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Perdi muita gente durante a pandemia

Perdi muita gente durante a pandemia. Tiveram duas pessoas que me fazem muita falta. Uma delas foi uma grande companheira de caminhada, que lutava comigo há muitos anos.

Chamo-me Rosária, nasci no Uruguai, mas moro no Brasil há 34 anos.

 Sou uma das filhas de um casal que gerou 11 mulheres. Casei-me, tive 3 filhas e saí do meu país devido à violência doméstica em meu matrimônio.

Meu marido era um homem muito forte, da Marinha, e muito violento, de modo que ninguém conseguia contê-lo ou mudar a situação. O pior momento, que me fez decidir vir de vez para o Brasil, foi quando fugi para a casa dos meus pais e, ao saber que meu marido estava a caminho da casa deles para me buscar, fugi com as minhas filhas — que eu levava sempre para todo lugar.

A fuga para o Brasil

Ao chegar na casa dos meus pais e não me encontrar, ele bateu nos meus pais. Depois, ele foi até a casa desses amigos, que tinha apenas uma porta, pela qual eu não poderia fugir. Saímos pelas janelas, usando cordões de sandálias que amarramos para descermos.

Depois desse acontecimento, prometi a mim mesma que jamais permitiria que algo como aquilo, acontecesse de novo.

Conheci alguém que gostava muito de mim, com quem entrei em contato, e que me apoiou, me trazendo para o Rio Grande do Sul, no Brasil.

Após 21 anos, voltei ao Uruguai e, mais tarde, retornando ao Brasil, descobri que esse outro companheiro também era violento.

Foi na Bahia que eu realmente soube quem era ele — que sempre ia e voltava para o Uruguai. Ele não trabalhava, eu não trabalhava, mas na minha casa sempre tinha tudo do bom e do melhor.

Ele me dizia ter uma transportadora de frutas, e eu acreditava. Quando ele ficou internado, no Rio Grande do Sul, fui ao encontro dele e descobri que ele era um assaltante de bancos muito perigoso — tanto no Brasil, quanto no Uruguai. Ele foi preso, e eu, que fiquei com muito dinheiro, sempre o visitava.

Uma mulher corajosa

Mas chegou um momento que o dinheiro acabou, as viagens de visitação cessaram, e ele disse não querer mais  saber de mim. Então, me vi liberta. Eu e minha filhas fomos vivendo e construindo nossas vidas.

Ao saber que alguém estava me procurando e oferecendo 50 reais — muito dinheiro na época — para quem me encontrasse, fui para Sergipe, onde passei 3 anos e voltei. Apaixonei-me por um baiano, com quem tive uma filha. Vivemos juntos por 12 anos.

Ele enfrentava o racismo de forma muito séria. Ajudei ele, que era usuário de drogas, mas, mesmo assim, ele ficou muito doente.

Teve diarreia, manchas pelo corpo, e diagnosticado com AIDS. Fiquei firme com ele, por 3 meses. No hospital, assistia palestras e recebia informações sobre HIV/AIDS, mas os grupos de risco que eles apresentavam — usuários de drogas, prostitutas, homossexuais — não se enquadravam no meu perfil. Por isso, fiquei tranquila. Mas, após uma médica conversar comigo, me dei conta de que eu poderia, sim, ter sido infectada, e, ainda, ter transmitido às minhas filhas e netas, pelo leite materno.

Elas não foram infectadas, mas eu recebi o resultado positivo para HIV. Meu mundo caiu, eu pensava que morreria a qualquer momento. Fui para o enterro do meu companheiro e não pude mais entrar em casa. Foi aí que encontrei o Gapa. Eu pensava “nunca mais ninguém vai me abraçar, me beijar ou chegar perto de mim”. Mas fui abraçada pelo Gapa, e minha vida mudou.

A rotina antes da pandemia

Passei a estudar, me informar, capacitar e a me engajar no ativismo.

O Gapa se tornou essencial na minha vida, em todas as áreas: emocionais, profissionais, relacionais.

Tenho problemas cardíacos, como “pré-infartos”, e minha filha passou a ser a minha companheira, cuidar de mim.

Antes da pandemia, eu trabalhava no Balcão de Justiça como mediadora de conflitos. Fazia, também, faxinas. Além disso, congelava alimentos para os clientes, na casa dela. Trabalhava quatro vezes por semana, ganhando 100 reais por visita.

Eu tinha um bom salário. E, nessa altura, chega à pandemia.

A pandemia desnudou os abismos sociais

Eu, como representante estadual da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP), me pus à disposição, com outras pessoas do ativismo, para articular estratégias para que a pandemia não afetasse o PVH, — principalmente com a retirada de medicamentos.

Queríamos, por exemplo, que todas as pessoas que tivessem a carga viral indetectável e o CD4 estável, recebessem medicação suficiente para 3 meses, para evitar que saíssem de casa.

É muito difícil falar apenas sobre mim, pois, a minha experiência é pensada sempre de forma coletiva, seja pela minha família ou pelo ativismo. Eu me doo.

Recebi muitas ligações e isso me incomodou porque, diante das limitações, eu não conseguia atender como atendia antes. Eu constatava o desespero das pessoas, a vontade de suicídio das pessoas, a falta de alimento e suporte.

A partir disso, eu me retirei de todos os grupos de movimentos que participava, e fiquei apenas me dedicando ao Gapa e a Rede de Comunidade Saudável.

Tivemos muitos problemas, mas, mesmo assim, ajudamos as pessoas a fazerem o recadastramento do SUS e a inscrição para o Auxílio Emergencial.

Nunca tive medo de morrer. Saí de uma reunião, entrei em casa, e passei um ano e meio sem sair — ninguém entrava lá também. Minha filha era quem fazia minhas compras e pegava a minha medicação.

O pavor da pandemia

Eu me preocupava muito com uma outra filha que mora comigo, pois ela tem escoliose, de modo que o osso da coluna pressiona o pulmão e, com esse problema respiratório, ela fazia parte do grupo de risco.

Assim como eu, devido ao problema cardíaco. Contudo, eu nem lembrava de mim, só pensava nela. Tudo que chegava em casa era deixado na porta, eu recolhia tomando todos os cuidados, usando muito álcool e depois lavava.

Após ter tomado às duas doses da vacina, fui diagnosticada com Covid-19. Busquei acompanhamento médico, fiquei internada no Couto Maia e, enquanto eu estava lá, soube que a minha filha também havia testado positivo para o coronavírus.

Não faço ideia de como isso pode ter acontecido, diante de tantos cuidados tomados.

A minha felicidade é estar viva, e ver muitas das pessoas que conseguimos ajudar, vivas também.

Aprendi a ter fé e a acreditar mais em mim, porque, antes desse momento difícil, eu não acreditava muito em mim.

 Mas, hoje, eu acredito, e sei que tenho forças para fazer muita coisa.

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“A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal”

A esperança chegava aos estados brasileiros. A vacina foi recebida com expectativa e, ao mesmo tempo, desconfiança, devido às fake news e preconceito, fruto da ignorância e do desgoverno o qual estamos submetidos. Quando os povos indígenas estavam na primeira fase da imunização, trabalhamos muito para que as mentiras não chegassem às aldeias. Mesmo assim, as estórias invadiram o território indígena, trazendo o medo para dentro das comunidades. Por fim, depois de muita luta, as lideranças aderiram à vacina. Logo, os casos começaram a diminuir.

Primeiro, eu tive que esperar um pouco para a minha faixa etária receber a dose da esperança, do amor. Meus pais foram os primeiros a receber a vacina, a alegria foi grande. Então, fico feliz em lembrar que eles conseguiram passar a pior fase da pandemia com vida.

Na foto, é possível ver Eliane Franco na parte interna do posto de saúde erguendo uma placa com os dizeres: "VIVA O SUS. Não ao negacionismo. Fora Bolsonaro! Vidas importam". Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Em maio, celebrei dois aniversários, mas ainda não tinha recebido a vacina. Agradeci a Waptokwazawre pelo dom da vida, por também ter conseguido enfrentar a pandemia com saúde. Celebrar a vida em tempos de pandemia, em que muitas pessoas morreram e foram contaminadas é, de fato, um ato de resistência.

No Conselho Indigenísta Missionário (Cimi), organização a qual faço parte, cada companheiro e companheira que recebia a vacina era motivo de alegria. Acompanhei três pessoas próximas, que receberam as doses. Ficávamos ansiosas para saber qual vacina receberíamos, fizemos até pesquisas sobre a eficácia das vacinas. Foi uma emoção acompanhar tudo isso.

A segunda dose da esperança

Finalmente, chegou a minha tão esperada vez! Tive de aguardar três dias para o agendamento. Por isso, fizemos um mapa para chegar no postinho na hora certa sem imprevistos. É que eu estava nervosa, tinha muitas outras pessoas aguardando a dose da esperança. Então, no dia 09 de julho, recebi a vacina. Fiquei muito emocionada e por dentro pensando: “essas gotinhas tão desejadas vão salvar muitas vidas”. E salvaram a minha também.

Agora, a minha segunda dose, que será disponibilizada em outubro, vai completar a imunização. A espera é longa. Enquanto isso, tomo os devidos cuidados para não pegar a Covid -19 durante esse tempo, e ficar bem até a segunda dose.

Temos que saudar o SUS! “Não ao negacionismo, e sim à ciência”, essas são frases que me marcaram nesse tempo de vacina contra a Covid-19. A esperança de ter a vida normal voltou. Mesmo com tantas propagandas falsas, aderir à vacina é também proteger a todos e todas desse vírus cruel.

Sem esperança e sem vacina: mais de 500 mil mortes

A pandemia está sendo um processo doloroso para todas as famílias brasileiras. No início, tive muito medo da Covid-19, pois pensava nos meus pais idosos, minha mãe com diabetes. Todos os dias ligava para orientar sobre os cuidados. Foram momentos terríveis, nunca imaginei que amigos e pessoas próximas morreriam por causa dessa doença. Outrossim, é desafiador ter que ficar em casa por longas semanas, meses. Senti a saudade das pessoas queridas bater à porta todos os dias.

Hospitais lotados, sem UTIs, sem médicos, oxigênio. Pessoas morrendo sem assistência. Nem os que tinham dinheiro conseguiam sobreviver. Os noticiários dos jornais assustavam, parecia que estávamos vivendo um filme de terror. Era impossível conter as lágrimas.

Para completar, ainda vivemos um desgoverno que não criou estratégias, em tempo hábil, para combater o aumento da Covid-19 no país. Foram dias de revolta por saber diariamente da morte de pessoas, por causa da incompetência de um governo negacionista, que não comprou vacina a tempo de salvar vidas.

A pandemia e os Povos Indígenas

No Cimi, tivemos de paralisar os trabalhos presenciais nas aldeias, porque a chegada do vírus nas aldeias foi desolador. A todo momento, recebíamos notícias de que muitas pessoas estavam contaminadas. Queríamos que os indígenas fossem atendidos com qualidade nos hospitais de referência, mas o que vimos foi preconceito, racismo e discriminação. Denunciamos diversas situações aos órgãos públicos.

Na foto, é possível ver Eliane Franco com três crianças indígenas. Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Inicialmente, em março de 2020, tivemos que aprender a usar as ferramentas da internet para nos comunicar com os povos indígenas. E, ainda enfrentando um vírus tão perigoso, nossos trabalhos de informação e formação nas aldeias se deram através de cartilhas online, programas de rádios, encontros virtuais, folders e vídeos, orientando as lideranças sobre a ameaça da Covid-19.

Outra coisa importante que não posso deixar de falar: a situação do atendimento da saúde indígena durante o período de pandemia foi dramática, com vários problemas de estrutura nunca resolvidos pela Secretaria Espacial de Saúde Indígena (Sesai). Na pandemia, o problema se agravou.

Os povos não tinham o direito de sepultar seus mortos, os rituais fúnebres foram proibidos. Lembro da morte de duas indígenas do povo Javaé, mãe e filha que morreram no mesmo dia. A cena dos caixões sendo atravessados em duas canoas juntas para a aldeia me chocou.

As barreiras sanitárias foram criadas pelos próprios indígenas, dentro dos territórios, com o objetivo de conter o avanço do coronavírus. Tudo isso por causa da falta de apoio dos órgãos governamentais. Com o apoio do Cimi, os povos mantiveram as barreiras sanitárias nas entradas dos territórios indígenas e acredito eu que essa ação tenha salvado muitas vidas ind´´ígenas.

Concluindo, deixo aqui o meu agradecimento à Memória Popular da Pandemia, onde podemos registrar nossas escrevivências neste período tão macabro. Obrigada!