Categories
25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Idade Pessoa Trans Não Binária Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“Tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance”

Há pouco mais de um ano, ou talvez há quase dois anos iniciei meu processo de transição de gênero. Diferente de muitas narrativas transvestigêneres, não fui acusada de ser travesti, mas encontrei inspiração e pertencimento entre minhas irmãs, irmãos e irmanes trans.

Apesar de hoje poder ler nos olhares assediosos e no deboche que me cercam cotidianamente nas ruas, toda a dúvida e confusão da cisgeneridade… de fato, fui eu mesma a primeira a me dizer travesti. Vinha neste processo de entender e recalcular a rota do meu corpo no espaço público. Transitava e se transfigurava de uma bixa branca, já não muito normativa, para uma corpa sempre com poucas roupas, alguma maquiagem e com peitinhos nascendo!

Levei um tempo para deixar de temer as ruas. Parece que quanto mais distante de um padrão binário você está, quanto mais estranha é a sua corpa, maior será a abjeção.

Gênero e performance

Talvez venha daí a busca incessante que muitas pessoas trans e travestis tenham pela “passabilidade”. Quero dizer, pela autorização em poder passar sem ser alvo de violências outras para além do assédio sexual que perseguem as mulheridades. E, consequentemente da pressão estética para que a gente se enquadre dentro de uma normatividade binária de gênero, o que já adianto e repito insistentemente em forma de mantra para mim mesma: nunca vai acontecer.

Nesse processo de me permitir a performance feminina nesta corpa com pau, tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance, mas também se trata de uma edição. A forma como eu edito meu corpo vai dizer o quão “feminina” ou “masculina” estarei diante à régua da cisgeneridade. E vai dizer também se serei tratada no feminino ou se terei que passar o dia corrigindo meu gênero. Quando não estou a fim de retalhar o meu rosto e decido sair com xuxu (barba mal feita), rapidamente já sou alocada no masculino. “Como assim mulher de barba?” ou “como assim um homem de barba e peitos?”

Confesso que ter que enfrentar isso diariamente era muito cansativo. Editar minha corpa para ser legitimada enquanto feminina também. Eu estava nesse processo de descoberta da minha travestilidade e de eterna negociação quando veio a pandemia do novo coronavírus.

Ações durante a pandemia

Naquele momento inicial, ainda em março, eu acabava de ser contratada para exercer o cargo de articuladora em saúde na Coordenadoria de AIDS de São Paulo. E, também, para desenvolver a frente de saúde da Casa Chama, uma ONG que presta serviços à população trans e travesti. O valor que eu recebia nessas duas instituições não eram altos, mas me possibilitaram, junto com o auxílio emergencial, ficar em casa e pagar meu aluguel e me alimentar até meados de setembro.

Sem precisar sair e poder desenvolver meus trabalhos de casa me livrou temporariamente e em partes de ter que lidar, negociar e sofrer os traumas de ser uma travesti nessa sociedade. Também me preveni da Covid-19, a despeito de outros possíveis agravos em saúde.

E isso também me colocou em contato virtual com muitas pessoas trans e travestis. Essas pessoas estavam em situações de vulnerabilidade social muito maiores do que a minha, inclusive. Pessoas que dependiam das artes para fazer dinheiro, e que não estavam tendo mais este espaço. São pessoas que precisavam continuar saindo para fazer pista, e expondo seu corpo a mais violências cissexista, ao racismo, às IST de forma geral e agora ao Covid-19. Em grande parte, e para além dessas dificuldades e exposições, também tinha o fato de que havia diminuído o número de clientes, tornando o trabalho sexual que já era difícil ainda pior e mais mal pago.

Estratégias

Dentro desse contexto, muitas meninas e meninos trans e travestis perderam suas casas, diminuíram suas refeições diárias. Muitas deixaram de fazer acompanhamento médico, deixaram de aderir às suas medicações antirretrovirais (ARV) para HIV. Muitas foram as que não conseguiram permanecer tomando ARV e voltaram a conduzir suas terapias hormonais sem acompanhamento médico.

Eu mesma fiquei quase este ano inteiro sem saber como estava minha carga viral para HIV, pois nunca consegui pegar o resultado dos meus exames feitos no início do ano.

Com todas essas demandas em saúde em mente, mesmo de casa comecei a desenvolver uma série de estratégias para assistir a essa população através da Casa Chama. Organizamos a distribuição de cestas básicas para milhares de pessoas, atendimento médico e ambulatorial, muitas vezes furando o bloqueio burocrático dos equipamentos de saúde, e fomentando uma série de discussões online sobre saúde, autocuidado e HIV/Aids. Contudo, isso não durou muito tempo. Já a partir de setembro foi preciso voltar às ruas. Foi quando comecei a desenvolver trabalhos de redução de danos pelo É de Lei com pessoas em situação de rua, pessoas que mesmo durante a pandemia não tiveram direito à alimentação, à moradia, e a quaisquer estratégias de prevenção.

Travestilidade

A pandemia da Covid-19 escancarou e aumentou a violência e a marginalidade contra as populações historicamente oprimidas. E é notável que quaisquer intervenções e tentativas de apoio para amenizar este quadro são feitas por ações singulares, por pessoas e instituições sociais muito específicas, e jamais pelo poder público. Para este, a Covid-19 soa muito mais como uma oportunidade do que como uma crise de sociedade.

E tem sido dentro desse contexto de profunda crise social, mas também de articulação política que construo a minha travestilidade. E sei que sob este aspecto, certamente não sou a exceção, mas a norma, pois travestilidade sempre foi sinônimo de resistência, de luta e de enfrentamento direto às principais estruturas de sustentação do capitalismo e da colonização.

Meu reflexo em minhas irmãs de luta, e em minhas irmãs que têm fome me transformam cada vez mais em uma monstra que faz do medo de andar nas ruas em ódio canalizado em tecnologia social. Tenho entendido que é este o projeto social desenhado para pessoas como nós, e sobretudo para pessoas racializadas (a branquitude não está acostumada a se ver racializada ainda…).

Sobrevivência

E se não a gente mesma, ninguém fará por nós, pois ninguém se importa com as travestis negras, indígenas, nordestinas e nortistas. Essas são expulsas e migram de seus territórios em busca de oportunidades em São Paulo, mas que muitas vezes acabam pedindo comidas nas ruas, montando suas malocas ou enfrentando as tensões das ocupações. Ninguém se importa também com as travestis que estão morrendo de AIDS nas ruas deste país. Elas sofrem ataques diários; são vistas como vetor de doença por uma sociedade higienista e eugênica; e que têm suas roupas e medicamentos queimados em uma tentativa constante de promover a nossa destruição física.

Dentro desse contexto de disputa social, a frase que repito insistentemente para me lembrar de ter forças para enfrentar o CIStema é: “se você não se importa com mais de 25 mil pessoas passando fome e revirando lixo nas ruas, não é comigo e com quem eu sou que você vai se importar”.

A crise social que estamos mergulhadas nos diz a todo momento que é preciso ter prioridades. E que esta não pode ser normatizar, adoecer e matar nossas corpas pelo simples fato de não nos dobrarmos diante da ficção inventada para colonizar a todes nós. É preciso ter prioridades e comprometimento com a vida. E muitas de nós travestis temos nos ocupado com a sobrevivência das nossas. Que as travestilidades inspirem cada vez mais lutas por uma sociedade mais justa.

Este é um relato pessoal e político sobre a construção da travestilidade.

Leia também: “Durante o isolamento, vi o quanto o ser humano é importante”

Categories
Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Mulher Cis Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“Ajudem o próximo, tem muita gente passando dificuldade”

Da forma que a gente pode, precisamos ajudar o próximo durante a pandemia da Covid-19, pois são muitos os necessitados. Eu faço parte de um movimento de moradia e ,durante os últimos meses, conseguimos ajudar cerca de novecentas famílias.

Por isso, gostaria de dizer a vocês que ajudem o seu próximo. Então, procure saber das pessoas que precisam de ajuda e doem o seu melhor. Nesses tempos é preciso nos unir para o bem de todes. Por fim, usem máscara e evitem aglomerações.

Leia mais: “Precisamos de cestas básicas durante a pandemia”

Imagem colorida de mães de pessoas puxando uma corda juntas para o relato sobre ajudar gente durante a pandemia.

Categories
25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância”

Tudo mudou com a pandemia. Eu, por exemplo, que sempre conciliei vários trabalhos, tive que me reorganizar radicalmente. Em minha atividade principal, de educador nas prisões juvenis na Grande São Paulo, aconteceu uma organização de educadores/as inédita de início, seguida de muitas demissões. Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância.

Pela minha experiência em rádio e Podcast, acho que foi mais fácil dar o passo para o vídeo e ver o que conseguiria fazer. Tinha de tudo um pouco na minha oficina: de leitura de jornais a gravação de músicas, de shows de grupo de rap a rodas de conversa.

À distância, fui por dois caminhos: música e leitura, tentando trocar o máximo possível de ideias com os meus alunos. Completamos 6 meses de aulas remotas e, apesar de tudo, ante às condições, aconteceu.

Foram 17 turmas, em 6 unidades diferentes, que renderam nove podcasts, quatro saraus e até duas fanzines. Fora as trocas, reflexões e afetos que não foram contabilizados.

Seguimos para 2021 na expectativa do fim da crise sanitária; das aulas presenciais serem retomadas sem colocar em risco a saúde de ninguém; da recontratação de quem perdeu o emprego e de encontrar algum aluno dessas aulas à distância, só que em liberdade

Veja também: “Hoje o meu quarto é minha sala de aula e lugar de estudo”

Categories
40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Durante a pandemia conheci histórias de muitas mulheres”

Sou uma feminista fiel, por isso, não recusei quando fui convidada para trocar uma ideia com as mulheres do centro de acolhimento emergêncial feminino, o único da zona norte – SP. O convite surgiu quando encontrei minha vizinha, que trabalha como assistente social do local. Ela pediu o favor de um dia de trabalho voluntário, e eu nunca mais faltei. Já são 6 meses de pura dedicação, e muitas historias lindas. A equipe de lá é maravilhosa, a de voluntarias até aumentou. Convidei duas amigas, mulheres negras, e todas as sextas estamos lá, emprestando um pouco do nosso axé. 

Cheguei lá em um dia de sol, em pleno mês de junho. No primeiro encontro, o local tinha muitas mulheres idosas, a maioria mulheres negras. Ao redor, olhares perdidos, cada uma no seu canto em silêncio.

O serviço está dentro de um clube. Devido ao estado emergencial da pandemia, o espaço foi cedido. As camas estão em duas salas, que antes serviam para aulas. Agora está cheio de beliches de ferro. Também têm os cones sinalizando onde elas podem ir, pois deve ser difícil morar em um local e não poder circular, cheio de seguranças para falar que não pode. É uma triste realidade que não espera, então as atividades são para geração de renda, tapetes de retalho, uma técnica que aprendi com minha mãe.

Arte enquanto forma de expressão

Minha família confeccionou alguns tapetes também, e por meio da venda destes, conseguimos comprar material para tocar as oficinas artesanais. A arte é a mais antiga forma de expressão. Por meio da arte não é necessário a comunicação verbal, pois falar cansa. Principalmente quando não obtemos uma escuta ativa. Então, nós facilitamos o contato delas com diversos materiais como pintura em tela, colagens, argila, mandalas, abayomi e os tapetes de retalho, costuras fuxico, confecção de máscaras. E tudo isso ao som de músicas. 

Iniciamos nossa conversa e logo nos tornamos amigas. Afinal, preta com preta sempre têm histórias em comum. A roda de conversa acontece em área aberta do clube e no final de cada atividade alguém sempre chama para conversar. Lembro-me de Maria Velhinha, que olhou para mim e contou que fugira de casa, pois não aguentava mais ser prisioneira de sua própria casa. Ela, além de não poder sair, pois é grupo de risco, não parava de cozinhar e limpar: “não sou escrava da minha família, não vou voltar”.

Tarefas domésticas ficaram mais pesadas

O desgaste das tarefas domésticas lotou o Centro de Acolhimento Emergencial. Aquela senhora ficou dias sentada na Rodoviária do Tietê, veio de outra cidade, como muitas ali. A violência de gênero estava estampada em cada rosto cansado. 

Já Maria Nova veio de Manaus, utilizou o dinheiro do que achava ser a última parcela do seu auxílio emergencial e comprou a passagem para São Paulo. Me contou que toda a sua família sempre morou na rua, em barracas. Naquele dia acabara de chegar no CTA, vindo de outro, comprou um celular de outra convivente. Estava distraída conversando em sua rede social quando uma senhora, que tinha feito quimioterapia no dia anterior, pediu para que eu fosse comprar uma coca cola com canudinho.

A mãe teve o filho levado

Convidei Maria Nova e juntas fomos buscar. Durante o percurso, ela me contou que o bebê foi retirado dela pela assistência social de Manaus. Descreveu o momento com muita tristeza. É que quando o bebê nasceu, Maria Nova já sabia que iam tomar. Ela contou que as ameaças eram constantes:

“quando me tomaram ele, nós estávamos na barraca, tiraram o meu bebê à força. Tentei de todos os jeitos pegar o meu bebê de volta, mas por causa da pandemia, não pude nem visitar.”

Aqui, Maria veio atrás de trabalho, não aguenta a tristeza de estar na cidade e não conseguir se aproximar do filho. A fala dela doeu no meu peito. Não queria desanimar a moça tão novinha, por aqui em São Paulo, tudo fechado devido a pandemia, tão difícil arrumar um trampo. Mesmo assim, a ensinei a utilizar os aplicativos de emprego. Fizemos um currículo pelo celular e ela me agradeceu, ficou feliz e até tirou uma foto comigo. Foi a única vez que a vi, 19 anos, uma mulher que já está enfrentando esse trauma… A equipe disse que ela se desentendeu com uma das conviventes e saiu do CTA.  É tanta violência que nem sei o que dizer.

Veja também: “As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção”

Categories
25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A pandemia mostra a face da desigualdade social no país”

Moradores de favelas se organizam para suprir as suas próprias necessidades, mas o governo escolheu flexibilizar colocando em risco toda a população

O novo coronavírus (Covid-19), infelizmente, chegou e vem mostrando durante todo esse ano a face da desigualdade social e do racismo enfrentado historicamente pela população que habita nas favelas e periferias do país.

No Rio de Janeiro é cada vez maior o número de casos confirmados e veiculados pela Prefeitura do Rio, mas sabemos que não é o real, já que os números continuam subnotificados. Sabemos que os testes feitos na rede pública não atende a toda população e a maioria das pessoas que conseguem é porque pagam pelo teste na rede privada.

O fato é que quem vive nas favelas já sabia o quanto sofreríamos com a pandemia, já que é neste local que há ausência de qualquer tipo de direitos. A própria saúde pública ainda é um direito a ser conquistado por essa população empobrecida.

Desde o final de 2019, por exemplo, foram diversos os postos de saúde e clínicas da família fechados, profissionais da saúde foram demitidos ou tiveram cortes salariais, deixando inúmeros favelados e periféricos sem atendimento na atenção básica.

Tem gente passando fome

Com a recomendação do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que toda a população fique em casa e siga as orientações do isolamento social para a diminuição da transmissão do vírus, fez outra necessidade da favela gritar, a fome. Ou seja, esta população se viu num beco sem saída: ou continua tentando trabalhar diante de uma pandemia colocando a própria vida e de seus familiares em risco; ou fica em casa, mas sabendo que vai faltar a comida, o gás, a verba para o pagamento das contas, dentre diversos outros problemas.

Para suprir parte dessas necessidades, esta mesma população tem enfrentando filas dos bancos em busca do auxílio emergencial, nem todos conseguiram se cadastrar, nem todos receberam. E quem recebe, sofre agora com a ameaça de não ter mais esse apoio emergencial por causa dos cortes do governo. Diante de tantos problemas que esta população vem passando, é dever de toda a sociedade apoiar a favela na cobrança de direitos e cuidados por parte do poder público.

A favela vem em todo esse ano tentando se organizar com campanhas de comunicação para prevenção, além da busca de doações de alimentos e materiais de higiene para sobreviver. Mas com a flexibilização ordenada pelos governantes, as doações só caíram e, infelizmente, o nosso povo está sofrendo com estas e outras necessidades como trabalho, recursos, alimentos, remédios, água, habitação, saneamento, dentre diversos outros problemas nunca antes garantido pelas autoridades e que neste ano de pandemia, tudo só fez piorar e deixar velado a face da desigualdade social brasileira.

Categories
25 a 39 anos Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Trans Prta Raça/Cor São Paulo

“Eu sou Patrícia e escrevi um poema: transcender”

Transcender

(Patricia Borges e Simone Ricco)

Decretada pan pan pandemia

caos total

março, mar de contratos cancelados

trans e travestis cheios de boletos para pagar isolados, confinados e tendo que se reinventar corpos dissidentes à margem,

mais vulneráveis em tempos de máscaras e covardia desmascarada

Como não sair de casa com aluguel pra pagar? Tendo que se alimentar?

O vírus pode ser mortal, com a fome é igual

O corpo que tem fome também é o ganha pão… Se a transfobia não fosse uma epidemia

Seria mais fácil ter profissão

Pra muites de nós foi assim

No tempo de estudar, viramos professores de nós mesmes

Caímos no mundo, correndo atrás do pão, e da sobrevivência, de cada dia A sociedade normativa sempre usou máscara

Pra disfarçar seu preconceito,

Para nos desqualificar rótula

Diz que sou mulher de pau,

Faz piada e pra dar uma disfarçada na própria libertinagem

“Homens de bem” agindo do modo mais boçal,

Nos empurram para a clandestinidade

Satisfazem seu prazer no mundo clandestino

Alimentam com miséria as putas baratas

Violentos, cheios de selvageria, nos querem sem direitos e cidadania Tiram a poesia dos nossos dias

Vou além dessa condição marginalizada

Tô sempre no confronto com a negação

Desta sociedade trabalhada no bons costumes machistas

que não respeita opinião diferente,

destrata trans, artista, preto e tudo que diz ser diferente

Trans forma preconceito em piada

E faz adoecer, sofrer e morrer por conta da vida precarizada

Por ser quem é…

 Tenho muitos motivos para lamentar e lutar Vivo lutos, mas tenho lutado pra ser trans poeta A literatura, na pademia e todos os dias

Repõe poesia na vida dura

Escrevo com alguma inspiração

E com muito desejo de reparação.

Meu nome é Patricia Borges, sou mulher transexual travesti. Sou ativista da Causa Trans e Travesti. Luto para que o Brasil seja igualitário para nosso corpos. Sociedade, pare de nós matar!

Leia mais: “Tenho entendido cada vez mais que gênero não é apenas uma performance”

Categories
40 a 59 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pará Prta Raça/Cor

“Finalmente, o poema que escrevi em 2016 se deixou reescrever”

Chove restos de noite
No rosto cinza da manhã
E a grande máquina estrangula o Xingú
Meus olhos abrem a custo
De desgosto
Ipês apagam sóis amarelos, roxos
Penso na volta grande do rio
Como numa canoa voadora
O menino Juruna pensaria não estivesse barrada a infância
Chove e a floresta povoa de fantasmas essa manhã
Mais dura que a piçarra amontoada na margem morta do rio estrangulado.

Paulo Vieira, Rio Xingu, novembro do ano da peste.

Sobre o monstro e a peste

Em 2016, recém-chegado à Altamira para o emprego de professor de literatura para jovens que vivem nos rios e nas florestas da região, deparei com a Usina que eu apenas conhecia pelas denúncias, sempre muito bem embasadas, no Jornal Pessoal do meu amigo Lúcio Flávio Pinto.

Escrevi o poema “no dia que vi o monstro” de chofre quando vi, naquela manhã chuvosa, a barragem, primeiro pela janela do carro e depois pelo retrovisor. Mas o poema ainda não me contentava, lutei com ele a luta vã, como queria Drummond, e nada. Os anos se passaram e abandonei a luta, derrotado.

Fenecendo em meio a perdas pessoais

Quando a peste chegou à Altamira, em março de 2020, pude me trancafiar em casa, e aqui vivi uma outra face da doença, aquela de quem não se contamina com o vírus mas vai definhando um pouco a cada dia ao ver pelas telas o país morrer física e simbolicamente.

Escrever poesia vai por um caminho tortuoso, nada que se consiga explicar com retórica. E não existe solução fácil, nem hora perfeita. Assim aconteceu.

Eu, aqui fenecendo já há mais de meio ano, perdido em meio a tantas perdas pessoais, numa recente manhã, ao ver que Daniela me pedia gentilmente um poema para este site, lembrei daquele de 2016, procurei e achei os versos malcriados e, finalmente, o poema se deixou reescrever. 

Categories
60 anos ou mais Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Estamos sobrevivendo de doações das caixinhas da escola do meu filho”

Sou antifascista e atualmente estou sobrevivendo à crise do isolamento social ao lado de meu filho de 6 anos. Faço parte da Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar), da Frente Estadual pelo Desencarceramento de São Paulo e Nacional.

A situação está muito difícil.

Estamos sobrevivendo de ajudas das caixinhas que colocamos nas escolas, entre elas a do meu filho. Além disso, para conseguir sobreviver, ofereço oficina cultural como freelancer, da Frente, da Amparar e de um podscat que falo sobre minha vida desde a infância. 

Categories
40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor São Paulo

“Não podemos perder mais pessoas por causa de fome e frio”

Não quero aceitar que vamos perder mais pessoas por causa de fome e frio. Em pleno dia da semana, a imagem mais dolorosa que vi em 2020: Tudo fechado e ruas lotadas, às 7 horas da manhã, na esquina da igreja Santana. Muitas pessoas, uma atrás da outra, em uma fila que não tinha fim, cruzava a esquina e descia a Cruzeiro do Sul. A maioria, composta por homens negros, aguardava por um pão e um copo de café.

Eu já tinha passado ali muitas vezes. Trabalho com a população de rua há 10 anos pelo SUS e quando saio do plantão faço sempre esse caminho. No meio da multidão muitos rostos conhecidos e de muita gente que nunca vi. 

Estava tão frio, acredito que era o dia mais frio do ano. Senti vergonha, abaixei a cabeça e passei por eles, com a sensação de impotência. Passando perto de quem estava descalço naquele frio horroroso, senti vergonha de estar calçada.

Eu sempre me revolto com o mundo, e quanto mais estudo mais a ignorância deixa de me proteger. Não aguento sentir a desigualdade social aumentar.

Solidariedade

Vejo a vulnerabilidade social como um problema de todos. Por isso, acionei alguns amigos e lá fomos nós para as ruas alguns dias depois. Daquela realidade que me assombrou, a união levou comida, roupas, cobertores, máscaras, descartáveis água, lanches e doces em uma comitiva de 5 carros Muita gente envolvida! E foi assim que conheci mais pessoas que também realizam esse trabalho, e de forma organizada. Fui até inserida em um grupo de WhatsApp, em que os coletivos e religiosos se organizam. Através de uma planilha, cada um vai anotando aonde e que horas vai fazer a ação.

Povo do axé com o povo do amém, em um único lugar, todos pelo mesmo objetivo, e no maior respeito. Essa galera não deixa na mão. Já fui buscar doação em todos os tipos de residência, mó galera diversificada, esforçada e importante. Tenho certeza que, por eles, ninguém passaria fome e frio. A galera sem teto os chamam de boca de rango, sempre envolvidos com falas de carinho e um momento de escuta prazerosa… essa galera é sem palavras, sempre correria!

Sou redutora de danos, a fome é um dano que dói, que desorienta, que desorganiza a pessoa, sei bem como é a dor da fome e por isso não consigo passar sem ver. Muitos falam que é uma fraqueza minha, “ser muito boazinha”, mas nessa pandemia utilizei todas as minhas forças. Não consegui parar nem por um dia. O cansaço bateu por diversas vezes, mas a cada dia agradeço a Xangô, que me guia, e sinto esse Axé em mim.

Categories
25 a 39 anos Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A gente foi se adaptando a novos hábitos durante a pandemia”

Foi muito difícil me armar nessa pandemia aí em que vivemos. Pensei tanta coisa, inclusive que a qualquer momento ficaria doente. Pensei em meus filhos aqui em casa. Pelo menos deu para trabalhar, caí para dentro das entregas, e trampei de entregador em uma pizzaria.

O que vinha para entrega, tava agarrando. Fiquei desesperado, tenho três filhos em casa. Não sabe se vai ter trabalho, tava tudo fechado, no começo ficou com pique de que ia fechar, não ia ter nada…

Enfim, foi aquilo, fui me adaptando, me preveni, passo bastante álcool em gel na mão, lavo bem as mãos, deixo sempre o sapato fora de casa. Fazendo coisas assim que a gente não fazia todos os dias, agora tem que se adaptar a esses hábitos, pois tenho três filhos em casa. São dias difíceis e não desejo isso para ninguém. 

Muita gente morreu. Alguns familiares, alguns amigos, pegaram essa parada aí. Momentos assim são assustadores mesmo. Mas agora está dando para controlar, tem trabalho ainda, né? Tomara que agora não feche tudo de novo. Tomara que não venha o pior, que até então tá dando para levar.

Mas tem muita gente morrendo ainda. Tem que se prevenir nessa pandemia, tem que se cuidar, lavar bem as mãos. Toda hora. Tem que ser chato mesmo, toda hora tem que estar vendo as crianças, limpando eles, limpando as coisas com álcool, lavando bem o chão, nunca entrar em casa direto da rua com os sapatos. É assim, novos hábitos de viver. Novas coisas.

A gente foi se adaptando aí.