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18 a 24 anos Branca Ensino Médio Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mato Grosso Mulher Cis Raça/Cor

“Perdi meu emprego e entrei numa fase muito difícil”

Oi, meu nome é Maria, eu sou esposa do Reeducando se encontra no CRC de Cuiabá e eu vim falar sobre a pandemia né? Que a gente teve muita dificuldade sobre questão de remédios, muitas pessoas morrendo, vacina a gente não sabia se eles estavam tomando ou não, porque não estava tendo visita íntima e as vídeo chamadas também não estavam tendo, estava sendo muito difícil pra gente e muitas pessoas perderam familiares.

E isso afetou muito a gente, gente, com ansiedade, preocupada, não sabia o que tava acontecendo, não tava entrando as coisas sem visitas, sem, nada não estava entrando remédio tudo parado e a dificuldade bateu na porta de todo mundo, muitas pessoas perderam seus  serviço eu inclusive né? Perdi meu emprego, fiquei numa fase difícil, não tava entrando remédio e não tinha videochamada, tava muito complicado mesmo.

Relato de Maria Souza, produzido pela Associação Mais Liberdade para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Branca Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“Atendi uma menina, que sentia dor, e ensinei um remédio a ela”

E quantos anos a senhora tem dona Tila? Oitenta e nove. E aonde que a senhora mora? Cachoeira. Município de São João do Triunfo.

Pois na pandemia eu fiquei presa na casa, não saía, o neto levava receber, volta pra casa, daí não saí mais pra porta nenhum só na casa. E não aconteceu nada e as pessoas continuam procurando a senhora? Procuraram não parar. Ontem ainda veio uma senhora que trouxe uma menina ela gritando de dor de barriga. Daí eu ensinei remédio porque ou quer fazer mais que ela está com dor de barriga tinha que ensinar remédio. Remédio pra fortificar o estômago porque ela nem come mas não comia mais. E a senhora mudou o jeito da senhora recolher as pessoas, da senhora receber por conta do vírus? Não meu bem .Só que as pessoas chegam e o chimarrão não quer e daí a gente não faz nada só vê o que é que eles precisam. E usam máscara? Alguns vem de máscara, outros não vêem, vêm sem nada. Uhum! E a senhora não ficou com medo de receber as pessoas? Não fiquei com medo, não fiquei com medo de ninguém.

Relato de Donatila Kuller, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Fundamental Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Mato Grosso Raça/Cor

“Cortaram as visitas e ficamos sem ter notícias da família”

Meu nome é Sandro teixeira dos Santos, eu me encontro aqui recluso aqui no Centro de Ressocialização daqui de Cuiabá Mato grosso, e a epidemia ela nos trouxe assim um desconforto porque logo nos cortaram as visitas né, a gente ficou sem ter notícias da família, sem ter notícias dos filhos, que eu tenho uma filha e assim o desconforto foi muito grande porque qual o esposo que não quer estar perto da sua esposa, da sua mãe, dos seus filhos né, então foi algo assim que machucou bastante  a gente né. Atingiu não somente a mim, mas a todos os educandos que estão aqui.

Eu sei que muitos ficaram aflitos com tudo isso né, então logo após veio a videochamada trazendo conforto,  mas não é a mesma coisa de uma visita residencial. Mas já tava melhorando né, foi melhorando, e assim foi uma experiência nova né, experiência nova. Muitas pessoas perderam seus entes queridos para epidemia, muitas famílias foram destruídas porque muitas esposas não aguentaram e foram embora, abandonaram seus esposos, foram cassaram outro rumo de vida né. Então só agradeço a Deus por ter me mantido firme aqui dentro dessa oportunidade aqui onde a gente se encontra né, não houve morte né, todos nós nos encontramos bem.

Relato de Sandro Teixeira, produzido pela Associação Mais Liberdade para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Branca Ensino Fundamental Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“Trato das crianças desde o primeiro aninho até a sua idade maior”

Eu moro aqui em Irati, Conj. Joaquim Zarpellon, sou benzedeira aqui de Irati.

Trato das crianças desde o primeiro aninho até a sua idade maior, a gente costura, a gente faz ¨batida à míngua¨, fazemos simpatia do bronquite, leio carta, rezamos a nossa Romaria, sempre atendendo o nosso povo. Agora na pandemia a gente até deu uma parada mas não foi tanto por causa que a gente tem que cumprir com os compromissos da gente, atendendo os inocentes, atendendo nossos povos de Irati, aqueles que vêm de fora a gente também têm que atender porque eles vem por que precisam. Sabem que a gente faz um bom trabalho então a gente tem que prestar um bom trabalho, um bom serviço a comunidade.

                                                                 

¨São Sebastião Santo

 Dê Deus muito Amado

 Nós livrai das pestes

 Nosso advogado¨

 ¨Pelas vossas chagas 

                                                                   Pelo vosso amor

                                                                   Nós livrai das pestes

                                                                   Nosso defensor¨

Relato de Dona Jacira de Paula, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Ensino Fundamental Completo Escolaridade Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“Atendia com grande alívio todo pessoal que precisava da gente”

Meu nome é Ilda Kosloski, sou brasileira de Lutcher Irati, e na pandemia toda, atendia o pessoal todo com grande alívio que todo pessoal vinha e precisava da gente e nunca deixei de atender nenhuma pessoa. ¨rezimento¨ para crianças pequenas é arrumar o peitinho das crianças.

Atendimento e amparo

Faço ¨rezimento¨  pra picada de aranha, picada de cobra é pra cobreiro e outras coisas que eles pedem sempre. Então o atendimento a gente sempre dá um amparo. Às vezes chegam de noite pedindo pra a gente atender, a gente atende. Então eu acho que é uma coisa importante, e mais: A gente sente falta das outras curandeiras por causa da pandemia né, mas a gente continua lutando pra frente.

Relato de Dona Ilda kosloski, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Homem Cis Pós-Graduação Completa Roraima

“A vacina demorou em chegar e com essa negligência muitas pessoas morreram”

Meu nome é Vilso Junior Santi, eu sou professor da Universidade Federal, coordenador do Amazoom e responsável, aqui em Roraima, por operacionalizar a coleta de depoimentos para o Memória Popular da Pandemia. 

Primeiro, é muito legal participar de uma iniciativa como essa. Acho que no contexto da pandemia, até na universidade, a gente tinha pensado em realizar alguns projetos para dar suporte, principalmente no esclarecimento das dúvidas, em relação às notícias falsas que estavam circulando sobre a pandemia. Infelizmente, por uma série de questões, a gente não conseguiu operacionalizar isso. 

Quando apareceu a oportunidade do projeto, de registrar essas memórias, também foi uma oportunidade para a gente retomar essas ideias. E tentar, de alguma forma, contribuir para o registro e discussão desse momento que a gente está vivendo, desse momento trágico que estamos vivendo.

É importante aproveitar a oportunidade para trazer os relatos a partir de Roraima. As pessoas que a gente buscou para dar esses depoimentos no projeto foram pessoas que representam o que é Roraima hoje, o que é Boa Vista hoje, o que é o Estado hoje. Quem é de Roraima talvez não se dê conta disso, ou talvez não goste de pensar nisso, mas, Roraima é um estado de migrantes, um estado indígena por excelência. A gente quis representar essas populações nos depoimentos que a gente colheu.

Buscamos falar com representantes dos povos indígenas, presentes no estadoe conseguimos obter depoimentos muito interessantes das populações indígenas e também representantes da população migrante, principalmente dos indígenas da Venezuela; dos venezuelanos em si; dos haitianos, para dar conta do que é esse contexto migrante de Roraima. 

Nós todos, praticamente, que estamos em Roraima somos migrantes! E Roraima precisa lembrar disso porque essa é a cara de Roraima! 

Projetos interrompidos na pandemia

Aproveitando o que a gente ouviu, é preciso dizer que a maioria dos relatos deixam claro que a pandemia interrompeu projetos! Muitos projetos! Projetos de vida, inclusive! 

As pessoas morreram! Várias pessoas, inclusive pessoas próximas da gente. No meu caso, a pandemia chegou “metendo o pé” na porta de alguns projetos. Um deles foi o projeto de pós-doutorado. 

Depois de ter passado oito anos, seis anos de gestão na coordenação do curso e na direção do centro aqui da UFRR, eu fui para o pós-doutorado no México. Eu viajei para o México no final de fevereiro e fiquei exatamente 30 dias no país até tudo ser fechado por conta da pandemia. Acabei ficando no México, em isolamento, até o início de agosto, quando eu consegui voltar para casa. Foi uma situação bem complicada, porque, enfim, estava em um outro país, longe das pessoas que conhecia. Estar longe de casa, das pessoas mexe com o psicológico. Comecei a questionar um monte de coisas e me revoltar, inclusive, com a situação. Eu não aguentava mais estar lá! Eu queria voltar para casa e, felizmente, isso deu certo. Consegui retornar alguns meses depois para casa e aí sim viver o resto do processo em casa. 

O governo do Estado não fez o que é o seu papel; o governo federal não fez o seu papel; o sistema de saúde não tinha capacidade para absorver e as pessoas ficaram jogadas, sem renda, sem trabalho, sem ter o que comer

Negligência do Estado

Meu retorno deu um pouco mais de tranquilidade por um lado, mas, por outro, também causou muita apreensão. Porque a gente vivia uma situação terrível em Manaus e uma situação terrível aqui em Roraima. Quem é daqui sabe que o sistema de saúde é caótico. Não é culpa da migração, é culpa sim de anos de negligência do Estado, da falta de investimento público! A pandemia deixou isso escancarado, evidente! 

Inclusive as pessoas se aproveitaram disso para superfaturar compra de respirador, por exemplo. Coisa que também demonstra um pouco do que é a cara do estado de Roraima e das pessoas que gerenciam as políticas públicas do Estado. 

O governo do Estado não fez o que é o seu papel; o governo federal não fez o seu papel; o sistema de saúde não tinha capacidade para absorver e as pessoas ficaram jogadas, sem renda, sem trabalho, sem ter o que comer. Elas precisaram ir para a rua e se contaminaram.

A vacina demorou em chegar e com essa negligência muitas pessoas morreram. Isso revolta a gente porque a gente fica imobilizada, sem saber o que fazer. 

Por mais que a gente diga que está preparado para a morte, ver alguém morrendo é horrível

Perdas na família

Meus pais moram no Rio Grande do Sul e a pandemia demorou em chegar na região onde vivem, já que são lugares isolados e com pouco trânsito de pessoas. Quando a pandemia chegou, as pessoas já tinham comprado a versão de que não era muito grave e não era muito sério. 

Porém, pouco depois, as pessoas conhecidas começaram a morrer: vizinho, tio avô, avô dos meus sobrinhos, amiga que era técnica de enfermagem, e minha tia, que chegou a ficar internada por 90 dias na UTI e não resistiu. 

No meio desse contexto, perdemos meu avô de 93 anos. Dizem os médicos que não foi por Covid-19, mas nossa família desconfia. Meu avô morreu logo depois das eleições municipais e meu avô teve contato com pessoas que viajaram para participar da votação. Agora já não tenho mais nenhum dos meus avós vivos. A geração toda se foi.

Por mais que a gente diga que está preparado para a morte, ver alguém morrendo é horrível.  Minha tia, por exemplo, não tinha doença nenhuma, não tinha complicação, não tinha histórico clínico grave. Ela não morreria agora se não fosse a pandemia e esse conjunto de negligências.

Oportunidade de contribuir

Chamo a atenção para a questão de oportunizar a chance de contribuir com o registro da Memória Popular da Pandemia, da memória das pessoas que sofreram com a pandemia. É uma oportunidade para pensar como que a gente, usando o jornalismo, pode intervir na vida das pessoas de uma maneira mais ativa para tentar construir uma realidade melhor do que essa que a gente vive. Esse é o grande sentido do que está por trás do que a gente tenta fazer.

Relato de Vilso Santi, produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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18 a 24 anos Branca Ensino Médio Completo Mulher Cis Roraima

“Eu tinha muitos sonhos, mas com a pandemia todas as portas se fecharam”

Meu nome é Carmen Alejandra. Sou venezuelana, tenho 19 anos e faço faculdade de estética e cosmetologia.

Quando soube da pandemia, eu ainda não tinha chegado ao Brasil. Eu tinha 18 anos quando apareceu o primeiro caso de Covid-19 em Boa Vista (RR). Tinha o sonho de fazer uma festa de aniversário muito grande, mas por conta da pandemia, não consegui fazer. Esse foi o primeiro impacto que senti da pandemia.

Eu não sabia da gravidade do assunto, mas quando as pessoas começaram a se infectar e os lugares públicos do município foram fechados eu comecei a me preocupar. Parecia que eu estava  vivendo um filme.

Eu fiquei muito triste. Sou uma pessoa que gosta muito de abraçar, que é carinhosa. Gosto de ter contato com outras pessoas e quando soube que já não poderia fazer isso, fiquei triste. Nessa época, pensava que a pandemia duraria uns 30 dias e conforme o tempo foi passando, eu fiquei muito mal psicologicamente

Fiquei muito mal porque eu tinha muitos planos. Eu tinha acabado de fazer dezoito anos, queria fazer vestibular, prestar o ENEM e entrar na faculdade.  Eu tinha muitos sonhos, muitas coisas que eu queria realizar e com a pandemia todas as portas se fecharam. 

Graças a Deus eu não perdi ninguém, mas ver que outras estavam perdendo seus familiares e amigos mexeu comigo. Aqui em Roraima houve o caso de uma mãe de gêmeos que morreu. O pai das crianças ficou em depressão e os bebês ficaram sozinhos. Ao saber disso, não conseguia mais dormir, não conseguia fazer nada. Foi o pior dia da pandemia para mim.

Eu só comia, deitava, dormia, acordava. Não tinha esperança na vida. Também ficava pensando na cena em Manaus, quando a prefeitura abriu covas porque já não havia lugar para enterrar as vítimas do Covid-19. Ficava pensando nos familiares dessas pessoas. 

O que mais me incomodava era ver pessoas fazendo festa. Estamos em um contexto de que uma doença está matando muita gente e havia pessoas organizando festas, sem consciência alguma do que estava acontecendo.

Eu olhava para o céu e ficava pensando: “o que vai ser de mim? O quê que vai ser da minha vida? O quê que vai ser da minha família?”. Eu fiquei me sentindo um peso para os meus pais

Migrantes enfrentam mais dificuldades para encontrar trabalho

Nós que somos imigrantes enfrentamos muita dificuldade para encontrar um emprego. Meu pai só conseguiu trabalho como ajudante de pedreiro e nada mais. Há imigrantes que não têm o que comer. Muitas vezes nossa família tirava do pouco que tinha para ajudar. Foi uma época muito difícil. Só de lembrar eu tenho vontade de chorar. Não havia saída. Eu olhava para o céu e ficava pensando: “o que vai ser de mim? O quê que vai ser da minha vida? O quê que vai ser da minha família?”. Eu fiquei me sentindo um peso para os meus pais.Nessa época eu percebi que precisava de ajuda. Eu sofria de ansiedade antes da pandemia e, depois, desenvolvi depressão. Procurei ajuda em um dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e precisei tomar remédio tarja preta, porque eu estava em uma fase da depressão bem avançada. Com o remédio e o contexto melhor, com o número de mortes diminuindo, eu fui melhorando.

Há muitos jovens que não se vacinaram e eu, como sou jovem, quero conscientizar os outros jovens a se vacinar. Se eles querem voltar para a vida que tinham antes, com festa e praia, é preciso se vacinar

Viva a ciência: vamos nos vacinar

Eu queria primeiramente dizer que eu sou eternamente grata pela Ciência. Graças a Deus a vacina existe. Chego a sorrir porque sei que tem vacina. Eu já me vacinei! Hoje em dia eu estou bem melhor. Graças à Ciência! Estou fazendo faculdade, estou trabalhando. Também me sinto melhor psicologicamente. 

Pensando no futuro, acredito que temos que nos conscientizar e entender que a pandemia é um processo e que com a vacina, tudo vai melhorar. Gente, vacinem-se! Vamos nos vacinar!

Desde o começo, quando nascemos, somos vacinados. Isso não impede de pegarmos alguma doença, mas ela não vai ser tão grave. Eu conheço pessoas que depois de se vacinarem pegaram Covid-19, mas não foram pra UTI, não sentiram falta de ar, tiveram sintomas leves. 

Eu quero conscientizar as pessoas para que se vacinem. Há muitos jovens que não se vacinaram e eu, como sou jovem, quero conscientizar os outros jovens a se vacinar. Se eles querem voltar para a vida que tinham antes, com festa e praia, é preciso se vacinar. 

O recado que eu quero deixar é que as coisas estão melhorando e que precisamos ter esperança. Os dias mais difíceis já passaram e a gente vai conseguir superar tudo isso.

Também quero conscientizar sobre a necessidade de se procurar ajuda. Eu vejo que a sociedade de uma maneira geral tem uma ideia errada sobre os psicólogos e psiquiatras. Muita gente atrela o fato de procurar ajuda e acompanhamento de um psicólogo significa que você está louco. Isso é um erro. Para mim, louco é quem não faz terapia. Com o mundo como está, precisamos cuidar de nossa saúde mental para conseguir ter uma vida mais leve.

Relato de Carmen Alejandra Muñoz Luengo , produzido pela Rede Amazoom para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Amazonas Branca Homem Cis Pós-Graduação Completa

Fizemos muito durante a pandemia e só paramos nos momentos mais graves

A essa altura já estava bastante envolvido, mas vi o Festival pela internet por conta da pandemia. E em 2020 e 2021 não teve Festival. Então nunca passei por um Festival como Conselho, de verdade, na arena.

Meu nome é Diego Omar da Silveira. Sou professor da Universidade do Estado do Amazonas, aqui em Parintins, na divisa do estado com o Pará. Cheguei aqui há quase dez anos, na minha aventura amazônica. 

Quando vim, recém-aprovado no concurso, tudo era muito novo. Desembarquei aqui com meu filho – apenas eu e ele – e era uma nova vida que começava. De lá para cá, muita coisa mudou. Conheci já nos primeiros dias a Priscila, minha companheira, com que estou desde então e com quem tive uma filha, a Maria Bethânia, uma menininha amazonense. Aos poucos fomos construindo juntos uma vida.

 Gosto da cidade e desde cedo achei a festa dos Bois rica e interessante. Demorou um pouco para que aquilo me interessasse como tema de pesquisa ou como um lugar de atuação. Mas tudo se encaminhou para que eu escolhesse o Caprichoso… na verdade, a minha chegada se deu em uma “semana azul” – como dizem aqui, quando toda a cidade se preparava para a gravação do DVD do Centenário do Caprichoso, em 2013. Tudo muito lindo e que me capturou.

Sou Caprichoso e não pretendo mudar

Desde então sou Caprichoso e não pretendo mudar. Na medida em que comecei a guinar meus temas de pesquisa fui me aproximando mais do Bumbá também. Sempre gostei do ambiente, da construção, das referências sonoras e estéticas do Caprichoso. Elas têm uma brasilidade que escapa ao contrário e, talvez por isso, sempre me senti muito acolhido aqui. Mas fiquei uns anos sendo apenas torcedor mesmo. 

Fui conhecendo as pessoas, orientando alguns trabalhos, lendo a bibliografia sobre folclore e Boi-Bumbá, mas sem muitas pretensões. Os contatos com quem fazia o Boi nunca foi muito próximo até 2017, acho. Foi quando conheci o Ericky Nakanome e passamos a trocar algumas ideias.

Em 2018 ele me convidou para olhar alguns textos, num exercício de revisão e no final daquele ano me chamou pra fazer parte do Conselho – foi um susto e uma alegria. Ajudei como pude em 2019, em meio a um momento familiar difícil, já que a minha filha faria uma cirurgia de relativa complexidade às vésperas do Festival e em Brasília.

Imprevistos da pandemia

Esse “título” foi entregue aos Bumbás em 2019 e depois não teve mais festa. Mas tínhamos que pensar em políticas de salvaguarda, precisávamos dialogar com a sociedade e começamos a discutir estratégias. Vieram as lives e, depois, com a Lei Aldir Blanc, a ideia de publicar alguns livros e organizar o Centro de Documentação e Memória do Boi. Tiramos nossas intenções do papel e isso permitiu, inclusive, que a gente fizesse o registro da memória das pessoas ligadas ao Caprichoso nesse edital da DHESCA Brasil. 

Como a gente já estava construindo um banco de memória, esse se tornou um projeto paralelo. E é isso… estamos nessa luta. Quando o Caprichoso suspendeu o funcionamento de todos os setores para que a gente evitasse os riscos e não colocasse ninguém em risco. 

Mas discutimos muito nossos projetos, aprofundamos as pesquisas, pensamos nossa história e articulamos os livros que estão saindo agora, nesse fim de ano. Foi difícil ver a situação dos artistas, dos trabalhadores do Boi de uma forma geral. Muita gente do setor da cultura ficou desamparada – mas travamos juntos essa batalha. E a ideia é continuar… O CEDEM tem uma tarefa enorme pela frente e queremos tratar com mais carinho a memória do Boi. 

Não vamos parar de receber, tratar e divulgar esse enorme legado que ainda é pouco visibilizado.

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40 a 59 anos Bahia Branca Ensino Médio Completo Mulher Trans

Nós, mulheres travestis, juntas, temos força

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Chamo-me Ranella Marcia, tenho 50 anos, sou virginiana, moro na Pituba (BA) e sou casada há 26 anos.

Meu histórico de vida é de muita luta.

Orgulho-me de ter superado a expectativa de vida de uma travesti, que neste país é de 35 anos. De ter superado, também, a marginalização que nos nega o amor e a relação estável.

A luta de uma travesti por respeito

Sempre fui muito “para frente”. Sempre me entendi como travesti, mesmo sem saber direito o que significava.

Fui muito criticada por “não ter limites” e mostrar quem era. Esperei um tempo para me tornar a mulher que eu queria em respeito a minha avó.

Eu me identificava muito com revistas. Fazia diversos recortes — adorava recortar imagens de bonecas de biquíni, roupas e fazer colagens. Minha avó nem sequer me deixava chegar na cozinha, pois não era “coisa de homem” — os papéis eram muito bem definidos.

Quando ela se foi, em 1994, eu “explodi”. Conheci meu marido nessa época. Eu sabia que gostava de homem.

Logo, me reconhecia como uma mulher heterossexual. Hoje, me considero bi, porque entendi que o que importa é o prazer, independente de quem seja.

Processos de se reconhecer como travesti

Por um tempo, quando morei em Cajazeiras, tive uma vivência de gay afeminada, bem louca, o que chamam hoje de “lacradora”. Tanto que era conhecida como “Xuxa da Cajazeira 8”.

 Isso porque, antes, só se considerava como travesti as pessoas que tinham uma estética realmente feminina, com cabelo grande, silicone e seios. Estudei a troncos e barrancos, porque sofria bullying e agressão. E não era só agressão verbal, mas física. Mesmo assim, sempre fui uma liderança no colégio. Fazia parte do teatro e jogava futebol — isso fazia com que eu conseguisse fazer amizades.

Já no segundo grau, comecei a ter problemas com o uso do banheiro. Além disso, comecei na prostituição. Por diversas vezes, após assistir às aulas, troquei a farda pela “roupa de puta” dentro próprio colégio e fui para as ruas da Pituba.

Quando estagiei nos Correios fui muito discriminada.

Foram idas e vindas pelo período de dois anos. Após conhecer o homem que hoje é meu marido. Fomos morar no Centro e eu parei de estudar. As idas e vindas também foram uma constante quando morei na Itália.

Ao retornar definitivamente, participei de um curso na área de Administração. Lá, questionei: “o curso já temos, e o emprego?”. Como resposta, questionaram a minha formação: “como vocês querem emprego se vocês não estudam?”. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos e concluir o segundo grau. Após ocorrido o, me coloquei como uma liderança.

Fui a primeira travesti a ter o nome social na caderneta da escola.

Foi quando enfrentei uma professora que me chamava pelo nome de registro.

Exigi que ela me chamasse pelo nome que escolhi e fui apoiada por todos os colegas da turma, que ameaçaram deixar a professora dando aula sozinha caso ela não mudasse a conduta.

 Ali, também, eu percebi como poderia me articular. Aquele apoio foi muito importante. Isso me formou como alguém que, hoje, é ativista pelos direitos da comunidade trans, que luta por si, mas também, por tantas outras iguais.

Ajudei algumas meninas travestis durante a pandemia

Consegui viver bem durante a pandemia devido ao aluguel casas. O que precisei fazer foi negociar reajustes com meus inquilinos, diminuindo os preços e fazendo acordos. Houve mudanças no acolhimento das travestis que moram em meus imóveis também, dando preferência àquelas que não trabalhavam na rua, mas que atendiam em domicílio os clientes.

Tudo isso, para a segurança delas, e também, pelo meu marido, que faz parte do grupo de risco.

O fato de não pagar aluguel e ter renda foi muito importante para mim. Além disso, eu sou muito organizada. Todos os gastos são bem regrados, sempre deixo uma reserva.

Fui procurada por algumas meninas travestis que buscavam ajuda, foi quando, com meu amigo, Vida Bruno, e outras pessoas, procurei ajudá-las junto à prefeitura. Enfrentamos inúmeras dificuldades para conseguir essa e outras ajudas, mas nos apoiamos muito e fomos vencendo os empecilhos.

Meu marido é um grande parceiro. Ele que resolve as coisas para mim, inclusive burocracias e finanças. Eu realmente não sei como eu conseguiria lidar com a perda dele. Antes da pandemia eu costumava viajar muito. Com o lockdown, fiquei mais em casa, e pude aproveitar a companhia do meu marido. Também pude curtir e observar o crescimento dos meus animais de estimação. Coisas simples e importantes que me fizeram bem.

Tranquilizei-me muito com a vacinação. A maior parte da minha vida acontece fora de casa. Assim que meu marido tomou a dose única, me senti à vontade para retornar às ruas.

A Covid-19 tirou de mim três grandes amigas

Em muitos momentos, me arrependia de agir por impulso, mas, depois de 2 meses de quarentena, eu já não aguentava mais ficar trancada em casa sem ter o que fazer. Cozinhava, limpava a casa e já não havia com o que me distrair.

Uma das coisas que mais senti falta foi da presença das minhas amigas, que assumem o comando da minha casa quando me visitam – tiram a MPB, que costumo ouvir, e põem lambada enquanto bebemos cerveja.

As pouquíssimas pessoas que foram à minha casa durante a quarentena. Todos seguiam rigorosamente os protocolos de segurança, como, por exemplo, numa comemoração pequena de aniversário que fiz.

Perdi três amigas maravilhosas para à Covid-19. Nesse tempo, por outro motivo, também perdi Vida Bruno, que morou comigo durante a pandemia. Um amigo para todas as horas, momentos e empreitadas.

Estávamos planejando projetos para ajudar pessoas trans, público para o qual ele tinha uma sensibilidade fora do comum. Nesse período caótico, eu enxerguei a força que nós temos.

A batalha das travestis por respeito e dignidade

Vivemos com muito medo de transfobia, ouvimos palavras que nos rebaixam e reduzem a nada, mas a verdade é que resistimos e nos suportamos em meio a essa crise sanitária — que afetou tantos outros setores.

Eu consegui abrir portas para muitas, e outras vieram juntas, abraçando e fortalecendo o movimento. Eu entendi que nós temos, sim, poder, e assumimos esse poder que descobrimos em nós.

Podemos tudo!

Podemos e vamos crescer e ocupar lugares cada vez maiores.

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25 a 39 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Não me permiti sofrer para ser suporte

Estava sendo exaustivo trabalhar no segundo e no terceiro setor e, ao mesmo tempo, senti estar sem suporte — ambos os trabalhos estavam exigindo muito de minha parte.

Trabalhei com vendas durante muito tempo, sempre na área da gestão. Após idealizar e co-fundar a ONG Nariz Solidário, percebi que já não conseguia mais realizar às duas coisas.

A Covid-19 tirou o meu suporte

Comecei a perceber que, minha energia era muito maior quando se falava no social, meu interesse era o dobro, e bingo! O universo conspirou, e me fez perder o emprego.

Por dois anos desisti de vagas, reprovei em outras, vi-me vulnerável, e coloquei minha família em vulnerabilidade.

Foi aí que decidi focar no terceiro setor e na ONG. Consegui até uma bolsa para me especializar mais na área, trabalhei brevemente em outra ONG, e adquiri mais experiência.

No início de 2020, decidi ficar 100% dedicado ao trabalho social. Tudo ia bem, de forma muito promissora, até que uma bomba chamada Covid-19, explodiu.

Sem suporte e sem emprego, a Covid-19 chegou

Estou acostumado a trabalhar em ambientes de pressão, mas, poucas vezes, me vi com tanta ansiedade.

Era uma pressão no meu peito e, uma sensação indescritível; golpeava-me com muita força.

 Essa situação se tornou extremamente exaustiva quando, precisei me manter firme, pela minha família, e por todos os voluntários da ONG.

Não me permiti sofrer para ser suporte, ser refúgio, mas, gradualmente, fui percebendo que não estava funcionando.

Eu poderia estar empregado, ganhando bem, sem aquela loucura social, ou quem sabe, já teria sido cortado e estaria, no mínimo, recebendo auxílio emergencial.

De certa forma, não dava para prever e nem para mudar. Minha filha, na época com 12 anos, até entendia algumas questões, já o meu filho de três anos, só entendia querer leite com chocolate, e quando o papai estava feliz, ou nervoso.

Ficamos um ano confinados em um buraco que parecia não ter fim. Ele, querendo brincar, e eu, tentando me organizar entre o meu inferno interior e o equilíbrio de ser um pai para ele e tantas outras coisas para tanta gente.

Nesse período, minha esposa ainda conseguiu manter seu trabalho, mesmo autônoma. Nesse período, também, a saudade da minha filha que mora com a mãe em outro estado me doía. Eu estava falido, sem saída.

Não foi conselho, foi suporte e cuidado

Alguns meses depois, convoquei uma reunião com os facilitadores da ONG. Minha intenção era de pedir ajuda, mas também, estava em busca de alguém que me convencesse a desistir, pois, não estava conseguindo engajar os voluntários afetados pelas problemáticas sociais.

 Eu sabia que nosso público-alvo estava ainda mais vulnerável e, nós tínhamos que estar lá, afinal, nascemos do caos e para ele.

Mas eu também estava sem forças. Em uma pausa de desabafo, o Thiago, do Marketing, me salvou.

 “Du, respira, grandes CEOs de grandes empresas, com profissionais de alta desempenho, não estão sabendo o que fazer.”

Os demais também manifestaram apoio. Foi uma fala tão simples, mas tão potente para mim naquele momento, que me desacelerou e me fez reorganizar as minhas emoções.

O acolhimento emocional

Larguei o computador por uns dias, minhas dores diminuíram, já que eu acordava com o computador ligado e praticamente dormia em cima dele.

Passei a brincar mais com meu filho, peguei novamente no violão, comecei a cuidar de mim e da minha esposa. Fiz umas ligações despretensiosas, assisti a filmes, e desacelerei.

Após esse momento de relaxamento, comecei a analisar o que poderia dar certo: as tendências, urgências, demandas, parcerias, e as amizades de valor.

Em uma tentativa arriscada de fazer lives, já que eu tinha medo de dar opiniões tão abertamente, deu certo. Fomos um dos primeiros grupos artísticos a fazer lives e a abordar assuntos específicos sobre nosso contexto — coloquei tudo para fora.

Esse movimento culminou em cursos ‘on-line’, e na criação de fóruns inéditos no país.

Os recursos começaram a entrar, e com isso, chegou-se a um estágio de eu estar contribuindo para ajudar colegas a saírem do mesmo buraco em que estive.

O que mais me chamou a atenção, foi que à medida que, os problemas sociais e globais iam aumentando, e o nosso trabalho, ia tomando ainda mais força.

Minha mente conseguiu canalizar toda aquela dor e me fez organizar tudo que eu já estudara na vida.

Como um sopre de apoio

Como um sopro de esperança, alguns projetos foram aprovados e, conseguimos gerar empregos para artistas voluntários que, também se encontravam vulneráveis.

Em meio ao caos, conseguimos manter nosso trabalho nos hospitais em um momento em que, praticamente 100% das atividades semelhantes em todo o país, haviam sido bloqueadas.

Recentemente, fiz uma análise dessa trajetória, em busca de entender quais foram os pontos que me tiraram daquele abismo, e me trouxeram a ser corresponsável por impactar mais de 40 mil pessoas na pandemia.

Percebi que, ainda fraco, mantive o propósito e, quando estava prestes a perdê-lo, ele me encontrou e floresceu de dentro daqueles que ajudei de alguma forma, que, assim como eu, estavam aflitos, exaustos e que, por meio da arte, encontraram forças para continuar.

Isso me fez perceber na prática, a lei do retorno. “Do buraco ao solo”

Quem cuida de quem cuida?

A pandemia me fez perder incontáveis amigos e familiares. Contudo, é estranho dizer que o luto, virou cotidiano. Mesmo quando todos em casa positivaram, pareceu não mais causar medo e, até hoje, ainda reflito sobre esse sentimento.

Penso que, é uma utopia sofrer com a esperança de que algo retorne, pois não vai, e essa fase do luto, acabei apaticamente vencendo.

Por outro lado, tudo isso também me fez ser melhor, mais humano, mais forte, um melhor pai, esposo, amigo, profissional. Aprendi a conviver melhor com meu ego, e a ter mais paciência e tolerância de meus medos.

 Ainda não está favorável, continuamos nossa luta, fazemos isso com arte. Talvez nunca esteja favorável, embora lutemos para isso – é um paradoxo que permeia quem mergulha muito na lógica e na tentativa de acabar com a nossas mazelas.

Quanto a isso, não tenho respostas, somente o momento presente.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia