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60 anos ou mais Branca Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“Atendi uma menina, que sentia dor, e ensinei um remédio a ela”

E quantos anos a senhora tem dona Tila? Oitenta e nove. E aonde que a senhora mora? Cachoeira. Município de São João do Triunfo.

Pois na pandemia eu fiquei presa na casa, não saía, o neto levava receber, volta pra casa, daí não saí mais pra porta nenhum só na casa. E não aconteceu nada e as pessoas continuam procurando a senhora? Procuraram não parar. Ontem ainda veio uma senhora que trouxe uma menina ela gritando de dor de barriga. Daí eu ensinei remédio porque ou quer fazer mais que ela está com dor de barriga tinha que ensinar remédio. Remédio pra fortificar o estômago porque ela nem come mas não comia mais. E a senhora mudou o jeito da senhora recolher as pessoas, da senhora receber por conta do vírus? Não meu bem .Só que as pessoas chegam e o chimarrão não quer e daí a gente não faz nada só vê o que é que eles precisam. E usam máscara? Alguns vem de máscara, outros não vêem, vêm sem nada. Uhum! E a senhora não ficou com medo de receber as pessoas? Não fiquei com medo, não fiquei com medo de ninguém.

Relato de Donatila Kuller, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Parda Raça/Cor

“Acendia a vela e fazia meus pedidos, que eram aceitos”

E estava com medo desse problema da pandemia mas aqui não recebia ninguém. Curava criança de longe, costurava gente de longe, me dava um nome eu costurava fazia cura em criança pegava o nome e fazia meus pedido de longe, tudo a gente faz com fé né e as pessoa tem muita fé em mim e daí, daí fui levando a vida que, daí a gente  com medo dessa doença.

Agora graças a Deus tá, tá calmo, agora eu curo, tô curando criança  na cera aos pouquinho. Ponhava  a cera para derreter e ponhava o nome da criança embaixo e a parte em cima, derramava cera ali já… Daí, o nego ligava pras pessoa é da coisa, é bicho e a  mãe já curou e era bom. Todos os pedidos que eu fazia certo tinham fé também né.

Pedido e cura

Eu não, não vou recorrer porque não é por minha causa é que é a da saúde né? Disseram que não era pra mim receber gente de longe, é pra fazer o pedido e curar a criança e costurar a gente. Aqui bem quietinha então acendia a vela, que a Santa tá ali ne? Acendia a vela e fazia meus pedidos e era aceito. O nego, o nego pôs uma na frente lá. A mãe não está atendendo mais. E daí para baixo. Daí a máquina veio fazer, limpando um lote ali pro lado descendo a direita, né? Arrancaram minha placa dali. Eu disse: Que eu vou por outra! E daí ela tentava ali na frente de mim e depois ali daí eu disse agora a senhora mesmo diz, eu não estou atendendo! 

Gente de longe né só fazendo os pedidos aqui entre só eu e Deus né? E daí eles compreenderam que não, não posso, mas hoje ainda por outra colei dois na sexta mas já era só a as mãe com as criança né? Daqui ser conhecida a gente faz na boa fé .Peço pra Nossa Senhora da Conceição. Cada deitar eu vou lá na nas santas lá, tem quatro lá. Eu vou pedir pra saúde.

Relato de Dona Glória Malaquias, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Prta Raça/Cor

“Não é porque a pessoa não acredita que ela não vai pegar a Covid-19”

Só depois é que eu fico pensando: Se não acredita, não é que vai pegar. Meu nome é Alzira, moro em Rebouças, e continuei o meu trabalho de benzimento, não fechei  as portas pra ninguém, Porque eu não tenho medo, porque tudo acontece quando Deus quer.

Deus não querendo, nada acontece com a gente. Eu tenho curado até gente do lado de Curitiba. Tem uma mulher que tá pra vir agora, só que eu não conheço ela e ela não me conhece. É, só que, eu mesmo fiz meu trabalho, porque eu acho que eu tenho a obrigação. Eu fiz pra essa mulher, eu fiz de longe né? Ela ligou pra mim eu fiz de longe, mas tem vindo é gente de longe do interior pra vim aqui em casa, porque como diz: Eu não escolho, seja lá quem for, me procurou eu estou fazendo.

Relato de Dona Alzira Kinapp, produzido pela Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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14 a 17 anos Ensino Fundamental Incompleto Indígena Mulher Cis Roraima Sem categoria

“Só com a vacina é nosso dia a dia pode voltar ao normal”

Meu nome é Elen Lorraine Leocádio da Silva, eu tenho 14 anos e sou da etnia Wapixana.

A pandemia chegou de repente. Foi um susto! A primeira coisa que fizemos quando vimos que os primeiros casos de Covid-19 tinham chegado em Roraima foi ir ao interior do Estado para se isolar. Fomos eu e os meus primos e ficamos no interior por cerca de duas semanas.

Não só eu, mas muitas outras pessoas presenciaram a morte de pessoas queridas e, com tudo isso, deveriam ter consciência. A gente vê por aí muitas pessoas que não estão se importando com a pandemia, como se ela não existisse.

Contaminação

Depois desse tempo, voltamos para a cidade porque queríamos voltar às nossas casas. E, quando voltamos, todo mundo pegou Covid-19. 

O meu caso não foi tão grave, mas foi forte. Eu fiquei com vários sintomas como dor de cabeça, febre e calafrios. Eu acredito que tenha me contaminado pela minha mãe, que é jornalista e teve que acompanhar a situação da pandemia nos hospitais. 

Como todos em casa estavam com Covid-19, minha avó trouxe um chá, um remédio caseiro e foi assim que me recuperei. Porém, outras pessoas da minha família não tiveram a mesma sorte: meu tio e meus avós morreram. Meu tio chegou a ser internado e entubado, mas não resistiu e meu avô morreu recentemente também. 

Porém, a morte da minha avó foi a que mais me doeu. É muito difícil a gente perder alguém que ama e a minha avó foi uma das pessoas mais importantes na minha vida. Ela tinha apenas 63 anos, era muito nova. 

Não só eu, mas muitas outras pessoas presenciaram a morte de pessoas queridas e, com tudo isso, deveriam ter consciência. A gente vê por aí muitas pessoas que não estão se importando com a pandemia, como se ela não existisse. Talvez porque não tiveram nenhuma perda, porque se elas tivessem perdido alguém, elas teriam mais consciência sobre isso!

Eu acho muito bonito tudo que os profissionais estão fazendo e já vinha pensando em fazer medicina. Depois que a minha avó adoeceu, eu tive certeza que eu queria fazer medicina!

Educação e pandemia

Seguir estudando durante a pandemia, com o fechamento das escolas, foi muito difícil. Praticamente não se aprende nada nas aulas pelo celula. A gente tem aula pelo Google Meet, todos os dias, de diferentes matérias. É uma dificuldade participar das aulas! Eu quase não aprendo nada, mas eu tento. Eu leio muitos livros para tentar compreender a atividade. Estou cursando o nono ano do Ensino Fundamental e as aulas na escola onde estudo voltaram apenas para os anos do Ensino Médio. Houve muitos casos da Covid-19 lá e por isso eles tiveram que fechar a escola. Estudo na Escola Estadual Monteiro Lobato. 

No futuro, eu penso em fazer faculdade de medicina! Eu acho muito bonito tudo que os profissionais estão fazendo e já vinha pensando em fazer medicina. Depois que a minha avó adoeceu, eu tive certeza que eu queria fazer medicina!

A esperança está na vacinação

Quando começou a pandemia eu tive muitas crises de ansiedade. Eu não saia, não via pessoas, eu não conversava e isso afetou o meu psicológico. Acredito que muitas pessoas estão passando pelo que eu passei, mas quando todos se vacinarem, esse contexto será minimizado. 

Eu já tomei a segunda dose da vacina já. Na minha família nem todos acreditam na vacina. Isso é um problema! A vacina é muito importante em nossa vida e só com a vacinação é que nosso dia a dia vai voltar ao normal. Ainda que minha família não acredite nos efeitos da vacina, eu estou colocando toda minha confiança nela! Espero que a gente possa viver como era antes.

Relato de Elen Lorraine, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Amazonas Ensino Fundamental Incompleto Homem Cis Prta

“Eu sou vigia aqui do Caprichoso desde 2015, quando essa doença chegou”

Meu nome é Jorge Oliveira dos Santos. Tenho 69 anos e farei 70 em janeiro, se Deus quiser.

Sou vigia do Caprichoso desde 2015, e vou dizer para você: “não é fácil não” — tudo parou, as coisas ficaram muito complicadas. E para piorar, nessa época minha mulher estava em Manaus e eu estava aqui. Eu pensava assim: “ela pra lá eu pra cá”. Se eu adoecesse aqui, ela não podia vir para cá, e se ela adoecesse lá, eu não podia ir para lá”. 

Todas essas coisas se passavam pela minha cabeça e eu sempre perdia o sono. Em alguns momentos eu só dormia um pouquinho, “na boca da noite”, e de madrugada eu ficava pensando todas essas coisas, sabe? Aí eu pedia tanto para Deus que nos desse força, que nos livrasse de todas essas doenças, não só na minha família como em todas as outras. Mas essa doença tirou muita gente, muitos colegas nossos. Até minha irmã, que morreu em Manaus, três dias após eu completar 69 anos. E assim foi… levando as coisas e, até hoje em dia, eu não assisto televisão direito. Às vezes um pouquinho de jornal, um pouquinho de jogo, aí quando vejo aquelas notícias da doença, opto por não assistir mais à televisão.

Tudo parou

Então, tudo parou né!? Aqui nesse galpão a gente olha de um lado para o outro e não se vê ninguém como antigamente — já que minha trajetória de Caprichoso se iniciou em 1996. Lá trabalhei como soldador, e depois que chegou essa doença, acabou tudo. Muita gente tem falta disso, pois, quando terminada o Boi, eu viajava para São Paulo e Rio de Janeiro. E devido à paralisação, eu ficava sem ganhar esse dinheiro. 

Os artistas e soldadores vivem desse trabalho de vai e volta, e assim fica. Então, agora eu espero, se Deus quiser que eu continue trabalhando. Eu, com muito cuidado sempre, chegava em casa, já tomava muito cuidado, muito remédio — que era dividido entre filhos e irmãos — e máscara. Eu não tiro a máscara por nada. No Galpão, mesmo sendo só eu e o meu colega que não está lá diariamente, eu nunca tiro a máscara — tirei só agora para dar essa entrevista. Só tiro para beber água, comer algo, mas depois eu boto de novo.

Eu espero que tudo volte ao normal, porquê esse vírus não é. Depois que eu tomei a primeira dose da vacina, antes de inteirar os 3 meses, a enfermeira ligou para mim, que já estava com mais de dois meses, pedindo para retornar e tomar a segunda dose. E, se Deus quiser, agora dia 8 eu tomo a terceira dose já de novo, se Deus quiser. Tenho fé em Deus que tudo vai passar, que tudo vai voltar ao normal, se Deus quiser, tenho fé em senhor Jesus.

A festa do Boi Caprichoso

Assistimos a  live do Bumbódromo, e já deu um alívio mesmo não sendo como a festa que a gente ia. Então, a live já me deu mais uma esperança. Voltando a falar brevemente sobre a minha irmã, mesmo ela se cuidando, ela foi embora. Apesar disso, creio que as pessoas, nesses tempos de pandemia, passaram a dar mais atenção e carinho para as suas famílias — o que é ótimo. 

Agora, pensando, esse momento foi bem difícil, né? Mas, felizmente, trouxe bastante aprendizado para as pessoas. Hoje em dia, a gente fica mais alegre, pois eu saio na rua para ir ao trabalho e depois volto para a casa. As pessoas já estão andando mais, circulando pelas ruas. E eu espero que, se Deus quiser, que em 2022, já vai ter o festival, e isso vai ser um alívio para muita gente. 

O festival do Boi é um evento muito importante para as pessoas da nossa cidade, trazendo venda e lucro para nós.

Vai passar…

Termino esse relato agradecendo, e dizendo que aprendi muito com essa doença que circulou na nossa cidade. Se cuidar e ter o maior cuidado, como, por exemplo, chegar em casa e já ir direto para o banho, para depois entrar em contato com a minha família. Eu já não chego mais em casa como antigamente. 

Espero que, mesmo após ter tomado a vacina, as pessoas continuem se cuidando.

E quem não tomou a vacina, que procure um posto de saúde!

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40 a 59 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Homem Cis Prta

“Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer”

Meu nome é Lucimar, tenho 44 anos de idade e sou um homem cis negro. Hoje moro em uma casa na Ceilândia Norte-DF, cidade satélite e região periférica de Brasília. Antes, por 34 anos, morei nas ruas desta capital. 

Sai de casa aos nove anos de idade e consegui estudar somente até a 5° série do ensino fundamental: uma parte no Grande Circo Lar e outra na escola Meninos e Meninas do Parque (Brasília/Distrito Federal), onde já adulto aprendi a ler e a escrever. Por último, estudei no sistema prisional, mas ainda não consegui concluir. 

Não tive infância. Nas ruas tive que sobreviver em meio a violência e a crueldade: não havia tantos momentos para lembrar que eu era uma criança, eu precisava ser bruto, porque só assim poderia me manter vivo. 

Hoje sou um trabalhador, tenho sete filhos, sou um homem ainda sob cumprimento de pena, pois infelizmente minha vida no passado se dividiu entre o cárcere e a rua. Nesta última vez de privação da liberdade, fiquei quase sete anos em regime fechado por uma sentença de tráfico de drogas, mas eu não era traficante, nunca fui. Eu era mais um sobrevivente naquela realidade das ruas. 

Assim como todo o meu povo da rua, nos prendem como traficantes. Toda a minha trajetória nas ruas aprendi que a lei somente é aplicada a nós, principalmente em relação ao tráfico de drogas. Eu digo isso porque o povo da rua, os pobres, as pessoas pretas são a maioria nos cárceres.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade

Pandemia na cadeia

Estes últimos anos, nesta cadeia, foram os anos mais difíceis da minha vida, principalmente os últimos cinco meses quando chegou a pandemia da COVID-19 no mundo. Eu nunca mais quero voltar para aquele lugar, nunca mais quero sofrer tanto por cometer um erro. Não existe justiça, só existe vingança ali.

Quando a pandemia chegou, dentro do sistema prisional nós pensávamos que iríamos morrer. Quando tinha TV, a gente acompanhava as notícias e era assustador demais. Foi muita tristeza, angústia e medo de nunca mais ver minha família, nunca mais respirar em liberdade. 

No cárcere, eu fiquei na área reservada para as pessoas com comorbidades por ser hipertenso, mas não havia cuidado. Estávamos isolados e muitas vezes quem tinha a COVID-19 não dizia que tinha por medo de ir para um lugar pior. 

Logo que a pandemia chegou, as visitas foram proibidas e nós fomos submetidos a todo tipo de violação. Todos nós temos direito à dignidade humana, mesmo quando estamos ali naquele lugar, que eu chamo de “depósito de rejeitados”, onde a sociedade não vê valor algum. 

Todo ser humano é maior do que seus erros e não temos o direito de decidir quem vive e quem morre. Em 6 de agosto de 2020 consegui obter uma progressão para o regime aberto (domiciliar) e voltei pela primeira vez para a minha casa, um lugar onde eu vi o amor por mim em cada cantinho, um lar. 

Em todas as vezes que eu vivia na prisão, eu saia sem nenhum pilar para me apoiar e seguia no ciclo rua e cadeia, mas dessa vez foi diferente. Eu encontrei o amor, tanto em minha casa como na rede de apoio que tenho hoje. 

Hoje eu não estou mais só, eu tenho minha família, meus filhos, esposa, sogra, enteado e minha netinha. Ela traz luz para minha vida, ela clareia, ela é a Clara. Eu aprendi o que é amor, eu hoje sei o que é ser amado e amar, respeitar e ser respeitado, agora me vejo realmente como um ser humano. 

Vida em família

Antes, eu não sabia o que era verdadeiramente uma vida em família. Já tive outros relacionamentos, mas eu era jovem, cabeça dura, vinha de uma realidade da brutalidade nas ruas. Eu era muito esquentado e também enfrentava muitas dificuldades para me sustentar. Minha forma de vida não era a correta, mas era a única forma que eu conhecia para sobreviver pois foi assim que eu cresci nas ruas. 

Ao vir para casa, me deparei com a minha esposa desempregada, com minhas duas filhas desempregadas, eu me perguntava o que eu faria já que eu não queria voltar para aquele lugar [cárcere]. Eu estava muito cansado de tanto sofrimento e as limitações que eu tinha, com a falta de estudos, diminuíam as possibilidades de eu arrumar um emprego e ter uma oportunidade de fazer diferente. 

Em meio a pandemia, minha esposa estava sobrevivendo com a ajuda das redes de apoio, coletivos, organizações não-governamentais e movimentos sociais. Foi nesse momento que conheci as Tulipas do Cerrado, uma organização que foi fundada por uma pessoa que hoje é uma das mais importantes em minha vida. Nunca imaginei reencontrar a Juma Santos, que foi uma menina de rua como eu, que eu conheci nas ruas. Eu não imaginava a importância que essa mulher teria em minha vida e da minha família, como suporte, acolhimento, voz forte, amiga, irmã e protetora.

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito!

Rede de apoio: trabalho feito por nós para nós

Hoje eu sou muito grato a Deus por ter a Juma ao meu lado. Foi através das Tulipas do Cerrado que eu fui apresentado e incluído no Coletivo Aroeira, que usa a metodologia agroflorestal e a redução de danos como ferramentas de autoconhecimento e cuidado. Ali conheci amigos(as) que eu nunca imaginei ter e mais uma vez eu pude ver o quanto o amor é capaz de salvar vidas. 

Eles [trabalhadoras e trabalhadores das Tulipas e do Coletivo Aroeira] não sabem, mas me salvaram e me salvam a cada encontro. A cada semana era uma terapia nova: aprendi respeitar as minhas irmãs de caminhada, as trabalhadoras do sexo, que na rua, eu nunca tinha olhado com tanto amor. A palavra é essa (amor) e respeito! São mães, são amigas, são guerreiras e eu não as via assim. 

Também entendi que o preconceito destrói a vida das pessoas que são usuárias de drogas e são seres capazes de fazer tudo. Mesmo sendo usuários de substâncias consideradas ilegais, não são zumbis, são meus irmãos e minhas irmãs. 

Eu não sabia a importância dessas redes, mas através desse espaço eu entendi que não é só sobre mim, o Lucimar, Mazinho, velho mar e hoje novo mar. É sobre nós! 

É necessário sempre lembrar e falar que se estou de pé é por causa das Tulipas do Cerrado e Coletivo Aroeira, pois estes lugares são meus portos seguro hoje e me ensinam ser uma pessoa melhor, além de me fazerem refletir sobre como a redução de danos é algo que precisa chegar ao nosso povo, pois só assim não seremos mais mortos e encarcerados por uma desigualdade social que nos aflige. Esse é um trabalho feito por nós e para nós.

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25 a 39 anos Branca Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Trans

“Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo”

Sou Beatrys Madelayne, mulher trans branca e trabalhadora sexual. Vou explicar minha situação durante a pandemia.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou. Eu fiquei sem conseguir trabalhar, já que meus clientes ficaram com muito medo de pegar Covid-19. Eu e outras trabalhadoras do sexo que conheço ficamos sem trabalhar. 

Passei por situações muito difíceis,  tendo que vender as coisas de casa para comprar alimentos, pagar meu aluguel e outras contas. Chegou um momento em que eu não tinha mais nada para vender. Hoje, depois de seis meses de aluguel atrasado, a proprietária do imóvel me deu uma ordem de despejo. 

Nessa condição, estou com medo de, a qualquer momento, a proprietária me tirar de onde moro e eu não ter para onde ir. Eu e mais duas amigas trans que acolhi porque, durante a pandemia, elas precisavam de moradia por terem saído da casa de seus familiares.

Tentei alguns benefícios com a ajuda do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) da Diversidade para conseguir me sustentar e tentar me estabilizar, mas o que recebo de benefícios hoje não dá para eu matar a fome de todas nós. 

Ainda assim, fico feliz porque, através do Creas, pude resolver um pouco dos meus problemas e até fiz minha retificação de nome e gênero. Isso para mim era uma das coisas mais importantes, algo que sempre sonhei em ter. É um direito garantido a mim!

Graças a essa ONG, hoje, não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc.

Rede de apoio

Devido a dificuldades que vieram com a pandemia, pedi ajuda a uma amiga da terceira idade. Ela me apresentou às Tulipas do Cerrado, uma organização não governamental (ONG) sem fins lucrativos que ajuda, cuida e realiza momentos de convivência com as pessoas da comunidade LGBTQIAP+, população em situação de rua e profissionais do sexo do Distrito Federal e do entorno. 

Graças a essa ONG, hoje não passamos fome, recebemos mensalmente uma cesta básica e cesta verde, dentre outras coisas necessárias, como produtos de higiene, cobertores, etc. Eu e minhas amigas adotamos as Tulipas do Cerrado como uma família, é neste espaço onde nos sentimos acolhidas e amadas, onde podemos sempre desabafar e compartilhar um pouco das nossas vidas, seja em relação aos aspectos positivos ou negativos. Esse é um coletivo que vibra com as conquistas que temos. 

Além da ONG Tulipas do Cerrado e do Creas da Diversidade, tive ajuda recebendo alimentos da Casa Rosa.

Graças a Deus não peguei Covid-19, mas, infelizmente, perdi várias amigas próximas. Tudo isso me marcou bastante. Nunca esperei passar por essas situações. 

Em meio à pandemia, uma ordem de despejo

Nunca imaginei que a dona do imóvel onde moro iria pedir uma ordem de despejo. Até a pandemia chegar eu sempre tinha sido uma boa inquilina e agora, que fiquei em uma condição financeira péssima, ela me trata como se eu fosse lixo. É muito desumano.

Posso concluir essa narrativa dizendo que a pandemia só não mudou quem sou. A minha essência não mudou: eu continuo sendo parceira, sincera, acolhedora. Porém, percebi que as pessoas à minha volta mudaram bastante, ficaram amargas, desunidas.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis Prta

“Nesse período eu só sabia chorar”

Sou Elza, tenho 38 anos, sou mulher cis, preta, maranhense, mãe solo de seis filhos. Possuo o ensino fundamental incompleto, sou profissional do sexo e moro há 17 anos em uma cidade no entorno do Distrito Federal.

Com a chegada da pandemia, minha vida mudou muito: tive que encontrar outras fontes de renda e, com o fechamento das escolas, minha filha mais nova, de 11 anos, teve que ficar em casa sem estudar. Foi muito difícil para ela, pois ela tinha muita vontade de voltar a frequentar a escola. 

Tive minhas preocupações e angústias. Eu vi as coisas mudarem do dia para a noite. Quando fui para Brasília trabalhar no centro de uma região administrativa [“bairro”], vi que as lojas estavam fechadas, as ruas vazias, as poucas pessoas que estavam transitando estavam usando máscaras. 

Lembro até hoje da minha primeira máscara, era do Flamengo. Aí veio o medo: usando máscara, as coisas ficaram complicadas. Não havia ninguém na rua, sem clientes, nada. Eu pensei: “O mundo está acabando e eu não estou sabendo de nada”.

O início da pandemia foi bem difícil. Não tive ajuda em nada, nem do Governo. Pelo contrário, eu recebia R$50 de bolsa família e o benefício foi cortado. Fiquei sem água e luz em casa. O gás de cozinha acabou e tive que preparar a comida à lenha no meu quintal. Às vezes, meu pai, que é aposentado, me ajudava com o pouco que tinha.

Filhos em situação de rua

Atualmente, moro apenas com minha filha mais nova. Antes da pandemia, minha filha de 16 anos morava comigo, mas se amigou com um rapaz e foi morar com ele. Posteriormente, esse rapaz foi privado de liberdade e está até hoje em situação de cárcere. 

Essa minha filha ficou um período em situação de rua. Tentei tirá-la dessa condição, me aproximar, conversar, porém, ela tentou me agredir fisicamente diversas vezes e me xingava bastante. Uma situação muito complicada. Sempre tento contato via telefone com ela, mas não tenho resposta. Fico aqui com minha preocupação.

Meu outro filho teve uma crise de saúde mental no meio desse ano (2021) e saiu de casa sem dar notícias. Ele também acabou ficando em situação de rua. Fiquei mais de um mês sem dormir, com muita preocupação, sem saber onde ele estava, como ele estava, até mesmo se estava vivo. 

Nesse período eu só sabia chorar, sem saber o que fazer. Consegui achá-lo e trazê-lo com segurança para casa, mas a crise não passava. Ele ficou um tempo internado em uma Unidade de Pronto Atendimento 24h e, posteriormente, foi atendido em um Centro de Atenção Psicossocial. Meus demais filhos moram no Maranhão com meus pais.

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto

Redes de apoio

Mesmo diante desse turbilhão, tive um grande presente em minha vida: Juma Santos. Eu a considero como minha segunda mãe. Foi a partir dela que conheci coletivos maravilhosos, como a organização não governamental (ONG) Tulipas do Cerrado, que é um grupo maravilhoso que tem me ajudado muito nesse período difícil na minha vida, tem cuidado de mim e da minha família. 

Conheci também a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas, outra parceria maravilhosa. Assim como o Coletivo Aroeira. Com eles eu aprendi muitas coisas boas sobre agroecologia como, por exemplo, plantar, colher, fazer sabonete, extrair óleo essencial. 

Em todos esses espaços pude conhecer muitas pessoas boas que me enriquecem de conhecimento e afeto. Me sinto muito abençoada por Deus pela oportunidade de participar desses grupos e por ter conhecido cada pessoa. 

Não consigo encontrar palavras para expressar a minha gratidão a esses grupos pelas várias formas que tem me ajudado, seja com cesta básica e cesta verde, seja com uma escuta, acolhimento, momentos de convivência, trocas de saberes com ensinamentos e aprendizados. Agradeço a Deus e a essas pessoas que chegaram em minha vida para somar e trazer luz.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Mulher Cis

“Minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19”

Me chamo Maria Aparecida, porém sou mais conhecida pelo meu apelido, Iza. Sou baiana, tenho 38 anos e ensino médio completo. Trabalho como profissional do sexo há 19 anos.

Quando a pandemia começou eu estava em Goiânia/Goiás e fiquei sabendo que não poderia sair do Estado de Goiás, as rodovias estavam sendo fechadas. Contudo, eu consegui retornar para Brasília, comprei alimentos e fiquei duas semanas em quarentena. 

O tempo foi passando e as contas continuaram a chegar – água, luz e outras despesas – e o dinheiro foi acabando. Foi quando eu tive a necessidade de voltar trabalhar. As ruas, porém, estavam vazias, sem movimento, sem clientes. 

Muitos dos meus clientes fixos eram idosos, então eles sumiram com medo do Covid-19. Diante disso, tive que conquistar uma nova clientela. Com a diminuição da circulação de pedestres e queda no movimento dos comércios, meu companheiro na época deixou de vender pipoca nos semáforos. 

Infelizmente, o período de pandemia me trouxe outras perdas: minha mãe adotiva faleceu por causa do Covid-19. Eu considerava muito a minha mãe, foi ela quem me criou, eu a amava, admirava e respeitava. Daria tudo por ela.

Eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro”

Empoderamento

Quando as pessoas voltaram a andar pelas ruas, meu companheiro começou a vender bebida alcoólica na praça e a convivência com ele ficou muito ruim, pois ele passou a beber mais bebida alcoólica e a fazer uso de outras drogas. Com isso, tivemos muitas brigas e o relacionamento foi de mal e pior.

Foi nesse período conturbado da minha vida que eu conheci a Juma Santos e a organização não-governamental (ONG) Tulipas do Cerrado. Com ela eu aprendi a pensar em mim como uma mulher que tem o direito de ser bem tratada pelo companheiro e, após algumas conversas, identifiquei situações de violência em meu relacionamento que eu não podia mais tolerar. 

Antes eu pensava que a opressão era apenas em ocasiões que havia violência física, mas ao ouvir a história de vida da Juma, eu percebi que não. Então, ao ouvi-la, me senti forte, empoderada, para registrar o primeiro boletim de ocorrência contra aquele homem, que me oprimia, me xingava e quebrava as coisas dentro de casa. 

Ainda assim, continuei me relacionando com ele. Depois de alguns meses, em um momento de muita ira e surto, ele tentou queimar o apartamento onde eu morava, jogou minhas coisas no chão do apartamento, tentou explodir o botijão de gás de cozinha, correu atrás de mim. 

Ele nunca tinha chegado a esse ponto durante esses 11 anos de relacionamento. Eu tive muito medo de ele me matar. Fui até a polícia, fui acolhida e fizeram a busca por ele nos locais onde ele costumava ficar, porém não o encontraram. 

Hoje eu tenho medida protetiva contra ele e estou tentando sair desse relacionamento. Na verdade, eu saí há pouco tempo.

Acolhimento

Por fim, gostaria de acrescentar que, além de ser um coletivo que me empodera com mulher, como mãe, como trabalhadora sexual, as Tulipas do Cerrado, especialmente a Juma, tem sido meu refúgio e minha fonte de apoio. 

Nessa ONG eu sou acolhida, me tornei redutora de danos, recebo cesta básica e cesta verde mensalmente e, às vezes, é possível receber ticket alimentação e vale gás. Todo esse apoio tem me ajudado bastante.

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25 a 39 anos Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Ensino Superior Incompleto Mulher Cis Prta

“Entendo a frase de Clarice Lispector que diz: ‘Brasília, uma prisão ao ar livre’ pois quando caminho no centro percebo que ressoa a dor”

Meu nome é Eveline, mas desde sempre me chamam de Vivi. Nunca entendi, pois não é um apelido derivado do meu nome, mas hoje sei que a Vivi viveu tantas coisas, vivi e estou VIVA, superando as estatísticas.

Tenho nível superior incompleto, cursando Direito. Vim de um lugar de privilégios, mas hoje ocupo o lugar da não existência, onde os nossos direitos são chamados de benefícios, onde o que foi reservado como resolução para nossos problemas foi o direito penal.

Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre

Vida na rua: uma prisão ao ar livre

Eu moro em Brasília, mas sou nordestina de corpo e alma. Nasci em Teresina (PI), a capital verde do Brasil. Fui atravessada ainda menina nesta mudança de lá para o Distrito Federal. Minha mãe não tinha mais condições de ficar em Teresina, por causa de um processo muito doloroso de separação com meu pai e eu, que era a filha mais nova, tive que vir com ela.

Hoje, depois de muitos anos, entendo a frase de Clarice Lispector que diz: “Brasília, uma prisão ao ar livre!” pois quando caminho no centro da capital, percebo que ressoa a dor. Sou mulher usuária de crack em processo de resistência e enfrentamento há oito anos. 

Não utilizo a palavra limpa porque ela é higienista e nos coloca num lugar de seres imundos, sem humanidade e que é de extrema crueldade. Lembro que fui chamada de rato quando estava ainda no espaço da rua, por isso, mesmo hoje estando em processo de não uso, reivindico este lugar, pelas (os) minhas e meus que estão ainda na rua, e têm o direito de estar e de serem respeitados e de acessarem a dignidade humana, que é negada a muitas (os) e muites desde sempre.Sou uma mulher preta. Eu não sabia que era preta, mas descobri num processo também de muita dor. Sou preta! Sou uma mulher periférica e hoje moro em Ceilândia Norte, onde – segundo o rap Cirurgia Moral, grupo que narra a realidade do nosso cotidiano aqui de baixo, “os versos do reino da morte ditam a sorte, nossa vida já é escassa em Ceilândia Norte”, onde o corre da sobrevivência é duro, onde é comum acordar e dormir pensando no que fazer para não deixar filho, neto, enteado e todos os que estão em torno de nossa vida à mercê da sorte, onde as mulheres resistem.

O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana

Vida na rua e no cárcere: cultura punitivista e proibicionista

Eu saí da rua em 2015, meu companheiro de vida e caminhada havia sido privado de liberdade e eu precisa dar suporte a ele, que é um homem negro, pobre e saiu de casa aos nove anos de idade. Foram 34 anos de rua, rua e grades e vice e versa. 

Viver o cárcere foi outra dor extrema. Crescemos dentro de uma cultura punitivista e proibicionista, que faz controle de corpos por meio de uma política de miséria, da qual a guerra e as drogas fazem parte. Todo o tempo que meu esposo ficou naquele lugar, eu fui a chefe de família, a mãe, a avó, a madrasta. 

Passei por um câncer no colo do útero e a cada dia surgia uma nova dificuldade. O sistema prisional é muito caro para nós, as famílias. Somos nós que sustentamos o cárcere, somos nós que fiscalizamos e fazemos o trabalho de recuperação que o Estado deveria fazer, garantindo minimamente a dignidade humana. O que chega para sociedade não é a realidade, nem do processo penal e muito menos da execução da pena. Mas eu somente compreendi isso quando vivi. 

Foram tempos difíceis. Ali meu melhor amigo e parceiro de vida estava submetido a todo tipo de violação. Não só ele como todas as pessoas privadas de liberdade neste país, principalmente as mulheres, que são abandonadas pela sociedade machista e patriarcal. Antes de tudo a sociedade nos pune por sermos mulheres. 

No sistema prisional, nós, familiares, somos também aprisionados e eu estava mesmo adoentada, me virando para poder suprir as necessidades da minha família, me alimentar, ter onde morar, não perecer. Eu fazia faxina, cozinhava para eventos, fazia trabalhos freelancer, de domingo a domingo incessantemente.

São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito

Luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista

Em 2019 eu cheguei no limite de minha sanidade mental e fui acolhida pela Agenda Nacional pelo Desencarceramento. Foi nesse espaço que eu senti a potência dos movimentos sociais. Eu não sabia como funcionava e somente acreditei que existia um lugar para familias de pessoas privadas de liberdade e sobreviventes do sistema prisional quando vi com os meus próprios olhos aquelas pessoas que faziam resistência e enfrentamento de forma coletiva. 

Quando cheguei no encontro, realizado no final daquele ano, em Fortaleza -CE , conheci muitos movimentos: o Coletivo Vozes do Cárcere, Elas Existem, EuSouEu, AMPARAR, RENFA e também as Tulipas do Cerrado

Nunca imaginei que ali eu encontraria o abraço, o acolhimento, inclusive a subsistência através do apoio coletivo dos movimentos e organizações que compõem essa luta antiprisional, desencarceradora, abolicionista e antiproibicionista. São tantas formas de luta, tanta gente diferente, mas unidas nos mesmos propósitos: paz, justiça, liberdade, igualdade e respeito. 

Naquele dia minha vida mudou, principalmente em relação à solidão que eu vivia na caminhada do cárcere. Conheci tanta gente incrível e que vem me ensinando tantas coisas. Uma delas foi Juma Santos. Nunca deixarei de citá-la porque as Tulipas do Cerrado é um dos lugares que hoje para mim é vida.

“O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada”

Pandemia: sem emprego, sem perspectivas

Quando a pandemia do Covid-19 chegou, fiquei sem fazer as faxinas, sem os freelancers e, se não fosse por essa rede de apoio, eu e minha família teríamos ficado sem amparo. Através destes movimentos, foi garantido a sobrevivência, a minha e tantas outras mulheres, sobreviventes da rua, do cárcere, o povo LGBTQIAP+ que sofrem e vivenciam grandes violações, abandono e são excluídos de forma muito cruel. 

No início da pandemia, meu esposo voltou para casa, em regime domiciliar. O medo tomava conta de mim. Vê-lo ali, com tanta dificuldade e sem oportunidade de emprego, sem ensino, sabia que ficaria difícil não ceder à vida errada.

“Não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19”

Rede de apoio: seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo

As Tulipas do Cerrado fizeram uma intervenção que foi crucial na mudança de visão de vida e de amparo na vida de meu esposo. Aliás, acolheu nossa família e estamos seguindo de pé por termos esses lugares de resistência, bem como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento, que vem trazendo também formas de fortalecimento para nós familiares. 

Nada sobre nós sem nós, seguiremos a cada dia cuidando do nosso povo, se cuidando juntas (os) e juntes. E hoje sei a importância da redução de danos nas nossas vidas. Sim, eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de ficar vivas (os) e vives! ”. 

A pandemia trouxe dificuldades muito piores para nós, mas eu posso falar que não imagino minha vida sem essas pessoas e movimentos que trouxeram para mim outro lugar de olhar para além de mim. Enquanto não estiver bom para todos (as) e todes não estará bom para ninguém. Nem fome, nem tiro, nem prisões e nem Covid-19.