigos e, mesmo assim, nós estávamos juntos, apoiando um ao outro. E foi aí que o grupo se uniu e que começamos a ver outros meios de continuar interagindo.
Começamos a ajudar as pessoas do grupo que mais precisavam com cestas básicas e outros meios que pudessem ajudar, de alguma forma, a suprir aquele momento que estava sendo difícil financeiramente. O mais legal que surgiu, para mim, foram os vídeos. Fizemos e compartilhamos vários vídeos na internet em que nós dançávamos, desafiando e convidando amigos para a brincadeira. Isso puxou pessoas de outros lugares, com todo mundo mostrando um pouquinho do que gostava de fazer.
“Vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama”
No meio de tudo isso, uma nova notícia chegou como o maior impacto: “não tem festival”. “Cara, como é que não vai ter festival?” Algo que todos da cidade sempre viveram não vai existir? Minha vida todinha, em todos meus 33 anos, fui ao Festival e, naquele momento, não poderíamos tê-lo.
No mês de junho, a cidade está sempre fervendo, fervilhando, agitada, animada, na expectativa do festival. Naquela hora, não: você via uma cidade totalmente calma, parada, porque aqui era obrigatório aqui ficar em casa. Mas o legal é que o CDC deu um jeito de fazer a Festa do Boi: pelas lives. Conseguimos trazer um pouquinho para o público, até mesmo pra gente – eu participei praticamente de todas as lives – essa oportunidade de dançar
Foi gratificante poder dançar um pouquinho, nem que fosse bem pouco. Mas isso levava para “torcedor Caprichoso” aquela energia em que você fala: “Cara, vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama. Não se esqueça que o Boi está aqui: ele precisa de você, você é o nosso torcedor, nosso combustível. Então a gente vai fazer tudo por vocês, para voltar”.
E eu pude estar ali, eu pude sentir essa energia, pude passar essa energia para o público, e a certeza de que tudo passaria e voltaria ao normal.
Segunda onda e a perda de pessoas queridas
Depois que passaram todas as lives, tivemos, infelizmente, a segunda onda. E aí que me pegou. Foi nesse momento que eu realmente perdi pessoas muito queridas. Amigos da minha vida, da faculdade, do Boi, do grupo que eu fazia parte. Um deles foi meu padrinho de formatura… Infelizmente, eu vou me formar e ele não vai estar aqui. Mas levo meus amigos sempre comigo: na vontade de viver, de seguir em frente, e no desejo de dizer “cara, ficou tudo bem, eu consegui, eu cheguei até aqui”.
Você agradece pela sua vida, agradece também pela vida dos seus familiares que estão bem. Eu agradeço porque eu tive… Não sei se foi sorte, ou se eu tive benção de não pegar em nenhum momento essa doença, esse vírus. Mas, ao mesmo tempo, você se sente egoísta de agradecer pela sua vida e saber que teve pessoas do seu lado que praticamente tiveram suas famílias dizimadas.
“Está passando e a gente está conseguindo”
Mas, a vida continua, a gente precisa seguir em frente, mostrar pra essas pessoas: “olha a gente conseguiu, por você, eu vou seguir em frente, por vocês a gente vai continuar”.
Quando veio a vacina, a gente se sentiu muito mais seguro. Os casos, graças a Deus e graças à vacina, diminuíram na cidade. Agora, estamos podendo brincar de Boi. Olha que festa linda que foi feita agora, que o Boi nos proporcionou! Ver pessoas de fora fazendo de tudo para vir, para participar, sentir a energia e, por fim, dizer assim: “cara, tá passando e a gente tá conseguindo”. Foi magnífico.
Agora temos 2022 pela frente. A minha expectativa, eu digo, é: vai bombar! Só pela grandiosa festa que foi feita, pela sede que as pessoas de brincar de boi bumbá, de estar na nossa terra, entrar na arena, sentir a energia de todo mundo e ver o grande espetáculo. Não é pequeno! Pode ter certeza.
O Boi e as ‘estrelas azuladas’
As pessoas estão com uma sede imensa de gritar “eu tô aqui”, de cantar “é o meu Boi, eu vim ver o meu Boi”. Tenho certeza que em 2022 o Festival será magnifico. E eu tenho certeza que o meu Boi vem com um espetáculo imenso, imenso mesmo. Mas, colocando sempre em evidência, homenageando e jamais nos esquecendo das estrelas azuladas que, infelizmente, essa doença levou.
Cada um deixou a sua história, por pouco tempo, por muito tempo que viveu, mas deixou sua história, seu legado. E jamais, eu tenho certeza, que jamais o nosso Boi, a nossa nação azulada, se esquecerá de cada um deles. E eu me sinto muito grata de fazer parte dessa história azulada. Posso chegar aqui e dizer “Fernanda, você é parte dessa história azulada”. E digo mais: “é muito gratificante chegar aqui e poder contar um pouquinho da minha história”.
Então, para 2022, vamos nos cuidar, vamos nos preparar. Infelizmente o vírus ainda está aí. Não como estava antes, que nos assustou, nos devastou. Mas vamos estar aí nos prevenindo, nos cuidando. E vamos nos divertir, porque o que mais queremos é curtir o Festival, o melhor que a nossa cidade pode nos oferecer.
Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.
Tenho 60 anos e acredito que envelhecer é um privilégio, principalmente para a mulher trans.
O nome que escolhi é um fragmento do meu nome de registro — bíblico — um apelido pelo qual já me chamavam. Venho de uma família de 12 irmãos, cristãos adventistas do sétimo dia. Nasci em Mundo Novo e fui criada em João Dourado, uma vila.
Descobri muito cedo que era diversa, não porque eu pensava ser, mas porque minha mãe dizia que eu era diferente, meus irmãos e irmãs diziam que eu era diferente, a igreja dizia que eu era diferente.
Eu não sabia o que era “ser diferente”
Eu só sabia que não gostava das mesmas coisas que eles, por isso resolvi silenciar, por não suportar ser apontada como culpada por tudo, justamente pelas minhas diferenças. .
Aos 14 anos, cursando o segundo grau, eu cantava e era ensinada a tocar instrumento pela esposa do pastor, que me adorava. Todo mundo dizia ao meu pai que eu era uma criança maravilhosa, mas ele não conseguia aceitar a minha natureza tão distinta dos meus outros irmãos.
Eu não gostava de jogar bola, ir para a roça e tomar banho no açude.
Me identificava muito mais com as minhas irmãs. Eu ficava muito revoltada, questionando o porquê de me chamarem “veado”, “salta moita”, — visto que eu nem sequer tinha experiências sexuais ou manifestava desejos.
Sonhava e imaginava que minha vida seria transformada de uma hora para outra, mas não sabia como.
Tinha muito apreço pela igreja. Ainda aos 14 anos, perdi o meu pai. Foi quando minha mãe entendeu que seria melhor para eu morar com as minhas irmãs em Salvador, onde elas já estudavam.
A passagem por Salvador e Rio
Passava um tempo com cada uma delas. Elas não eram perversas comigo, mas havia, sim, uma repressão, que hoje eu consigo entender com mais facilidade. Aos 16 anos, fui ajudante de cabeleireira e, aos 19, concluí o segundo grau.
Estudando à noite, eu via mais meninos gays, com liberdade de serem quem eram. Fiz amizades e, nessa fase, eu me entendi enquanto homem gay, porque eram as referências mais fortes que se tinha. Ainda não sabia o que era “trans”.
Sabia que gostava de homens e que não me identificava com as vivências mais comuns. Tive meu primeiro relacionamento gay ótimo. Mas melhor ainda foi ter descoberto os palcos.
Me tornei transformista, comecei a fazer shows na noite e ter muito sucesso em Salvador. Fui eleita Miss Beleza Gay, Miss Universo, e aos 22 fui para o Rio de Janeiro, me apresentando.
Eu representava o Nordeste, interpretando Sarah Jane com o sucesso “A Roda”. Numa noite, no Teatro Brigitte Blair, conheci Claudia Celeste — a primeira travesti a atuar como atriz em novelas brasileiras — que se tornou a minha referência.
Quando a vi, entendi ser aquela forma feminina que eu queria assumir. Encontrei-a no camarim, conversamos, ela me convidou para a sua casa e me ensinou todos os próximos passos. Entendi que não seria fácil incorporar o universo trans, mas estava decidida. Liguei para Salvador, para me desligar do salão onde trabalhava como ajudante, e no dia seguinte, já comecei a tomar os hormônios. Fiquei três anos no Rio sem ver a minha família. Já estava transformada, gloriosa. Os homens já paravam os carros — e é importante falar, nesse ponto, que não são as mulheres trans que buscam pela prostituição, mas a prostituição que nos chama.
“Somos empurradas para essa vida.”
Imagine: eu trabalhava no salão ganhando 250 reais por semana, o valor de um programa ou até mais.
Nós, transexuais, somos essência.
Nós apenas pomos para fora o que existe dentro. Por isso, arriscamos pôr silicone e fazer cirurgias — nós nos expomos à morte numa mesa de cirurgia para conseguirmos expressar a nossa feminilidade.
Passados os três anos, voltei para Salvador para visitar as minhas irmãs. Imaginei que, por estarem na universidade, entenderiam meu processo de mudança. Ao adentrar a casa, me encontrei logo com dois dos meus irmãos. Foi um momento violentíssimo. Para eles, foi como se eu tivesse virado um monstro.
Toda a minha infância veio à tona. Aquilo me deixou destruída, decaí muito. Dali, busquei apoio com amigas, pois acreditava que não conseguiria bancar a transição para a minha família. Apesar da dor e sofrimento, eu não conseguia sentir ódio.
Não voltei mais para o Rio e quase cheguei a desistir por conta do desânimo em que eu me encontrava.
Mas eu já estava tão bonitinha — porque nós ficamos bonitinhas no início; linda, nós ficamos depois que entende a vida e nossa alma.
Retomei os shows em Salvador e tive sucesso. Representava Gretchen, justamente porque os taxistas mexiam comigo e me chamavam assim por causa do excesso de silicone e harmonização. Aproveitei para ganhar dinheiro fazendo programas com esses mesmos homens. Um tempo depois, uma amiga me disse que deveria ser “puta” na Europa.
Apesar de estar em um relacionamento em que eu amava muito o meu companheiro, decidi abrir mão e me aventurar – principalmente porque eu vivia insatisfeita com o sexo.
A genitália me causava um incômodo que eu ainda não sabia como chamar — hoje, sei: disforia.
A estadia na Itália e o câncer
No fim desse percurso, descobri um câncer no intestino. Veio o pânico. Com toda a vivência cristã que tive desde a minha criação, pensava que todos estavam certos — que era um “castigo de Deus devido ao pecado”.
Foi muito difícil, porque eu sempre acreditei em Deus. Nunca mudei de religião. Eu me considero adventista do sétimo dia, porque essa fé me bastou.
E, apesar de renunciarem a nós, a família é a nossa base. Conversei muito com Deus. Iniciei o tratamento, usei bolsa de colostomia por quase três anos e consegui vencer o câncer. Gastara metade das economias que havia feito — inclusive, para a cirurgia de resignação.
Nessa etapa, minha irmã disse ter entendido o que eu queria e vendeu o próprio apartamento – passando a morar junto comigo – para que eu pudesse ir para a Tailândia realizar o meu sonho.
Eu ressurgi das cinzas. No meu retorno aos palcos, ainda fragilizada, bem mais magra, ouvi alguém da plateia fazer um comentário infeliz que — após me posicionar — me fez abandonar os palcos. Aquilo me magoou ainda mais porque o ambiente era uma casa gay, e eu esperava — e desejava — ser acolhida e respeitada naquele lugar.
Mais uma vez, encontrei apoio e suporte nas amigas. Sentia haver perdido um pouco da estrutura para enfrentar a vida. E um câncer também nos fragiliza.
Mas a cirurgia foi a gota d’água de felicidade para mim. Eu me sentia em paz comigo, até mesmo sexualmente. Encontrei uma pessoa, aproveitei a nossa relação e logo em seguida descobri outro câncer, agora na tireoide.
Dessa vez, foi menos intenso. Até porque, por algum motivo, o médico disse que as minhas cordas vocais estavam limpas e que já não era mais um câncer. Retirei a tireoide e segui trabalhando como cabeleireira.
O início da pandemia
Já se passaram 15 anos desde que retornei ao Brasil. Durante a pandemia de Covid-19, por incrível que pareça, eu me senti segura. Além de lidar com o vírus, era extremamente importante pensar sobre o impacto financeiro. Mas por ser autônoma e ter muitos amigos, consegui me manter bem.
Muitas pessoas indicavam o meu trabalho como profissional de beleza: “Dicca, vem fazer uma escova”, “Dicca, vem me maquiar”, e, claro, eu ia e fazia preços mais baratos.
Durante a pandemia eu perdi duas irmãs, mas não por Covid-19.
Uma, logo no início, que estava lutando contra um câncer, e outra por um infarto fulminante. Com a perda de minhas irmãs, perdi também o equilíbrio. Porque a família é a base da gente – isso é uma verdade.
Por mais que eles tenham nos renunciados, nós nutrimos amor, de alguma forma, por essas pessoas. Por isso dói tanto. A irmã que ficou comigo, dependia muito de mim. Eu fiquei muito para baixo.
A vulnerabilidade causada pela pandemia
Foi quando fui salva por minhas amizades outra vez. Fomos nos apoiando e encontrando formas de ajudar umas as outras. E eu não tenho vergonha de pedir. Chegou um momento em que eu não tinha dinheiro nenhum.
Estava morando em um apartamento próprio, mas precisava pagar condomínio, contas de luz; precisava do básico: tomar banho, escovar os dentes, tomar os remédios para o estômago, tireoide e pressão.
Cabeleireira, com 60 anos, nunca tive carteira assinada e não recebo nenhuma assistência de serviço social.
Sempre fui militante, porque toda trans é militante. Quando ela dá a cara para a sociedade, ela está militando. Eu só não cheguei ao extremo de uma tristeza profunda — para não dizer “depressão”, pois não gosto dessa palavra — devido às pessoas que conheciam a minha história e me acolheram.
Buscamos por esperança e pelo fim da pandemia
O fim da pandemia não é tão esperançoso. Os contextos e dificuldades só se agravaram. Tenho muitas limitações. Apesar de tudo, eu sou uma pessoa feliz. Meu sonho é conseguir uma aposentadoria ou auxílio que me possibilite descansar, sabendo que terei, pelo menos, o básico para me manter.
Eu não tenho mais condição de ir para as ruas. Não condições físicas, pois, mesmo com a minha idade, ainda tenho um corpo bonito e poderia colocar um vestidinho preto para me prostituir. Isso ainda acontece vez ou outra. Mas não tenho mais estrutura para isso.
Nós realmente precisamos aprender a amar e valorizar os amigos.
Mais do que com palavras. Com atitudes reais. Estender a mão antes de alguém “cair no buraco”.
Na pandemia, eu aprendi a falar a palavra “amor”, mas, muito mais, viver ela. Amar é um sentimento nobre.
Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.
Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.
Meu histórico de vida é de muita luta.
Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.
A luta de uma travesti por respeito
Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.
Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.
Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.
Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.
Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.
Processos de se reconhecer como travesti
Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.
Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.
Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.
Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.
Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.
Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.
Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.
Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.
Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.
Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.
Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia
Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.
Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.
O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.
Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.
Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.
Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.
A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas
Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.
Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.
As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.
Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.
Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.
A batalha das travestis por respeito e dignidade
Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.
Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.
Podemos tudo!
Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.
No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .
Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.
Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.
Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.
Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.
O primeiro ano de Covid-19
Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.
Estive, inclusive, adoentada nesse período.
Encontramos uma nova moradia.
Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.
Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.
Não desabou!
Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.
HIV e negligência em meio à Covid-19
Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.
No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.
Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.
Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.
Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.
“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”
HIV, Covid e outras questões…
O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.
Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.
Chamo-me Marcia Moreira e gosto de ser chamada assim. Tenho 42 anos. Vivo com HIV desde 1999. Descobri durante a gravidez do meu segundo filho. Quando eu tive o diagnóstico, o meu primogênito já tinha 3 anos. Eu tinha 23 anos, ainda morava com meus pais e trabalhava em uma grande rede de supermercados.
Estava há 5 anos na empresa e trabalhava bastante — nunca tirei férias. Quando recebi o resultado do exame, eu nem sequer fazia ideia do que era o HIV. Eu só “sabia” que qualquer pessoa poderia se infectar, menos eu.
Tive um namorado, aos 17 anos, com quem perdi a minha virgindade e de quem eu adquiri o vírus. Ele era usuário de drogas injetáveis e sempre dizia que não faria o teste para HIV, porque ele sabia das altas possibilidades de ter, — não só pelo uso de drogas, mas por práticas sexuais deliberadas — e temia por isso.
Vivendo com HIV
Quando descobri minha sorologia, não entrei em contato com ele, pois fui informada de que ele não morava mais em Salvador. Depois dele, só mantive relações com o pai do meu primeiro filho, a quem procurei — tanto ele quanto o meu primogênito, são HIV negativo.
Busquei, também, o pai do meu segundo filho, que algumas pessoas afirmam ser positivo, no entanto, ele nunca me informou o seu diagnóstico. Meu filho mais novo, também é HIV negativo. Ao conversar com um médico, que acompanhava o meu tratamento, em dois dias ele conseguiu pôr muita informação em minha cabeça, e isso mudou toda a minha perspectiva.
Eu e meu filho fomos como um objeto de estudo para o Hospital das Clínicas, porque os processos ainda eram muito novos. É necessário falar sobre a gravidez de mulheres soropositivas, principalmente porque a desinformação faz parecer impossível. Eu mesma, fui induzida a fazer uma laqueadura logo um mês após o parto.
Uma violência que naquela época eu nem sequer percebia ou entendia. Outro momento difícil fazer e refazer os exames. Com a entrega dos resultados, o hospital inteiro olhava-me com estranheza, como uma plateia, assistindo-me receber o diagnóstico — que era o primeiro dado pelo médico a uma mulher.
Liguei para minha mãe e meu irmão me buscarem. Chorei muito, desmaiei. Ali eu constatei a quão problemática e falha era a questão do sigilo. Meus exames estavam bons, inclusive a carga viral estava controlada. Eu estava — e permaneci — muito deprimida.
O estigma sobre o HIV
Esperaram eu terminar o tempo de estabilidade, e, como eu colocara muitos atestados do CEDAP — que na época se chamava CREAIDS — sofri o estigma. A propósito, a mudança de nome para CEDAP foi uma luta do Gapa, no sentido de assegurar às pessoas assistência às vítimas de discriminação em sigilo, — garantido por lei — porque todo mundo que acessava aquele serviço era estigmatizado como alguém que tinha AIDS — ainda que não tivesse.
O momento em que eu fui demitida foi um dos piores da minha vida. Eu senti que, por ter HIV, eu era inútil.
Aquilo me fez tão mal. Fiquei mais deprimida do que qualquer coisa.
Eu tinha muitas expectativas, mas aquilo me frustrou. Até que, numa visita ao ginecologista, conheci uma mulher cujo filho nascera no mesmo dia que o meu, e que também era HIV positivo.
Ele me falou que o Gapa operava uma brinquedoteca no Centro Médico João das Botas. Lá, conheci um grupo de pessoas que vivem com HIV. Aquilo me cativou.
Fez-se abrir um novo mundo para mim. Ao conversar com a coordenadora, Gladys, em menos de duas horas ela me fez entender que eu era alguém que podia viver dignamente. Passei a integrar o Gapa, primeiro, pela brinquedoteca, e depois, como secretária.
Pandemia, HIV e vulnerabilidade social
À época, estávamos desenvolvendo um novo projeto de pesquisa quando, começamos a ter informações sobre o início da pandemia, ainda fora do país.
E a pandemia chegou abruptamente. Já trabalhávamos com PVH, que estavam com o benefício cessado, devido à gestão do atual presidente, que implicou em diversos cortes.
Atendemos diversas pessoas em crises financeiras, que não tinham alimento em casa. Iniciamos as campanhas para ajudar essas famílias, arrecadando principalmente comida.
Este trabalho era realizado, mas as doações que conseguimos nesses tempos, já não eram como antes — vinham em menor quantidade. Houve fases muito difíceis. Até que, recebemos a notícia do falecimento de uma pessoa muito querida.
Diversos amigos foram morrendo, e nem todos eram por Covid-19, o que também nos impactou muito. Um de nossos coordenadores, uma pessoa muito saudável, adoecera drasticamente, a ponto de ficar em coma. Nós não entendíamos e pensávamos: “se ele ficou dessa maneira, então, nós vamos morrer”. Isso nos causou pânico.
Ele conseguiu se recuperar, mas ainda com algumas limitações. De um dia para o outro, no trabalho, a ordem era: “vão para a casa agora, vocês não podem ficar aqui”, — eu perguntava — “como assim?”.
A ordem se repetia
Retornei à casa e passei 1 anos e 3 meses sem sair. Passamos por diversos acontecimentos.
As pessoas ao redor tentavam me proteger e pediam para eu tomar cuidado. Fiquei administrando doações de alimentos entre pessoas e seguindo à risca os protocolos de higienização.
Durante a quarentena, comecei morando numa casa que meu pai me deu, uma ‘kitnet’. Estava morando lá com o meu marido. Meu filho mais velho já é casado e tem um filho. Já o mais novo, estava morando com meus pais e minha irmã. Como minha irmã engravidou — pariu em janeiro — meu filho ajudava nos cuidados com os meus pais, mais idosos.
Já no mês de abril, minha mãe me deu uma casa com dois quartos, e, com a casa, meu filho veio morar comigo também. Ele se mudou já com a namorada, que passava mais tempo lá em casa do que na casa dela.
Após comprar uma moto, ele sofreu uma queda e machucou o punho. Agora, eu tinha mais essa demanda além do trabalho. Sendo que eu já achava ruim trabalhar em casa, com tantas reuniões e a dificuldade de concentração.
“Eu cozinhei péssimas comidas”.
Comi muita besteira, muito ‘fastfood’. Quase sempre inventavam algo, não tínhamos hora para dormir com tantas lives e bebidas que nunca terminavam — principalmente aos finais de semana.
Minhas tias me veem como uma potência. Destacam o meu otimismo e a forma como lido com a vida. Achavam que eu ficaria “apagada” depois de tudo que enfrentei, mas superei as inúmeras dificuldades.
Quando aconteceu o lockdown, meu filho e minha nora se infectaram com Covid-19. Corri todos os riscos possíveis e imagináveis cuidando deles. Eu fiquei muito tensa, porque nossa maior preocupação era com os meus pais.
Nós falávamos demais por ligações de vídeo e áudio. Chorávamos e, depois, chegávamos a evitar as ligações de tão melancólicas que se tornaram.
Todos muito sensíveis.
Seguia dizendo que iria dar tudo certo. E após todo esse tormento, cheguei a ganhar mais uma neta — do meu caçula.
Eu vi o parto dela, mas mantivemos à distância e os cuidados necessários. Isso foi uma felicidade — um nascimento em meio à tantas mortes. Eu sinto uma desaceleração e uma sensação de alívio, principalmente porque, após tanta agonia, eu tive um episódio de alta pressão arterial — marcando 23 por 12.
Fui internada e descobri um pseudo tumor na cabeça, — uma pressão intracraniana que me causa fortes dores de cabeça.
Uma Mulher-Maravilha
Sinto os sintomas de alguém que tem um tumor, porém, sem o tumor. Estou passando pelo processo de diagnóstico e tratamento. Por fim, esse período todo me fez perceber e entender que eu sou uma mulher muito forte — sou quase uma Mulher-Maravilha.
Depois de tudo que eu passei até hoje, eu posso afirmar que sou, sim, uma mulher forte.
E eu espero que as pessoas consigam se curar. Todos nós, sobreviventes, estamos tentando nos curar de algo, de alguma dor.
Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.
Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.
Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.
Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.
A fuga para o Brasil
Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.
Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.
Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.
Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.
Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.
Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.
Uma mulher corajosa
Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.
Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.
Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.
Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.
Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.
A rotina antes da pandemia
Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.
O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.
Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.
Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.
Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.
A pandemia desnudou os abismos sociais
Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.
Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.
É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.
Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.
A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.
Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.
Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.
O pavor da pandemia
Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.
Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.
Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.
Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.
A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.
Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.
Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.
Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.
Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.
Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.
Uma infância de relacionamentos difíceis
Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.
Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.
Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.
Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.
Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.
A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.
A escola e a descoberta da sorologia
Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.
Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.
Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.
Deu positivo.
Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.
O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.
Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.
Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.
O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.
Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.
Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.
Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.
Desgastes emocionais
Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.
Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.
Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.
Não conseguiria abraçar o mundo.
Relacionamentos tóxicos
Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.
Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.
Estive preso em um relacionamento abusivo
Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.
A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.
Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.
Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.
Desenvolvi insônia.
Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.
Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.
Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.
Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.
Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.
Em um relacionamento com a solitude
Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.
Ainda estou me curando dos traumas.
Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.
Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.
Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.
Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.
Eu sentia falta da minha rotina. Esse foi o maior impacto que senti. No começo, eu pensava que ter aquele tempo seria bom, que conseguiria ter mais calma. Mas à medida que o tempo passava, senti que fui perdendo o controle. Apesar de ter mais tempo, eu não conseguia produzir por conta da ansiedade e da pressão.
Tenho 28 anos, sou uma mulher preta, cotista e feminista. Nascida e criada na região do subúrbio ferroviário, numa família evangélica pentecostal, com 3 irmãs e um irmão.
Uma infância cheia de limites, e tolhida, principalmente em questões de liberdade e autoconhecimento corporal. Apesar disso, desde muito nova, eu era questionadora.
Uma ideia falsa e uma rotina verdadeira
Com 17 anos, quando tive a primeira oportunidade de fazer um curso que oferecia uma bolsa com um valor simbólico, por exemplo, com o dinheiro que recebi – comprei a minha primeira calça – peça de roupa proibida pela igreja e, consequentemente, pelos meus pais.
Era como um grito de liberdade.
Meus pais não receberam muito bem, me apontavam como revoltada, insubmissa. Minha irmã mais velha, dizia: “como você está tendo essa ousadia? Nem eu mesma tive essa coragem”.
Mas sempre que eu identificava um desejo meu, eu buscava caminhos para realizá-lo.
obrigada a frequentar, pois em diversas vezes, me sentia desconfortável.
Não sei como e nem com quem aprendi, mas eu desenvolvi esse senso de estabelecer os meus limites.
Conhecendo o mundo
Essa experiência de conhecer o mundo, saindo das vivências domésticas, e fora do bairro, me fez desabrochar. Após entrar na faculdade, com 18 anos, no bacharelado em Direito, paguei meu primeiro curso profissionalizante: um curso de maquiagem, que era algo que — também, segundo a igreja — eu não poderia usar.
Tornei-me maquiadora profissional, atuante na área da beleza e, mesmo com todas as questões envolvidas, meu pai foi na minha formatura. Essa área, inclusive, se tornou muto importante para mim, pois é como uma fonte de liberdade e expressão.
O curso de Direito é muito técnico, e a maquiagem é como uma manifestação mais completa de quem eu sou e do que eu sinto. Outro momento importante para mim, foi quando, aos 18 anos, após passar pela transição capilar, deixando o cabelo crescer, fiz o ‘big shop’, que elimina, por completo, a química do cabelo.
Na semana seguinte ao corte, era o casamento da minha irmã. Mais uma vez minha família me fez retaliações, diziam que eu queria aparecer, como se algo que é meu não fosse.
Era o que meu pai dizia: “Você fez algo em seu cabelo, eu não o reconheço.”
Aquilo me chateou, mas não me fez desistir dessa trajetória identitária.
Hoje em dia, conversamos sobre essas pautas, e a minha mãe, que antes não se reconhecia enquanto mulher preta — por questões de vivências pessoais e uma série de influências que se cruzam pelo caminho —, já se vê como tal.
A rotina de viver durante a pandemia
Recebi a pandemia num momento de reencontro com a universidade. Eu já iniciara os estudos numa faculdade privada, pelas cotas, mas por uma série de problemas estruturais — que a maioria de nós já conhece — precisou quebrar esse vínculo.
Fiquei um tanto perdida, sem saber se queria voltar, se teria uma oportunidade para retornar, ou não. E, justamente, neste retorno, no momento de ressignificação, para mim, da vida e ambiente acadêmicos, recebemos a notícia de que as aulas presenciais estavam suspensas.
Eu tinha uma rotina enlouquecida, acordando às 5 da manhã, voltando para casa depois das 22h — estágio de manhã e à tarde, e faculdade à noite. Muitas vezes, estudando e me alimentando nos trajetos entre um compromisso e outro.
Exatamente quando a pandemia começou, eu estava começando a escrever o TCC. Como disse, era exatamente o meu processo de reencontro na universidade — fazendo novos amigos e criando laços de amizade.
Foi muito difícil me deparar com a obrigatoriedade do ensino à distância, que eu considero frio, e só piorou quando a minha orientadora, grávida, contraiu Covid-19.
A faculdade se isentou da responsabilidade de me disponibilizar outro orientador, e precisei fazer tudo praticamente sozinha.
Foi muito estranho…
Eu me sentava na frente do computador e não conseguia escrever absolutamente nada. E, depois de tudo, a minha defesa para a banca aconteceu por uma ligação de áudio no WhatsApp.
Foi estranho. Eu senti como se não tivesse entregado aquele trabalho.
As perdas mais próximas, de familiares, nesse período, não foram motivadas pelo coronavírus. Foi um momento exaustivo e preocupante. Toda a rotina de cuidados, lavar tudo, passar álcool em absolutamente em tudo, era uma preocupação que beirava o desespero.
Meus pais ficaram doentes, sendo que meu pai de uma forma mais agravada. Contudo, não sabemos até hoje se foi Covid-19 ou não, porque a orientação para ir ao médico era apenas se os sintomas chegassem em um nível muito sério, — caso contrário, os hospitais poderiam ser focos de contaminação.
Tivemos medo de perder alguém, mas isso não aconteceu. E toda essa movimentação pelo medo de perder pessoas, me fez perceber que eu que eu gostava de gente.
Eu percebi que gosto de pessoas, de estar com elas, de interagir e lidar.
Vi pouquíssimos amigos, e sinto muitas saudades. Anseio muito pelos reencontros, pelos abraços. Eu realmente espero que daqui para frente, nós consigamos nos reestabelecer mentalmente
Durante a pandemia, fiquei sem ir ao interior — e sem visitar a minha mãe — por 2 anos. Nos comunicávamos por telefone. Quando tudo fechou, eu fiquei um pouco assustada.
Nasci no interior da Bahia, em Cícero Dantas. Após a separação dos meus pais, quando ainda tinha 3 meses, fui com minha mãe morar em Ribeira do Pombal.
Tive pouco contato com meu pai. Minha mãe, doméstica, sempre me aceitou, e eu, desde muito nova, sempre demonstrei a minha essência.
Minha mãe tem uma mente muito aberta, e nunca me discriminou.
Uma vida bem distante da pandemia
No interior, onde morávamos, existiam outras mulheres trans. Aos 15 anos, comecei a tomar hormônio.
Aliás, também vivi a prostituição normalmente, – fazia programas em postos de gasolina, com caminhoneiros e nas festas que aconteciam na cidade – inclusive, em cidades vizinhas.
Estudei até a 8ª série do ensino fundamental. Era uma vivência que eu avalio como tranquila, com poucas importunações, apenas com algumas piadas e coisas do gênero.
Na maioria das vezes, eu não me importava tanto com as situações, – a não ser que eu me sentisse agredida. Acredito que eu tinha essa postura por ser muito acolhida em casa, com a minha mãe, que nunca me discriminou e sempre me defendeu.
Isso mostra a importância do apoio familiar para pessoas como eu. Com 18 anos, uma amiga, também trans, me chamou para conversar, e disse ter um apartamento em Salvador, que eu poderia — e deveria — tentar passar um tempo aqui para tentar mais oportunidades.
Vivendo em Salvador
Aceitei a proposta. Me mudei para Salvador, e gostei da cidade. Hoje, com 28 anos, ainda moro na capital baiana. No início, dividia essa casa com outra menina trans.
Mas, depois de um tempo, senti necessidade de morar só, ter o meu canto. Senti precisar de mais privacidade para atender os meus clientes, como garota de programa, e, ter a minha liberdade.
A pandemia
Uma amiga do interior me ligou, desesperada, dizendo que eu deveria voltar para o interior por conta da pandemia. Neste momento, consegui manter a calma e respirar fundo.
Primeiro, porque eu tinha as minhas economias — eu sempre guardava uma parte de todo dinheiro que eu fazia atendendo, tanto nas ruas, quanto em sites.
Também, porque recebi ajuda, apoio, cesta básica. Não pude parar os atendimentos em meio a pandemia. Era inviável fazer isso nas ruas, mas sempre que um cliente entrava em contato, eu o encontrava.
Mesmo com as minhas economias, uma hora, eu iria precisar do dinheiro, ora para pagar o aluguel, ora para as minhas despesas básicas.
Alguns dos clientes se preocupavam com protocolos de segurança e tinham mais medo, mas, outros não. Apenas diziam precisarem espairecer a cabeça, dar uma volta na cidade — como se eu fosse a distração para toda aquela pressão da quarentena, de estar convivendo tanto com a família.
Eu não podia dizer não
Além dos programas, eu performava em casas de show. Contudo, com as casas fechadas, não tínhamos como atuar. Só à medida que começaram as flexibilizações das normas, é que nós pudemos, pelo menos, fazer os shows através de lives.
Contudo, não era a mesma coisa, na verdade, aparentou ser bem estranho não ter os aplausos, o calor humano, a “churria”.
Todo esse processo me fez ficar muito ansiosa e, com isso, comecei a comer mais, e engordei. Fique frustrada, pois, trabalho com o meu corpo.
Sentia muita vontade de que as coisas voltassem ao normal, que eu pudesse ir à praia e tomar uma cerveja.
Quero muito realizar o sonho de ter uma casa própria. Não quero voltar para o interior. Espero poder tirar logo essa máscara — que eu não suporto. E que, nós saiamos desse momento, colocando em prática tudo o que dizemos ter aprendido sobre amar o próximo
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