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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Mulher Cis Parda Roraima

“Minha mãe foi a primeira profissional da saúde a morrer por Covid-19 em Roraima”

Meu nome é Luana Lopes Lemos. Tenho 32 anos e sou de Rorainópolis, onde trabalho como servidora pública. 

Durante esse período da pandemia eu tive uma perda irreparável, que foi a da minha mãe. Ela era técnica de enfermagem, servidora municipal e estadual, e na pandemia ela esteve afastada de suas funções na rede estadual por apresentar comorbidades e fazer parte do grupo de risco. Porém, na rede municipal ela seguia trabalhando e, em maio de 2020, contraiu a doença.

Quando nós tivemos a confirmação que ela testou positivo para a Covid-19 foi um desespero. Nós sabíamos da gravidade da situação.

No dia 7 de maio de 2020 foi transferida de ambulância para Boa Vista, chegou no hospital da cidade consciente, mas não reagia às medicações e foi entubada. Infelizmente, no dia 22 de maio, ela morreu. Desde então, o meu mundo foi desabando.

Ela foi a primeira profissional da saúde a vir a óbito por Covid-19. Fazia oito anos que ela trabalhava na rede estadual e, no município, ela tinha sido empossada no ano anterior e trabalhava na UBS (Unidade Básica de Saúde), no atendimento de triagem – recepcionar o paciente, preparar seu prontuário, dar seguimento ao atendimento médico. No Estado, ela já trabalhava em toda a área do hospital, fazia escalas e plantões. Trabalhava na enfermaria e na emergência. Além de técnica de enfermagem, ela era pedagoga e sempre trabalhou com muito amor. Ela tinha 53 anos quando morreu.  

Luto

Nessa época eu estava grávida e aproveitava muito essa gravidez, que foi planejada, e a morte da minha mãe me pegou de surpresa. Presenciei a situação que ela viveu no hospital, consegui passar o dia das mães com ela, mas ela não resistiu. Não consegui nem me despedir dela. 

Infelizmente essa pandemia fez isso com todo mundo. Ninguém teve o seu último adeus. Foi um ano bem difícil, com muita dor, angústia e sofrimento. Ao longo do tempo a gente vai se anestesiando dessa realidade porque tem que seguir em frente, a vida continua, mas foi bem difícil. 

A única coisa boa de 2020 é que neste ano meu filho nasceu. Com seu nascimento, consegui preencher o vazio causado pela morte da minha mãe. Foi muito confortante, ele me trouxe alegrias.

Eu acredito que a vacina é a única maneira de a gente conseguir essa imunização tão esperada, o controle pandêmico

Vacinação

Eu e meu esposo nos vacinamos. Além do meu filho que nasceu em 2020, tenho outro de 11 anos que ainda não se vacinou por conta da idade. 

Com certeza a vacina ainda é o melhor caminho e é preciso conscientizar a população sobre sua importância. Hoje em dia ainda existe um negacionismo muito grande em relação aos efeitos da vacina. 

Eu acredito que a vacina é a única maneira de a gente conseguir essa imunização tão esperada, o controle pandêmico. Não adianta eu tomar a vacina, meu esposo tomar a vacina e no meu próprio local de trabalho outras pessoas não tomarem. Isso aconteceu comigo. Eu trabalho na área da Educação e tenho colegas que não estão vacinadas. 

Para que a gente possa voltar ao nosso normal – que nunca mais será normal – as pessoas precisam estar imunizadas. É muito importante as pessoas se vacinarem!

Relato de Luana Lemos, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Roraima

“Foi na pior fase da pandemia que meu irmão morreu. Ele tinha 35 anos”

Meu nome é Josué Ferreira. Eu tenho 25 anos e sou jornalista.Quando eu comecei a cobrir a pandemia, nunca pensei que algo iria acontecer com minha família, mas infelizmente aconteceu.

Foi na pior fase da pandemia que meu irmão morreu, em fevereiro de 2021. Ele era novo, tinha 35 anos. Acabou fazendo aniversário na UTI. Eu fiquei com ele grande parte desse período de internação, revezando com minha cunhada. Ver meu irmão em um estado grave e sem conseguir fazer muita coisa foi bem difícil. 

Ele estava internado em um Hospital de Campanha de Roraima e seu estado acabou piorando. Com o agravamento de sua saúde, seu pulmão ficou comprometido e ele foi transferido ao  hospital referência em Roraima e precisou ser entubado. 

Esse foi o momento mais difícil da pandemia porque foi a última vez que eu falei com ele. Eu disse para ele não se desesperar e ele me respondeu dizendo: “mano, eu estou indo morrer. Adeus”. Ele se despediu em um tom muito desesperador. Ter falado com ele pela última vez, nas circunstâncias que nos falamos, me marcou muito.

Meu irmão era uma pessoa cheia de vida. Tinha planos de ter a casa própria; planos de ver o filho crescer. Ele deixou um filho de 10 anos. Os sonhos foram interrompidos e a família ficou dilacerada. 

Muitas pessoas estariam vivas ainda se tivéssemos um sistema de saúde bom. Mas a realidade foi outra: não havia medicamento, equipamento; e não havia profissionais o suficiente para cuidar dos doentes. 

Volta ao trabalho

Outro momento complicado foi quando tive que voltar a trabalhar. Eu voltei para fazer cobertura da morte, dos casos de Covid-19. Continuar a falar da morte sabendo que um familiar seu firou estatística, um número, é muito forte. 

E isso só aconteceu por negligência. Muitas pessoas estariam vivas ainda se tivéssemos um sistema de saúde bom. Mas a realidade foi outra: não havia medicamento, equipamento; e não havia profissionais o suficiente para cuidar dos doentes. 

A morte do meu irmão ainda é uma ferida que está cicatrizando. Não é vida que segue. 

Processo de luto

No fim do ano eu viajei para participar de um processo de seleção para uma vaga de Mestrado na Universidade Federal de Roraima e meu irmão foi uma das pessoas que mais me apoiou. Quando eu consegui a vaga de Mestrado, ele ficou super feliz, me mandou uma mensagem me parabenizando e, no mesmo dia em que foi realizada a primeira aula do mestrado, eu não pude participar porque estava no hospital atrás de um exame de tomografia para meu irmão. .

Sei que o tempo vai amenizar a dor, mas precisei procurar uma ajuda de um profissional, um psicólogo. Com ajuda profissional, fui entendendo meu processo de luto. 

Não tem como acordar e dizer: “ah, está tudo bem, não aconteceu nada, estávamos sonhando”. Eu só espero que a gente acorde desse pesadelo o quanto antes.

Mortes por negligência

Eu acho que a pandemia tem muitas facetas. Você acaba se deparando com várias delas ao longo de mais de um ano de pandemia. E, mesmo assim, ainda existem muitas pessoas que não acreditam no vírus.

É triste porque muitas pessoas perderam a vida por conta da negligência. O Brasil passou por uma fase de negligência muito grande: havia vacinas para serem compradas e o país não comprou. É a partir desses fatos que eu penso que meu irmão poderia estar vivo hoje. 

Não tem como acordar e dizer: “ah, está tudo bem, não aconteceu nada, estávamos sonhando”. Eu só espero que a gente acorde desse pesadelo o quanto antes. As pessoas precisam entender que o vírus mata, que famílias inteiras foram dilaceradas! E é muito grave e preocupante! 

E mais uma coisa: fora Bolsonaro! É isso que a gente quer!

Relato de Josué Gomes, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Amazonas Branca Homem Cis Pós-Graduação Completa

Fizemos muito durante a pandemia e só paramos nos momentos mais graves

A essa altura já estava bastante envolvido, mas vi o Festival pela internet por conta da pandemia. E em 2020 e 2021 não teve Festival. Então nunca passei por um Festival como Conselho, de verdade, na arena.

Meu nome é Diego Omar da Silveira. Sou professor da Universidade do Estado do Amazonas, aqui em Parintins, na divisa do estado com o Pará. Cheguei aqui há quase dez anos, na minha aventura amazônica. 

Quando vim, recém-aprovado no concurso, tudo era muito novo. Desembarquei aqui com meu filho – apenas eu e ele – e era uma nova vida que começava. De lá para cá, muita coisa mudou. Conheci já nos primeiros dias a Priscila, minha companheira, com que estou desde então e com quem tive uma filha, a Maria Bethânia, uma menininha amazonense. Aos poucos fomos construindo juntos uma vida.

 Gosto da cidade e desde cedo achei a festa dos Bois rica e interessante. Demorou um pouco para que aquilo me interessasse como tema de pesquisa ou como um lugar de atuação. Mas tudo se encaminhou para que eu escolhesse o Caprichoso… na verdade, a minha chegada se deu em uma “semana azul” – como dizem aqui, quando toda a cidade se preparava para a gravação do DVD do Centenário do Caprichoso, em 2013. Tudo muito lindo e que me capturou.

Sou Caprichoso e não pretendo mudar

Desde então sou Caprichoso e não pretendo mudar. Na medida em que comecei a guinar meus temas de pesquisa fui me aproximando mais do Bumbá também. Sempre gostei do ambiente, da construção, das referências sonoras e estéticas do Caprichoso. Elas têm uma brasilidade que escapa ao contrário e, talvez por isso, sempre me senti muito acolhido aqui. Mas fiquei uns anos sendo apenas torcedor mesmo. 

Fui conhecendo as pessoas, orientando alguns trabalhos, lendo a bibliografia sobre folclore e Boi-Bumbá, mas sem muitas pretensões. Os contatos com quem fazia o Boi nunca foi muito próximo até 2017, acho. Foi quando conheci o Ericky Nakanome e passamos a trocar algumas ideias.

Em 2018 ele me convidou para olhar alguns textos, num exercício de revisão e no final daquele ano me chamou pra fazer parte do Conselho – foi um susto e uma alegria. Ajudei como pude em 2019, em meio a um momento familiar difícil, já que a minha filha faria uma cirurgia de relativa complexidade às vésperas do Festival e em Brasília.

Imprevistos da pandemia

Esse “título” foi entregue aos Bumbás em 2019 e depois não teve mais festa. Mas tínhamos que pensar em políticas de salvaguarda, precisávamos dialogar com a sociedade e começamos a discutir estratégias. Vieram as lives e, depois, com a Lei Aldir Blanc, a ideia de publicar alguns livros e organizar o Centro de Documentação e Memória do Boi. Tiramos nossas intenções do papel e isso permitiu, inclusive, que a gente fizesse o registro da memória das pessoas ligadas ao Caprichoso nesse edital da DHESCA Brasil. 

Como a gente já estava construindo um banco de memória, esse se tornou um projeto paralelo. E é isso… estamos nessa luta. Quando o Caprichoso suspendeu o funcionamento de todos os setores para que a gente evitasse os riscos e não colocasse ninguém em risco. 

Mas discutimos muito nossos projetos, aprofundamos as pesquisas, pensamos nossa história e articulamos os livros que estão saindo agora, nesse fim de ano. Foi difícil ver a situação dos artistas, dos trabalhadores do Boi de uma forma geral. Muita gente do setor da cultura ficou desamparada – mas travamos juntos essa batalha. E a ideia é continuar… O CEDEM tem uma tarefa enorme pela frente e queremos tratar com mais carinho a memória do Boi. 

Não vamos parar de receber, tratar e divulgar esse enorme legado que ainda é pouco visibilizado.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Prta

A pandemia me machucou bastante

Quando a pandemia ainda não tinha chegado ao Brasil, eu já estava acompanhando as informações, por ser jornalista. E os dados que nós temos hoje sobre a pandemia são levantados pelo observatório de imprensa. Isso evidencia a importância desse ofício, tão atacado pelo governo vigente. Em 2019, eu atuava como assessor parlamentar de um deputado, que não se reelegeu e, por isso, fiquei desempregado.

Tenho 31 anos, nasci em Salvador, que é uma terra que eu amo, mas que não me ama. Digo isso por uma série de questões estruturais.: sou cristão, filho de pastor – mas costumo dizer que sou um cristão sem frescuras, porque eu bebo, xingo, fumo, transo e acredito em um ser que não me julga por essas questões. Tenho uma fé que, acima de tudo, acolhe e aceita as diferenças. 

Sou jornalista e, apesar de saber, me esforçar e receber feedbacks sobre a minha competência profissional, eu ainda carrego um complexo de inferioridade que me atrapalha bastante, mas que não me impede de realizar. Sou cantor, compositor, músico… também sou ativista, de vez em quando – porque ativismo não paga boleto. Desde cedo, o que me fez ser taxado como “rebelde” foi o fato de eu nunca ter aceitado a missão de ser exemplo. Eu nunca quis ser exemplo de nada – e meus pais queriam que eu fosse. 

Laços de família

Normalmente, só falo com as pessoas que tenho intimidade. Minha família era muito humilde. Lembro que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, meu pai ficou desempregado. Eu e meu irmão fomos matriculados numa escola em tempo integral, que ficava do outro lado da cidade. Acordávamos às 4 da manhã e chegávamos em casa às 20h/21h. Sem dinheiro para pagar passagem, subíamos no ônibus pela parte de trás, com o caderno dentro de um saco, e descíamos em um ponto muito distante e completávamos o trajeto até a escola caminhando.

Era um processo delicado. Na escola, me batiam e praticavam bullying comigo – em um tempo que nem se chamava de “bullying”. Aturei essas situações por algum tempo, até que um dia eu me revoltei e a introspecção se tornou violência. Passei a revidar as agressões. Apesar de gostar de estudar, eu não era estudioso, porque eu assimilava o ambiente da escola a algo parecido com uma cadeia. Ainda assim, passei a me envolver com o grêmio estudantil. 

Perdi vários anos na escola – era reflexo de eu estar tentando me encontrar em casa e me encontrar em meio aos questionamentos que a sociedade fazia sobre mim. Minha mãe faleceu em 2014, vítima de um infarto. E eu presenciei a passagem dela. Tínhamos acabado de chegar da igreja, ela tinha pregado naquele dia. Ela pregou sobre um texto que dizia:

“Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.

E nesse dia ela pereceu. E eu questiono a morte da minha mãe até hoje, porque sempre fui um ser questionador. Meu maior exemplo de fé era a minha mãe e de conduta cristã, o meu pai. A rigidez do meu pai me tornou mais introspectivo. 

Eu trabalhava no Pelourinho antes da pandemia

Eu trabalhava no Pelourinho como cinegrafista de turismo. Um amigo, que foi recrutado no colégio, pelo Gapa, para um processo de formação, me falou sobre a capacitação. Eu quis participar, mas já não havia mais vagas – mesmo assim, insisti. Após o curso, me tornei arte educador, trabalhando com música, através do hip-hop, e foi no Gapa, através das oficinas temáticas, que eu comecei a me enxergar enquanto pessoa preta, e perceber as diferenças de raça, de gênero e tudo mais que existia e ainda existe. 

Passei a estar muito mais atento aos preconceitos. Cheguei a cursar o técnico em música na UFBA e saí de lá, justamente, porque sentia que as pessoas tinham um pensamento muito elitista. Quando ingressei na faculdade de jornalismo, passei por dificuldades. Ia de bicicleta, ou tentava entrar no ônibus sem pagar, negociava com o motorista. Eu ainda não entendia muito do que se passava, mas a maneira como as pessoas me liam era consequência do racismo, dessa ideia de que o homem preto não tem sensibilidade. 

Quando namorei com uma mulher negra de traços finos, lida pela sociedade como branca. Eu, mais retinto, de cabelo crespo, traços negroides, enfrentava um tipo de preconceito, que eu nem sabia que era preconceito, quando perguntavam se eu era o segurança dela. Hoje, em outro relacionamento há 7 anos, ainda sinto essa falta dessa aceitação social. 

Do carnaval à pandemia

Como, na comunicação, eu tenho bastante possibilidades – trabalho com audiovisual, fotografia, jornalismo “convencional” e mais uma série de coisas – busquei trabalho como freelancer. Cheguei a participar da cobertura do carnaval para a Secretaria de Turismo. No penúltimo dia de carnaval eu me tranquei em casa e não saí mais – somente para o que era essencial. 

Moro com meu o irmão, mas nós sequer nos vemos. Eu passo o tempo dentro do quarto, e ele tem uma rotina de trabalho de uma média de 9h – do trabalho ele vai para a academia e quando chega, eu continuo no meu quarto. Segui isolado. A única pessoa com quem convivi durante quarentena foi a minha namorada, que, em home office, foi ficar comigo, não na minha casa, mas no meu quarto. Isso foi muito doido, porque a gente se conhecia, mas não tão intensamente – não dividindo por tanto tempo o mesmo ambiente. 

Eu sou um cara muito ativo, mas me vi mais uma vez ficando introspectivo, porque estava sem saber como lidar com essa fase de autoconhecimento, na qual eu conheci partes de mim que não gostei. Na mesma proporção em que eu desgostava da minha própria personalidade, eu passei a só olhar para mim, não conseguia enxergar a minha companheira. Estávamos afastados de tudo. 

Tive que depender do auxílio emergencial

O desemprego, que me forçou a depender do auxílio emergencial, também foi um fator de incômodo. Eram conflitos internos e externos. Cheguei a viajar quando surgiu uma proposta de trabalho a mais de mil quilômetros de Salvador e era a minha única saída – ou eu ia, ou a situação financeira ficaria ainda pior. Passei pouco mais de um mês fora e voltei. 

O meu maior medo na pandemia foi perder – tanto para o vírus quanto para os desafios da convivência – a pessoa que eu mais gosto depois de mim – a minha companheira. Foi uma fase muito difícil, de muito desentendimento. Mesmo estando no mesmo lugar, ficamos muito distantes. Não conseguíamos mais ter compreensão, cumplicidade. 

Eu venho de um processo de depressão muito grande, então, eu me cuido para não voltar a ter um pico de depressão severa. E tudo isso que passamos, me machucou bastante, porque dói viver isso com quem a gente ama. Mesmo assim, as pessoas me procuravam em casa pedindo ajuda, porque, como falei, sou ativista social – sou coidealizador do Coletivo Social Fábrica de Rimas – e sempre tentei apoiar a comunidade. 

Conseguimos pensar em estratégias, criamos a Geladeira Solidária, uma iniciativa que repercutiu na imprensa e foi copiada por instituições, até mesmo em outras cidades. Quase 800 famílias foram ajudadas por esse projeto.

O desejo de um futuro próspero após a pandemia

Eu quero conseguir construir um futuro para mim no qual eu tenha o suficiente para prosperar as pessoas que eu amo e, se eu constituir uma família, não deixar que eles passem pelo que eu passei. Infelizmente, eu acho que as pessoas sairão dessa pandemia mais egoístas.

Em compensação, penso que as pessoas se olharão mais.

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25 a 39 anos Amazonas Ensino Médio Completo Indígena Mulher Cis Sem categoria

A pandemia afetou as mulheres indígenas

A pandemia chegou e não conseguimos mais ter esse lucro de vendas. E, também, nós da comunidade, para tentar prevenir à Covid-19, acabamos usando muitos remédios caseiros, como raízes, sementes, plantas e folhas.

Meu nome é Gabriele Maraguá Otero, sou do povo Baré. Meu nome indígena é Yra, que significa mel. Sou do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), um município onde há a maior predominância de indígenas do Brasil. Onde têm 23 etnias. Eu nasci e cresci no meio da Amazônia, perto do Rio Negro e nos verdes da Amazônia.

Defendo o meu povo como uma Yauaretê, como uma onça. Não só o meu povo, mas as 23 etnias. Sou Técnica de Enfermagem e, atualmente, eu estudo teatro. Sou do Corpo de Dança – CDC Caprichoso, sou ativista e defendo a causa das mulheres artesãs indígenas. No meu município não tem festa de Boi, lá as festas são organizadas por tribo: tribo Baré, tribo Tukano e tribo Filhos do Rio Negro.

Para eu amar o Boi, do jeito que amo hoje… é uma longa história.

Cheguei aqui em Manaus em 2017, e um amigo me chamou pra eu fazer parte da Raça Azul. Eu queria viver essa experiência, queria conhecer mais o Boi. E eu fui lá, participei da galera… e fui amando cada vez mais. E hoje, eu sou uma das dançarinas do CDC. É muito lindo escutar música de Boi, escutar um ritual, os maracás, as flautas, as histórias, contos e lendas, ainda mais as lendas que são esquecidas – aí o Boi levanta e traz a identidade dos povos indígenas.

Eu achei isso muito lindo.

A música do Boi traz a originalidade de cada povo, de cada nação. Nosso passo, em São Gabriel, é um passo tribal, o nome que eles falam aqui é o Oca-Oca, – e para eu aprender foi uma dificuldade imensa.

Eu tive que ensaiar muito, mais ou menos um ano, pra eu poder pegar o gingado, o bailado. Eu ia fazer o teste e falei para a coordenadora, Edinalda. Disse que eu não tinha tanto esse movimento. E ela falou com um amigo dela, o Carlos Vieira, para me ensinar um pouco do ritmo de Boi. Aí foi quando eu fui aprendendo e me adaptando com o gingado, ficando mais solta a jogada de perna.

 A partir disso comecei a me desenvolver na dança. Atualmente, eu moro na comunidade Parque das Tribos, primeiro bairro indígena de Manaus, onde existem mais de 30 etnias. Lá existem as etnias Toto, Munduruku, Tukano, Baré, Dessana e diversas outras.

A pandemia afetou diversas pessoas do meu povo

A pandemia afetou as mulheres indígenas, os senhores artesãos e trabalhadores em vendas. As pessoas que vivem de vendas e artesanato precisam ir para à cidade divulgar e vender os seus produtos. É uma das únicas formas de conseguirmos nosso sustento.

Infelizmente, aqui na comunidade, tiveram várias mortes por causa da Covid-19, como a do nosso Cacique Geral, Messias Kokama – que logo no começo da invasão da comunidade lutou com os policiais do começo ao fim.

Entramos em pânico.

Como é uma doença nova, ninguém sabia como fazer e o que fazer. Nossa única opção era evitar que nosso povo pegasse a doença.

Ainda não estamos em 100%, mas estamos em 40, 50%. Dessa forma, vamos evitar a exposição, usar máscara e colocar álcool em gel.

Ainda espero que, logo quando tudo isso acabar, nós possamos nos abraçar e nos reunir novamente para cartar, dançar e receber aquele calor forte que só o Boi Caprichoso possui.

Se reunir, e todo mundo vacinado, para podermos curtir sem nenhuma preocupação.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

A pandemia forçou nossa renovação

Foi neste momento que começou a pandemia. Antes de tudo, nós estávamos com uma perspectiva muito boa para o Festival de 2020. Sendo que, em 2019, a gente estava com um projeto bem legal de artistas, para fazer umas fantasias para 2020. Desde então, a gente estava fazendo o show de turistas e, quando veio a pandemia, a gente teve que parar.

Meu nome é Diego Cruz Azevedo. Atualmente sou figurinista do Boi-Bumbá Caprichoso. Comecei sendo figurinista em 2017, na gestão do presidente Babá Tupinambá. Mas venho trabalhando desde 1998 com o tio Deco, fazendo tribo e tuxaua, na agremiação.

Então, assim, comecei com ele, depois fui para a Escolinha do Boi-Bumbá Caprichoso e aprendi mais ainda. Fiz desenho, fiz artesanato de luxo e depois eu fiz dança. E depois da Escolinha eu comecei já a ingressar na vida de artista. Então, trabalhando com meu tio e com outros artistas do Boi-Bumbá Caprichoso que sempre me convidaram pra trabalhar. Aí, aprendi muito trabalhando no Festival.

Eu comecei a viajar pra São Paulo, sendo reconhecido pelo meu trabalho. Na gestão do Babá Tupinambá, em 2017, foi que eu fui convidado pelo presidente do Conselho de Artes, Éricky Nakanome, pra ingressar no quadro oficial de artistas, para fazer a Marujada. Desde então, eu estou no quadro de artistas.

“Perdi alguns parentes na pandemia”

Com a pandemia, todo mundo ficou nas suas casas, com os cuidados básicos pra não pegar a doença. Perdi alguns parentes na pandemia. Quando vieram as lives dos Bois, os diretores me convidaram para participar, para fazer fantasia, com o intuito de não ficar parado. Então a gente sempre ficou ajudando aqui na agremiação, nas lives. Quando tinha algum evento do Boi, a gente ia, mas ia sempre prevenido. Então, com isso, a gente teve que aprender a lidar com a pandemia, porque já não voltamos ao normal.

 Com a pandemia de Covid-19 que foi acontecendo, nós tivemos que nos renovar. Então, com essas lives do Boi, eu tenho uma equipe de seis pessoas – como eu não podia contratar muitas pessoas, eu sempre ficava revezando com os meninos que sempre me ajudam.

Eu ficava revezando, porque, é claro, sempre dependemos muito do festival. A nossa renda é o Festival. Então, como o evento não aconteceu, a nossa renda ficou muito baixa. Além disso, eu sempre revezava com as pessoas mais carentes que eu, para poder, de alguma forma, ajudar com o sustento de suas famílias.

A esperança da vacina

Com a chegada da vacina, já deu mais uma esperança pra gente. Reuni mais pessoas para o trabalho e isso ajudou mais ainda o Caprichoso a fazer as fantasias – que são os figurinos que a gente começou a fazer com a minha equipe.

Fora as equipes dos outros artistas também que começaram a se juntar. Começou a renovar a nossa vida de novo. Não ao ponto de estar tudo normal, mas a vida já começou a melhorar.

A expectativa que nós estamos tendo é de que para o ano que vem, seja o melhor Festival de todos os tempos. Porque é uma espera de dois anos, e por isso, o Festival vai ser grande! E, com isso, o Caprichoso vem muito bonito. Além do mais, temos conversas corriqueiras com o Conselho, que repassa todos as informações necessárias, portanto, a expectativa é alta para o ano que vem.

Ser mais é abranger o coleguismo, a amizade.

Perdemos muitos amigos na pandemia, mas, os que permaneceram em nosso meio, a gente tem que acolher.

A pandemia veio e mostrou pra gente que a gente tem que gostar do próximo, para podermos ir para a frente. E você que ainda não se vacinou, vacine-se.

 Eu já tomei as minhas duas doses, e aqui, o pessoal do Caprichoso, para conseguirmos fazer tudo o que quisermos, precisamos estar completamente vacinados.

A vacinação garante maior tempo de vida para as pessoas.

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Completo Mulher Trans Prta

“Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas não era verdade”

Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.

Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.

Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.

Se reconhecer como uma pessoa trans

Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.

 A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.

Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.

Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.

Uma juventude conturbada

Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.

Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.

Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”

Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.

Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.

As dificuldades de uma pessoa trans

Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.

Lá, tive meu nome social respeitado.

Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.

Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.

Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.

Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.

O mercado de trabalho para pessoas trans

De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.

Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.

Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.

Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.

Os anseios do pós-pandemia

As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.

Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.

Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.

Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.

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25 a 39 anos Amazonas Ensino Superior Completo Mulher Cis Parda

“Eu vim ver meu Boi”

Minha trajetória no Boi foi tão magnífica, para mim, pois pude contribuir a partir do que eu faço de melhor: dançar. E, ainda,  fui reconhecida por isso! Mas além do lado pessoal, é muito bom saber que você está somando – não só no palco do curral, mas também na arena do Bumbódromo, onde acontece o Festival. Cada um de nós é só um pontinho, mas um pontinho que liga os outros e que faz parte de todo o espetáculo.

Meu nome é Fernanda, moro em Parintins (AM) e faço parte do Corpo de Dança Caprichoso, conhecido CDC. Estou à frente do CDC como coordenadora, a convite de Érick Beltrão, e, mesmo ajudando nos bastidores, eu continuo como dançarina, fazendo o que eu gosto. 

Comecei a minha trajetória aqui — se eu não estiver enganada — em 2008, através de uma pessoa conhecida, o Érik, que me apresentou o projeto. Recebi o convite, fui muito bem recebida e comecei a frequentar. Antes disso, tentara fazer parte de outro grupo, que não deu certo e, foi então, que o Érik me convidou para fazer parte daquele que, até então, se chamava “Troup Jovem”. De lá para cá, acabei acompanhando todo o processo de mudanças de nomes, até chegarmos ao CDC.

Do curral para a vida

Fiz muitos amigos durante meu tempo no grupo que não dá para dizer serem só “de dentro do curral”, mas para minha vida todinha, que levo para a vida toda. Até meu casamento veio de lá: me casei com um dançarino do Boi, estamos juntos há 10 anos e temos um filho! A Dança do Boi que fazíamos no CDC nos proporcionou muitas viagens para nos apresentarmos e foram nesses momentos que pudemos nos conhecer melhor. 

Como em qualquer lugar, a gente tem altos e baixos, alegrias e tristezas. Mas minha trajetória aqui me deixa marcas até hoje, lembro de toda evolução (minha e do grupo) desde o início — tanto na dança, quanto na roupa, quanto na organização. É tão gostoso participar de um grupo, poder vê-lo evoluir e crescer.

A partida dos amigos do Boi

Em todo esse tempo, dói um pouquinho ver pessoas indo embora após quase 15 anos convivendo com elas. Muitos precisam prosseguir a vida, procurar o que é melhor para si — os seus estudos, um trabalho, uma moradia em outra cidade — e, com isso, ter que parar de dançar. Mesmo que doa e cause emoção lembrar dessas pessoas queridas, é a maior felicidade vê-las crescer. Mas há, também, amigos queridos que partiram, que infelizmente nunca mais vão voltar, porque estão junto do Pai. 

Mesmo antes da pandemia a gente já perdeu amigos que faziam parte do Boi, fizeram sua história e partiram. Mas, com certeza, serão lembrados — tanto por sua dança quanto por seu carisma e pelas pessoas maravilhosas que eram.

A surpresa da Pandemia

No início de 2020, nós tivemos a grande surpresa: o início da pandemia. Eu, particularmente, nem conhecia esse termo. Conhecia epidemia, mas pandemia não. Foi um impacto muito grande: aquilo que no começo duraria 15 dias, logo saltou para 30, depois 6 meses, um ano… Foi uma coisa muito assustadora, muito impactante. O grupo vinha se preparando, praticamente todos os dias, coreografias novas, apresentações de toadas, montagem pAra lançamento, ensaios da Marujada. 

Praticamente todos os dias nós estávamos aqui, na expectativa desse ano de 2020, preparando um ano de apresentações e, de repente, tivemos que parar, sem saber o que esperar o que viria dali para frente. Junto com isso, do nada, começamos a perder muitas pessoas. O desespero foi grande, de você querer se cuidar, querer cuidar do próximo, ao mesmo tempo querer continuar dançando, querer sair, mas vivendo uma vida reclusa, que eu acredito que muita gente não vivia. 

Foi um impacto muito grande para o grupo, porque são pessoas em sua maioria jovens, ativas, que querem estar em movimento, estar fora de casa, ter o seu momento de diversão. E aqui dentro, para nós, o grupo também se tornava isso. Tanto ter a responsabilidade como dançarino, de cumprir com nossas obrigações, fazer o seu trabalho, mas, também, era nossa diversão, nosso momento de distração. Então, foi muito assustador, particularmente para mim, foi muito assustador. 

Aperto financeiro e outras formas de união

Algo que também abalou muito o grupo foi a parte financeira, porque muita gente ficou sem trabalhar. E, para a nossa tristeza, a dança não é considerada um trabalho essencial para a sociedade e, por isso, não pudemos exercer nosso trabalho, porque não era essencial. Muita gente acabou ficando sem dinheiro.

Infelizmente, vimos amigos perderem seus familiares, perdemos amigos e, mesmo assim, nós estávamos juntos, apoiando um ao outro. E foi aí que o grupo se uniu e que começamos a ver outros meios de continuar interagindo. 

Começamos a ajudar as pessoas do grupo que mais precisavam com cestas básicas e outros meios que pudessem ajudar, de alguma forma, a suprir aquele momento que estava sendo difícil financeiramente. O mais legal que surgiu, para mim, foram os vídeos. Fizemos e compartilhamos vários vídeos na internet em que nós dançávamos, desafiando e convidando amigos para a brincadeira. Isso puxou pessoas de outros lugares, com todo mundo mostrando um pouquinho do que gostava de fazer. 

“Vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama”

No meio de tudo isso, uma nova notícia chegou como o maior impacto: “não tem festival”. “Cara, como é que não vai ter festival?” Algo que todos da cidade sempre viveram não vai existir? Minha vida todinha, em todos meus 33 anos, fui ao Festival e, naquele  momento, não poderíamos tê-lo.

No mês de junho, a cidade está sempre fervendo, fervilhando, agitada, animada, na expectativa do festival. Naquela hora, não: você via uma cidade totalmente calma, parada, porque aqui era obrigatório aqui ficar em casa. Mas o legal é que o CDC deu um jeito de fazer a Festa do Boi: pelas lives. Conseguimos trazer um pouquinho para o público, até mesmo pra gente – eu participei praticamente de todas as lives – essa oportunidade de dançar

Foi gratificante poder dançar um pouquinho, nem que fosse bem pouco. Mas isso levava para “torcedor Caprichoso” aquela energia em que você fala: “Cara, vai ficar tudo bem e a gente vai voltar a fazer o que a gente ama. Não se esqueça que o Boi está aqui: ele precisa de você, você é o nosso torcedor, nosso combustível. Então a gente vai fazer tudo por vocês, para voltar”. 

E eu pude estar ali, eu pude sentir essa energia, pude passar essa energia para o público, e a certeza  de que tudo passaria e voltaria ao normal. 

Segunda onda e a perda de pessoas queridas

Depois que passaram todas as lives, tivemos, infelizmente, a segunda onda. E aí que me pegou. Foi nesse momento que eu realmente perdi pessoas muito queridas. Amigos da minha vida, da faculdade, do Boi, do grupo que eu fazia parte. Um deles foi meu padrinho de formatura… Infelizmente, eu vou me formar e ele não vai estar aqui. Mas levo meus amigos sempre comigo: na vontade de viver, de seguir em frente, e no desejo de dizer “cara, ficou tudo bem, eu consegui, eu cheguei até aqui”. 

Você agradece pela sua vida, agradece também pela vida dos seus familiares que estão bem. Eu agradeço porque eu tive… Não sei se foi sorte, ou se eu tive benção de não pegar em nenhum momento essa doença, esse vírus. Mas, ao mesmo tempo, você se sente egoísta de agradecer pela sua vida e saber que teve pessoas do seu lado que praticamente tiveram suas famílias dizimadas.

“Está passando e a gente está conseguindo”

Mas, a vida continua, a gente precisa seguir em frente, mostrar pra essas pessoas: “olha a gente conseguiu, por você, eu vou seguir em frente, por vocês a gente vai continuar”. 

Quando veio a vacina, a gente se sentiu muito mais seguro. Os casos, graças a Deus e graças à vacina, diminuíram na cidade. Agora, estamos podendo brincar de Boi. Olha que festa linda que foi feita agora, que o Boi nos proporcionou! Ver pessoas de fora fazendo de tudo para vir, para participar, sentir a energia e, por fim, dizer assim: “cara, tá passando e a gente tá conseguindo”. Foi magnífico.

Agora temos 2022 pela frente. A minha expectativa, eu digo, é: vai bombar! Só pela grandiosa festa que foi feita, pela sede que as pessoas de brincar de boi bumbá, de estar na nossa terra, entrar na arena, sentir a energia de todo mundo e ver o grande espetáculo. Não é pequeno! Pode ter certeza.

O Boi e as ‘estrelas azuladas’

As pessoas estão com uma sede imensa de gritar “eu tô aqui”, de cantar “é o meu Boi, eu vim ver o meu Boi”. Tenho certeza que em 2022 o Festival será magnifico. E eu tenho certeza que o meu Boi vem com um espetáculo imenso, imenso mesmo. Mas, colocando sempre em evidência, homenageando e jamais nos esquecendo das estrelas azuladas que, infelizmente, essa doença levou. 

Cada um deixou a sua história, por pouco tempo, por muito tempo que viveu, mas deixou sua história, seu legado. E jamais, eu tenho certeza, que jamais o nosso Boi, a nossa nação azulada, se esquecerá de cada um deles. E eu me sinto muito grata de fazer parte dessa história azulada. Posso chegar aqui e dizer “Fernanda, você é parte dessa história azulada”. E digo mais: “é muito gratificante chegar aqui e poder contar um pouquinho da minha história”. 

Então, para 2022, vamos nos cuidar, vamos nos preparar. Infelizmente o vírus ainda está aí. Não como estava antes, que nos assustou, nos devastou. Mas vamos estar aí nos prevenindo, nos cuidando. E vamos nos divertir, porque o que mais queremos é curtir o Festival, o melhor que a nossa cidade pode nos oferecer.

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Queremos o expurgo da Covid-19

No primeiro ano da pandemia de Covid-19, eu passei algumas problemáticas relacionadas à moradia, já que eu residia no espaço cultural Das Liliths .

Eu sou Xan Marçall, uma kaaboka amazônida de Belém do Pará. Resido em Salvador há 15 anos. Sou travesti, filha de uma mulher branca carioca e de um pai preto e kaaboko da Amazônia.

Tenho 35 anos e vivo com HIV há 6 anos. Atuo como professora de Arte e Teatro na educação básica, trabalhando com crianças e adolescentes com métodos de criação colaborativa.

Faço parte de um coletivo de teatro em Salvador chamado Das Liliths, e juntes, realizamos um trabalho pioneiro nas artes, por meio da busca de histórias LGBTQIA+ ancestrais no processo de construção identitária do Brasil.

Ir para Salvador foi uma forma de tentar uma vida menos difícil do que a que vivia em Belém, sobretudo, porque a realidade amazônica, sendo eu, também, filha da periferia, me colocava frente a muitas adversidades.

O primeiro ano de Covid-19

Com o fechamento dos comércios e a não realização de atividades artísticas e culturais presenciais, não tivemos como gerar renda e fomos obrigadas a entregar o espaço. Assim, me deparei com alguns dilemas.

 Estive, inclusive, adoentada nesse período.

Encontramos uma nova moradia.

Nesta residência eu tive 19 dias de tranquilidade, até receber um aviso de evacuação emergencial do imóvel. A residência estava situada em uma região de alto risco de desabamento.

Fui para casa de um amigo que me hospedou durante 1 mês. Depois disso, audaciosamente, eu retornei para a casa que estava sob risco de desabamento e, passei a viver lá durante o ano de 2020 — acreditando que ela não ia desabar.

Não desabou!

Recebi cestas básicas, algo que me tranquilizou e me permitiu dar atenção a outros setores da minha vida. No entanto, o atendimento básico de saúde voltado à minha vivência positiva foi totalmente negligenciado.

HIV e negligência em meio à Covid-19

Minhas consultas essenciais foram interrompidas, como infectologista, clínico geral, dentista e exames ambulatoriais. Além disso, me prescreveram uma receita para eu poder pegar medicamentos e enfiar ‘goela baixo’, sem nenhum acompanhamento médico.

No fim de 2020, eu voltei para Belém para realizar um trabalho — a previsão era ficar apenas 15 dias e já vai completar 1 ano que estou no Pará.

Neste meio tempo, muitas coisas aconteceram, e o ano de 2021 foi envolto em problemas familiares e abandono de tratamento por falta de orientação. Tudo por conta de burocracias e falta de informação básica no sistema de saúde — que não é compartilhada.

Nesse turbilhão todo, pensei que ia surtar, embora, estivesse um pouco mais segura financeiramente, por estar na casa da minha família. Entretanto, os outros problemas ainda me alcançavam e afetavam.

Por fim, consegui resolver a minha situação e retomar meu tratamento — que teve intervalos de não adesão — e, então, fui compreendendo que não aderir ao tratamento é algo muito sério, mas que também não pode ser resumido a questões rasas, pois envolvem muitas camadas.

“Existem, sim, casos de pessoas que abandonam o tratamento porque não querem, e outras, que não conseguem aderir por falta de dinheiro, saúde mental, tempo de deslocamento, negligência no acompanhamento, informações obscuras e má qualidade de alimentação.”

HIV, Covid e outras questões…

O ano se encerra, e eu estou tomando as rédeas da minha cabeça, pensando que, nessa pandemia de Covid-19, além do expurgo desse vírus, queremos e reivindicamos também a cura da AIDS, que já tem 40 anos — e segue em curso.

Sigo, remediada, com uma quantidade química tóxica em meu organismo. Lutando, resistindo e esperançando por dias melhores.

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De todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior

Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.

Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.

Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.

Uma infância de relacionamentos difíceis

Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.

Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.

Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.

Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.

Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.

A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.

A escola e a descoberta da sorologia

Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.

Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.

Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.

Deu positivo.

Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.

O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.

Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.

Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.

O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.

 Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.

Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.

Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.

Desgastes emocionais

Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.

Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.

Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.

Não conseguiria abraçar o mundo.

Relacionamentos tóxicos

Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.

Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.

Estive preso em um relacionamento abusivo

Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.

A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.

Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.

Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.

Desenvolvi insônia.

Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.

Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.

Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.

Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.

Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.

Em um relacionamento com a solitude

Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.

Ainda estou me curando dos traumas.

Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.

Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.

Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.

Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.

 Aprendi a ficar comigo.