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60 anos ou mais Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Não frequentei a escola Paraná Parda Raça/Cor

“Não posso parar, porque preciso ganhar para sobreviver”

Meu nome é Lurdes de Andrade de Paula, sou benzedeira, (…), costuro, faço simpatia, (…). As minhas plantinhas tão aqui que eu tenho aqui né, tudo quanto é remedinho eu uso é da terra né. (…). Mas eu continuei, não parei porque não dá pra parar né. Porque eu preciso ganhar (..), então é isso que eu faço.

                                                                   ¨

¨São Sebastião Santo

 Dê Deus muito Amado

 Nós livrai das pestes

 Nosso advogado¨

Pelas vossas chagas 

Pelo vosso amor

Nós livrai das pestes                                                                   

Nosso defensor¨

Relato de Dona Delourdes de Paula, produzido pelo Instituto de Educadores Populares para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

Descobri o meu diagnóstico de HIV aos 48 anos

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como pegamos.

Meu nome é Robson, tenho 52 anos, e fui criado em Salvador. Fugi de casa aos 7 anos, pois passava por diversos conflitos. Sou fruto de uma relação da minha mãe com um homem casado, por isso, ela foi mãe solteira.

Com o passar dos anos, ela conheceu — e passou a morar — com um cidadão que se tornou o meu padrasto, o mais próximo que tive de um pai.

Naquele tempo, a ideia era de que “um bom psicólogo é uma boa surra”. Fui criado numa família com base evangélica, que apontava tudo como pecado. Eu apanhava bastante.

Fugindo de casa

A partir disso, comecei a ensaiar fugas: fugia para a esquina, depois, de Candeias para Salvador, de Salvador para Itabuna e, com 11 anos, eu estava em São Paulo, sozinho.

Fugia porque apanhava. Depois, comecei a fugir porque não conseguia mais trabalhar. E foi assim que eu aprendi a viver. Por isso, sempre disse para mim mesmo que, quando eu pensasse em colocar filhos no mundo, eles jamais seriam criados por padrastos, mas por mim. Para que eles não passassem pelo que passei.

Conheci minha esposa na Praça José Ferreira, em Fortaleza. Eu, com 22 anos, e ela, com 17. Ela também vivia em situação de rua, e estava toda suja de cola de sapateiro — tinha uma história de vida muito parecida com a minha.

Pelos caminhos da vida

Tivemos 3 filhos. Tenho uma filha lésbica e, acho importante dizer isso porque, apesar da criação evangélica, e de ser evangélico, eu não concordo com o que dizem sobre pessoas como a minha filha — que são lésbicas ou que são ‘diversas’.

Eu entendo que eu devo dar a ela o mesmo que Deus dá: amor e respeito. É nisso que eu acredito.

Aprendi a pensar assim depois que um amigo meu me mostrou o quanto eu era ignorante, quando pensava que minha filha tinha que corresponder às minhas expectativas. Ele dizia:

“Veja tudo o que você esperava que sua filha fosse; uma mulher inteligente, bem-educada, com caráter, estudiosa, trabalhadora. Ela é tudo isso! Você também quer escolher com quem ela deve amar e namorar? Isso não lhe cabe! Você está perdendo a sua filha”.

Aquilo me fez mudar…

Descobrindo o HIV

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como adquirimos, ou de quem adquirimos.

Quando ainda planejávamos os filhos — que são HIV negativo — eu disse-lhe que, caso nos separássemos, eles ficariam comigo. E quando a separação aconteceu, meus próprios filhos escolheram ficar comigo.

Não conhecia e nem sabia o que era ter HIV. Nesta época, pensei que teria apenas mais 2 ou 3 meses de vida. Cheguei a pensar em suicídio.

Vivendo com HIV

Um dia, em Belo Horizonte, na Praça Afonso Pena, um lugar que passa ônibus a todo minuto, eu cogitei me lançar na frente de um daqueles transportes coletivos, mas, por incrível que pareça, em quase uma hora esperando, não passou um ônibus sequer.

 A partir daquele momento, passei a tomar um litro de conhaque por dia. Depois, já de volta a minha cidade, meu filho me chamou e disse:

“O HIV não vai lhe matar, mas o senhor está se matando”.

Então, ele me deu o endereço de um Serviço de Atendimento à Pessoas Vivendo com HIV — as nomenclaturas na época eram outras. Lá, conheci uma mulher que me disse viver com o vírus há 25 anos — foi quando eu entendi que iria sobreviver, que havia, ainda, muita vida por vir.

Tive a melhor faculdade que qualquer ser humano poderia ter: o mundo; e o melhor professor: o sofrimento.

Aprendi a me virar de diversas formas, exceto cometer crimes. Sempre trabalhei. Cheguei a levar compras de pessoas do mercado até em casa, lavar carros, vender picolé, e jornal.

 Foi com os jornais que aprendi a ler. Tinha muita curiosidade de entender o que eu estava vendendo. E lendo jornais, vendo as notícias, — entendi a importância de estar informado, para ir à luta.

O lugar de fala de uma pessoa com HIV

Entendo meu lugar como uma pessoa que vive com HIV, mas também como negro, e, ainda, entendo as relações entre o racismo e o classicismo, que oprimem de forma conjunta.

O preto sofre discriminação por ser preto, mas também, de forma agravada por ser pobre. Sei bem o que é isso. Mas venci. Meu filho se formou jornalista, e eu, até na área de caldeiraria trabalhei; e, trabalhando nesse setor, tive a oportunidade de viajar e conhecer 26 capitais do Brasil e 6 países.

Cheguei a ir para a África. Fiquei em São Paulo, passei por Curitiba. Contudo, meu projeto era encontrar o meu filho em Salvador, pois tínhamos planos de abrir um hostel em Fortaleza — em Canoa Quebrada.

A chegada da pandemia

Estava tudo programado para isso. Quando ouvimos sobre as notícias do coronavírus, ainda fora do país. Pensávamos que a pandemia seria apenas mais uma daquelas viroses que sempre nos acometem logo após a época de carnaval. Pensávamos que duraria uma semana.

Mas a pandemia destruiu todos os meus projetos, visto que acabou com o turismo. Retornei para São Paulo, para a casa do meu irmão, na tentativa de redirecionar a vida, mas quando cheguei lá, tive de ficar preso e com medo, transtornado, como todo o mundo.

Com a vida parada, precisei pensar em formas de me manter durante todo aquele momento que se iniciava. Com isso, comecei a trabalhar como motorista de aplicativo. Usava um carro que não era meu e, infelizmente, tive que devolvê-lo quando parei de trabalhar.

E isso não aconteceu apenas comigo, mas com muitos que trabalhavam como motorista de aplicativo, porque já não era mais viável, dado que, com o lockdown, as pessoas não utilizavam mais o serviço.

De volta à Salvador

Voltei à Salvador para tentar atuar como motorista, mas, encontrei uma grande dificuldade. Não perdi ninguém próximo durante a pandemia.

Acredito que não me infectei, ou que fui assintomático. Não segui a quarentena porque não tinha saída: eu precisava trabalhar diariamente.

O máximo que podia era me afastar um pouco mais das pessoas. Não tive dificuldades para conseguir os medicamentos antirretrovirais, mas foi bem difícil ter acesso aos médicos infectologistas. Foi muito difícil fazer os exames e marcar as consultas.

Não tive medo de morrer porque fui treinado pela vida. Eu dormia debaixo da ponte, entrava em baldes de lixo para conseguir ter o que comer.

Vivo com HIV em um país com um governo que não me assiste. O que mais poderia temer?

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25 a 39 anos Branca Mulher Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Uma gravidez pandêmica

A constatação de que estaríamos isolados por conta de uma pandemia, me chocou. No meu caso, em dobro, pois descobri uma gravidez inesperada.

Estou no Nariz Solidário desde fevereiro de 2016. Caí de paraquedas e fui acolhida de uma maneira tão única, como nunca pensei que seria em um grupo.

Gravidez, Nariz Solidário e pandemia

Antes de entrar, passei por muitos perrengues pessoais, enfrentei a depressão, a ansiedade e a bulimia.

O Nariz Solidário teve um papel super importante durante a minha recuperação.

Hoje eu digo que, graças ao Nariz Solidário, eu sou uma pessoa muito mais evoluída, com autoestima e empatia, e sei que pude passar por essa pandemia com muito mais leveza por conta disso.

Uma gravidez solitária

Passar por todo esse momento isolada foi bem complicado. Tive de me afastar do trabalho por ser grupo de risco; deixei de ter a presença dos meus pais, familiares e amigos.

 Ter uma gravidez e ganhar um “bebê pandêmico” não foi fácil. Nos primeiros dias tivemos de ser somente eu, meu noivo, e nosso filho. Era tudo novo para nós três, e mal sabíamos ser só o começo de diversos altos e baixos.

 Minha irmã teve um bebê quatro dias antes de eu ganhar o meu. Foram meses distantes e sem poder ter o convívio entre os primos.

Agora, eles podem ter mais contato, sendo lindo observar a alegria de ambos quando se veem. Quando acabou a licença maternidade, voltei ao trabalho, mas pedi para sair em dois dias, pois o Nicolas, nosso filho, ainda era um bebê de apenas quatro meses.

 Para a minha sorte, sempre tivemos uma boa rede de apoio, e a empresa do meu noivo vai bem.

 Consigo participar de vários aspectos na vida do bebê que eu perderia se precisasse ficar longe dele durante o dia.

Depois da gravidez, tive que reaprender a ser

Tive que reaprender a ficar em casa, e nesse aspecto, vem o papel crucial que o voluntariado me proporciona: conseguir usar a arte para poder levar a vida de maneira mais leve.

Consigo usar a música, e os ensinamentos ‘palhacísticos’, diariamente com meu filho. A arte da palhaçaria tornou nossos dias mais leves e alegres.

Gostaria de agradecer imensamente por fazer parte desta família. Se não fosse pela ONG, não sei como teria passado por todo esse período de gravidez pandêmica.

Claro que, não poder participar presencialmente, me gerou um impacto por não poder estar nos hospitais.

Saber que teríamos um retorno e estaríamos mais fortes do que nunca, me dava ânimo para prosseguir e lembrar de que logo, minha palhaça estaria levando o seu jeito único, de impactar as pessoas.

Esperança

Hoje, com a esperança de que logo voltaremos ao normal, percebo que a pandemia serviu de muitos aprendizados a todos. Infelizmente, perdemos meu sogro, e tantas outras pessoas para essa doença.

 Agora, nos resta seguir, e nos reinventarmos mais a cada dia, sem perder a esperança.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Distrito Federal Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Tudo o que está acontecendo já era predestinado”

Relato de Margarida Silva, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Tragédias como pandemia e vulcões que estão acontecendo no mundo, tudo já estava predestinado a acontecer, e virão, ainda, outros desastres pelo que eu sei. Logo, a solução é se prevenir e esperar, ver o que é que Deus tem pra fazer com cada um de nós, porque ninguém tá livre de nada. Só que eu não tenho medo, apesar de esperar viver mais tempo, ainda. Eu perdi uma irmã há pouco tempo, ela tinha 90 anos, nem óculos usava. Fazia até labirinto, um bordado feito em grades.  

Quando eu me casei, tinha medo de morrer e deixar os meus filhos pequenos sofrerem o que eu passei. Eu e outras irmãs passamos por isso. Hoje, quero viver até a hora que Deus achar que está bom. Embora eu tenha alguns problemas, a minha mente não foi afetada. Ao contrário, a minha mente é lúcida, tranquila. Tudo o que eu fiz, tudo o que eu consegui, foi já depois de idosa. Eu era louca para estudar, terminar meus estudos e não conseguia. Trabalhava muito, era aquela correria toda. Até que decidi fazer um concurso. Passei na Fundação Educacional, terminei o segundo grau, fiz curso de inglês, tudo depois de idosa, com 50 anos. 

Enfim, tudo o que eu consegui, hoje não preciso mais, graças a Deus. Hoje, estou só curtindo. Minha mente está boa, eu resolvo tudo sozinha. Eu vou ao banco, eu vou para todo o canto que eu tiver de ir e vou sozinha. 

Destino predestinado

Nasci em Fortaleza, no Ceará. Cheguei em Brasília em 1967, depois que meu pai faleceu. Eu e minhas irmãs ficamos desgarradas, porque ele já tinha outra família, havia casado pela segunda vez e tinha um monte de filho pequeno. Eu e minhas irmãs já éramos adultas. Fiquei em Fortaleza trabalhando com bordados para uma espanhola.

Um dia, após a morte do meu pai, cheguei de roupa preta à casa da espanhola, para trabalhar, quando ela me perguntou: “o que foi que houve? Porque você está com essa roupa?” Respondi: “é porque meu pai faleceu”. Eles se conheciam. Ela, então, me sugeriu uma viagem, dizendo que eu estava muito abatida. Eu disse que queria ir para outro canto, então ela me disse que arranjaria, mas se fosse numa casa de família.

Só queria sair dali um pouco. Queria ser enviada ao Rio ou à Bahia, porque era onde ela tinha parentes. Entretanto, o destino estava predestinado. A espanhola me enviou à Brasília com um pessoal. Eu vim e, logo em seguida, arranjei meu namorado aqui. Sei que abri caminho em Brasília para a maioria do meu povo. Hoje, eu tenho uma sobrinha formada em Relações Internacionais, com mestrado na Inglaterra, e morando na Ceilândia. Ela trabalha na ONU, aqui em Brasília. Ou seja, todo mundo que veio para minha casa, saiu bem empregado.

Racismo

Eu não tinha ninguém por mim, era só eu e Deus. Eu vim pra cá confiando em Deus, porque a família do meu marido é branca. Meu marido era loiro do olho azul e os parentes dele não gostavam de mim, por causa da minha cor. A família dele não me tolerava. Eu não sabia que o nome para isso era racismo.

Meu marido era simples demais, muito tranquilo, o mundo podia pegar fogo, e ele era o último que saía da casa, ele não tinha pressa para nada. Eu sempre fui mais agoniada, queria resolver as coisas rápido. Tanto que, uma vez, eu disse a mim mesma: eu vou fazer o concurso, nem que seja para limpar chão, eu quero.

Pra dizer a verdade, nada na vida me marcou tanto, porque eu tinha cuidado. A vida me obrigava a ter cuidado comigo mesma, porém, nunca tive medo. Nunca deixei de ir ao mercado, à farmácia ou à igreja. Alguma coisa me dizia que eu não ia pegar a Covid. Talvez, um ser tenha me dado essa luz que eu não ia ter Covid, porque eu rezava muito por mim e por eles. A minha filha, que é o meu braço direito, também não pegou Covid. Eu sempre dizia: “meu Deus, cuida da minha filha, cuida do meu filho, pois eles precisam trabalhar”.

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40 a 59 anos Branca Distrito Federal Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Raça/Cor

“Apenas uma parte da sociedade ficou protegida dentro de casa”

Relato de Valdemar Vasconcelos, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Para mim, o momento indiscutivelmente tocante não foi quando a pandemia foi formalizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas foi quando eu vi a sociedade em geral sendo dividida em duas: uma que ficava reclusa e protegida dentro de casa, e a outra que precisava por inúmeros motivos se expor. Eu achei que aquilo era uma coisa muito mal analisada, muito mal cuidada. Foi um impacto que, ainda hoje, eu guardo. Acho que manifestamos, naquela situação, a forma como a gente lida em sociedade até hoje.

Ficou muito evidente que uma boa parte das pessoas tinha que estar na frente, e a outra parte em estado de “proteção”. Se é que isso existiu. Aliás, acabou que isso não existiu, porque é impossível fragmentar a sociedade e colocar um muro na frente dela, e ela não interagir. Mas, sem um julgamento de valores, mas foi impactante ver os ônibus lotados, com uma divisão física, que nem pode-se dizer que é uma divisão de classes, pois muitos, de várias classes precisaram estar nos hospitais, nos caixas, nos Ubers, precisavam fazer entregas por aplicativo. Enfim, sei que outros precisavam estar em casa também. E este muro foi muito chocante para mim. E ainda é.  

“Desafios também podem gerar traumas”

Meu coração diz sempre que todo desafio pode gerar aprendizados, se optarmos pelo aprendizado. No entanto, desafios também podem gerar traumas. Os traumas também, em determinados momentos, podem ser bem-vindos, no sentido de nos frear. É estranho dizer que um trauma é bem vindo, não é bem isso. Enfim, é uma experiência que pode deixar um alerta. 

Minha expectativa, que é meio que um sonho, é que todo esse processo, tudo isso, faça com que a gente olhe para nossa vulnerabilidade. Não com o objetivo de nos sentirmos fracos, mas pra saber que possamos caminhar mais unidos, porque a pandemia veio na experiência deste século, em que a comunicação já estava evoluída a ponto das pessoas se verem e se falarem instantaneamente, por qualquer parte do planeta, por meio de uma videochamada. Porque houve outras pandemias, mas até a noticia chegar… Hoje não, foram fatos horríveis,  aterrorizantes, a começar na Itália,  principalmente, e isso aterrorizou muita gente, gerou muitos traumas. Mas, percebeu-se que não se tratava de se fechar a Itália,  não se tratava de fechar a China, porque era uma questão do mundo lutar junto. 

Então, a minha expectativa é que essa pandemia deixe esse legado, ainda que a humanidade ainda não tenha conseguido, até esse momento da pandemia, olhar numa única direção para todo o planeta, com mesmo cuidado, com mesmo carinho, para que todos possam se proteger. O convite foi esse. A pandemia concedeu um convite muito claro nessa direção. Até o momento isso não aconteceu, inacreditavelmente.  

“Uma oportunidade mal aproveitada de nos tornarmos uma sociedade melhor”

Mas eu acho que o chamado ficou e ele vai estar nos livros de história do ensino médio, como sendo uma oportunidade mal aproveitada de nos tornarmos uma sociedade melhor. Vejo também como um alerta concreto de que para a sociedade ser melhor, é preciso que a humanidade pense como um todo. Que as apartações, de quaisquer níveis, econômicos, sociais, geográficos, tudo isso, sejam vistas de uma outra forma, de um outro lugar, porque não há mais isso. A tecnologia e a dinâmica atropelam os muros que a gente constrói. A pandemia atropelou todos os muros, ela passou como uma grande tsunami sobre esses muros. 

Qual será o mundo que existirá quando a próxima onda voltar, que será edificado sobre os destroços do Tsunami.

Sou de Minas, mas moro em Brasília desde 9 anos, em 1971. Faço parte de uma família de migrantes, dessas clássicas. Viemos à Brasília buscar uma vida melhor e nos encaixamos aqui e construímos uma vida por aqui. Eu sou ex-funcionário público, pedi demissão, então não me aposentei, e hoje faço parte de uma organização não-governamental. Essa é a minha ocupação atual. Ocupação não remunerada, voluntária. Eu tenho três irmãs, duas sobrinhas netas, três sobrinhos netos. Tenho um filho adotivo e um filho de sangue. Tenho dois netos. Alguns não moram mais em Brasília, moram no estado do Rio. Minha mãe e meu pai já faleceram. Era uma família extensa.

Leia também: “O mais dificil foi ser cobrada pelas contas, e não ter como trabalhar”

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40 a 59 anos Distrito Federal Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Desenvolvi um projeto de alfabetização para mulheres vítimas de violência”

Relato produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Trabalho na Associação das Mulheres de Sobradinho II, onde são atendidas várias mulheres de diversas faixas etárias. Trabalhamos com vítimas de violência domestica, especificamente, mas também atuamos com ações sociais, de assistência. Não o assistencialismo, porque a gente vem com o viés multidisciplinar. Então, nós prestamos assistência às mulheres, totalmente como pessoas voluntárias. Nós temos consultoria jurídica, nutricionistas, psicólogos, psicoterapeutas, e também professores. Eu sou uma delas.  

Sou professora da Secretaria da Educação. Aposentei-me, mas descobri durante a minha aposentadoria que terei de fazer outras atividades. Então, encontrei na Associação das Mulheres um momento que me ajudou na pandemia. Sou da parte social, oferecemos palestras, palestras temáticas voltadas para mulheres, meninas e mulheres idosas.

Essa vivência trouxe à tona o fato de algumas mulheres serem analfabetas. Comecei a pensar em atender essa demanda, que estava realmente invisível dentro da Associação. Enxergamos essa situação a partir da observação de como elas se comportavam, do receio até mesmo de assinar a lista de frequência. Isso despertou o meu olhar. Surgiu dessa observação, a ideia de desenvolver o projeto Brincando com as Letras e Contando Historias. Dessa forma, eu parto da vivência dessas mulheres para trabalhar a alfabetização.  

Tivemos um trabalho intenso na pandemia, porque as mulheres estudavam para obter, presencialmente, a formação de manicure, maquiagem, fotografia e gastronomia que a gente faz. Trata-se de um trabalho em rede com parcerias, por isso, a gente busca também o apoio de Organizações Não Governamentais do Distrito Federal. As mulheres tiveram, de uma hora para a outra, que se ausentar da Associação por um determinado tempo, porque aqui não poderiam ser atendidas, porque paramos por duas semanas para buscar alternativas para a permanência do nosso trabalho.

Durante a pandemia, pedimos o uso externo da associação para que nós não atendêssemos aqui dentro, no espaço fechado, para evitar aglomeração. Dessa forma, começamos a atender em rodas de conversas, utilizando o espaço da guarda mirim, que fica ao lado da associação. 

Mulheres faltavam ao encontro, por sofrerem violência doméstica

Logo, as mulheres que faziam parte dos encontras levaram a informação para outras mulheres. A notícia de que a gente tinha voltado ecoou nos quatro cantos e nem foi mais necessário ligar para elas. Estamos juntas todas as quartas-feiras em nosso “encontrão”. E, a partir desse momento, às quartas-feiras, a gente percebeu que muitas delas, além de depressão, estavam sofrendo abusos e outras violências.

Muitas sofriam violência psicológica, devido ao confinamento, à baixa renda, à extrema pobreza. A situação era de vulnerabilidade, tanto econômica quanto física. A gente começou fazendo alguns estudos de caso e percebemos que muitas delas quase não estavam vindo, porque haviam sofrido violência doméstica.

Atendemos casos em que tivemos que fazer uma interferência, porque a gente trabalha em rede junto com o Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Conselho Tutelar, Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), Secretaria da Mulher e todos os seus equipamentos. Também trabalhamos com as delegacias 13ª e 35ª, que atende toda região de Sobradinho II e toda parte de condomínios, porque a violência não está presente só na classe social baixa, mas em todos os espaços. 

O conhecimento dá condições ao indivíduo de enxergar a vida de outras formas

A transformação na vida das pessoas demora a vir, mas alguém tem que começar a fazer alguma coisa para que essas mulheres deixem de ser violentadas e mortas todos os dias. Encontramos, na escola, um espaço ideal pra levar isso à frente e dizer para essas meninas que elas podem, sim, transformar suas próprias vidas. É um trabalho corpo a corpo. No entanto, a gente deixou de trabalhar a questão do assistencialismo. Não somos mais uma associação pensada em assistencialismo, mas pensamos na assistência do ser humano em todos os sentidos.  

Durante a pandemia, nós percebemos que houve uma demanda crescente em relação à atenção e atendimento. E, particularmente falando da minha vida como professora que atuou durante 30 anos na Secretaria de Educação, digo que, para mim, este momento é impar, singular, porque tenho aprendido muito. Tenho dez alunos e, durante o trabalho como professora, me identifico demais, porque as nossas histórias são muito parecidas. Não no que diz respeito ao conhecimento acadêmico, mas são muito parecidas na vivência, na origem, nordestinos, pais autoritários, patriarcalismo evidente, em que o bater é a solução.

Assim, me identifiquei demais. Parto do princípio da vivência deles e, pra mim, a pandemia trouxe a oportunidade de aprender mais, de buscar mais conhecimentos e isso fez com que eu abrisse meus olhos, pois é um aprendizado pra mim. Expectativas daqui pra frente, em relação a essas mulheres, é que elas tenham acesso ao conhecimento. Conhecimento é tudo. Conhecimento é dar ao individuo a capacidade de discernir o que é acerto, o que não é, dar condições ao individuo de enxergar a vida de outras formas, abrir a janela, conceder outros olhares. Por isso, a gente transforma essas mulheres, acreditando no conhecimento que elas estão adquirindo. E isso elas levarão para o filho, o neto. Enfim, a gente acredita que é chegando na família que a gente vai fazer uma transformação social.  

Relato de Edvalda Paixão, produzido pela associação Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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60 anos ou mais Distrito Federal Ensino Fundamental Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Parda Raça/Cor

“A falta de um abraço é o mais difícil durante a pandemia”

Relato de Nilo Sérgio, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Pra mim, a pandemia não afetou muita coisa, continuo descendo. Mesmo assim, mantenho a distância de dois metros das pessoas. No entanto, eu gosto do contato com o povo, de estar onde tem gente. Não sei ficar isolado, não dou conta. Sinto falta de um bom abraço, de bater papo com os meus colegas. Pra mim, o difícil é a falta de um abraço, de estar no meio de pessoas próximas, de quem gosto. Isso sim faz falta.

Porque eu acho que é costume a pessoa chegar, abraçar, dar um beijo na pessoa. Agora, com esse negócio, já tivemos de romper esse costume. Então, é o mais difícil, pra mim. Manter a distância, a pessoa vai manter, sim. Lavar as mãos, se cuidar, todo mundo vai fazer isso, normalmente. No entanto, a falta do contato físico é difícil. O resto não, o resto a gente leva de boa.

O que mais me marcou foram os falecimentos. Uma menina, que morava no primeiro andar do bloco ao lado do meu, faleceu de Covid. Era colega da minha mãe. Acho que ela foi infectada por um pessoal que veio de fora para trabalhar. Então, é um desses questionamentos que a gente faz depois que a pessoa pega, depois que acontece. A gente tenta arrumar uma explicação, mas é o que tinha que acontecer mesmo.

Eles também se cuidavam, mas de quê adiantou? A pessoa mantém uma proteção, mantém tudo, mas não tem garantia, a exemplo daquela atriz, a Nicette Bruno. Pessoal se cuidou, mas foi alguém visitar. E eu te garanto que deve ter muita gente que pegou a doença e não sabe. Teve gente que pegou, se recuperou, ficou em casa, e passou. Deve ter acontecido muito por aí. 

Distanciamento, máscara e a falta do afeto

Pra ser sincero, eu nem dei conta dessa pandemia. Me protegi, respeitei os outros, usei a máscara. Mas, senti saudade de encontrar as pessoas, de fazer aquela rodinha dos amigos, bater um bom papo, trocar ideias. De ir ao supermercado, a uma feira. Manter esse negócio de isolamento é meio chato. Uma pessoa olha pra outra, é vista, e às vezes vemos alguém sem a máscara.

Já cansei de ver aqui. A pessoa vem lá do outro lado, até que alguém está sem mascara. Logo, a pessoa que está de máscara passa para o outro lado! A gente não fala nada, lógico, mas sente que a pessoa está se afastando porque a outra está sem a máscara. Mas, estou me protegendo, mantendo o distanciamento, e a vida continua. Ah, sinto falta de festa também. Mas falta, de verdade, só do abraço mesmo.

É porque as pessoas são um pouco rígidas para o afastamento. Eu vi, presenciei, uma pessoa falando com a outra assim: “poxa, você mantém a distância, não é?” E a pessoa continua: “Não é por você não, é por mim”. E o outro tão distraído. O coitado tentou pedir desculpas, mas não adiantou nada. Acho que o ser humano, às vezes, por pouca coisa, faz uma confusão danada. Mas, em termo, assim, de prejudicial, que até quando meu pai estava internado eu ia ao hospital.

Acredito que importante é viver cada dia, cada momento. Cada dia é um dia. É um dia que Deus nos dá, isso que é bom. Bom também é ser feliz. O resto a gente toca o barco. A pessoa que citei é o meu ex cunhado Rodrigo. A mãe dele mesmo disse: “tudo que tu quiser fazer pra mim, tu faz em vida, que depois não adianta chorar”. Então, ontem à noite, eu e meu irmão comentamos com ele: “pois é, a gente te diz o mesmo.” 

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40 a 59 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Minas Gerais Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar”

Por ser professor do ensino superior, estou, neste momento, trabalhando em home office. Por isso, minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar. Tenho tido oportunidade de me dirigir aos meus alunos da minha casa. Sinto que é um privilégio, porque nem todas as pessoas têm condições de poder trabalhar da forma mais segura, sem correr o risco de contato social.

Com isso, percebo um pouco das desigualdades que a gente tem vivido em nosso país. Fatos que a gente registra, sobretudo, no campo das relações raciais. Por exemplo, como negro profissional que está tendo oportunidade de trabalhar em casa, eu me sinto um pouco privilegiado. Porque não são todas as pessoas negras que podem desfrutar dessas condições, mesmo que essas condições signifiquem um trabalho dimensionado de uma maneira muito diferente. 

Hoje o meu tempo de trabalho é absurdamente grande, desde quando eu levanto até a hora em que vou me deitar.

Todo o meu dia está envolvido com questões de trabalho, e é um pouco mais tenso, porque vivo no mesmo espaço. Por isso, a gente tem que criar estratégias para fazer com que este trabalho não signifique uma sobrecarga psicológica.

Contratempos durante aulas remotas

Neste momento, eu tenho uma preocupação muito grande com os meus alunos. Sobretudo com minhas alunas.

Leciono em um curso de pedagogia, e tenho percebido que elas têm enfrentado situações muito difíceis, a começar com as questões de acesso às redes para poder acompanhas as aulas.

Além disso, não são poucas as vezes em que, num momento da aula, algumas das alunas se encontram em trânsito, dentro de um ônibus ou na rua. Aí precisam ligar o celular para poder acompanhar um pouco das aulas. Isso me preocupa, porque sei que o processo de ensino e de aprendizagem precisa de uma mediação maior, em que a gente possa estar mais atento em relação ao desempenho de cada um dos alunos.

O que tenho feito é gravar minhas aulas para que todo mundo possa recuperar depois uma gravação. Assim, todos ficam atualizados em relação aos conteúdos.

Juventude em situação de vulnerabilidade

Além dessa atividade como professor, eu também desempenho a atividade de vice presidente de uma entidade. O trabalho voluntário acontece em uma entidade chamada Associação Profissionalizante do Menor (ASSPROM), que faz uma intermediação entre jovens entre 16 até 25 anos. Essa intermediação é feita ao mercado de trabalho com grandes empresas e nas três esferas do governo.

No entanto, criar oportunidade de vínculo de primeiro emprego para a juventude tem sido muito afetada durante a pandemia.

E essa associação atende exatamente as pessoas que mais precisam ter um acesso ao mercado de trabalho. Houve redução de postos de trabalho, e muitas famílias ficaram em situação de vulnerabilidade ainda maior. Além disso, muitos destes jovens que estão, hoje, sendo vinculados na própria associação, também são, em parte, arrimo de família.

Juventude negra é a mais afetada

Aqui em Belo Horizonte, essa juventude – sobretudo a juventude periférica e negra, homens e mulheres – tem sofrido um impacto muito grande dessa pandemia. Enquanto alguém que está à frente de um projeto social que cria condições que estes jovens tenham uma possibilidade maior ao mundo do trabalho, isso me preocupa.

Porque muitos desses jovens se encontram em estudo remoto, e nem sempre as condições que eles têm de acesso são as melhores. Isso pode significar, daqui para frente, um problema maior no que diz respeito à evasão escolar e à interrupção de projetos de vida.

Sou José Eustáquio de Brito, professor da Universidade do Estado de Minas Gerais, onde leciono na Faculdade de Educação e também na Faculdade de Políticas Públicas.

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40 a 59 anos Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Há perseguição em ambiente de trabalho durante a pandemia”

Não sei como falar sobre algo tão delicado. Trabalho na saúde mental há 10 anos. Durante a pandemia, não deixei de trabalhar, mas esse momento foi de reviravoltas, não sei se devido ao desgaste, tensão ou até medo da contaminação. Se está difícil trabalhar, imagina falar sobre os episódios de perseguição que acontecem no ambiente de trabalho durante este momento delicado. E correr o risco de ser demitida, com o pacote de arroz no preço que está, é uma violência.

Vi em plena pandemia que o local de poder ainda alimenta o ego de muitas pessoas. E, em nome de um código de ética, que nunca li, a demonstração de poder, fere e leva ao silenciamento do trabalhador.

A perseguição existe, mas no ativismo com mulheres negras aprendi que falar é preciso.

No início da pandemia, foi difícil para todos os profissionais no mundo todo, especialmente para os da saúde. Trabalho em uma Unidade de Acolhimento e nesse período sentimos os acolhidos mais agitados, devido à fissura e à restrição de saídas. E, foi assim que me descobri oficineira. Fizemos muitas artes juntos, confeccionamos máscaras, bonecas Abayomi, tapetes de retalhos.

Porém, tudo parou quando contrai a Covid-19. Precisei ficar isolada e afastada e, nesse período, a gestão recebeu uma grande doação de materiais de oficina. A pessoa que doou me comunicou e disse que teria material à minha espera e desejou a minha melhora. Entretanto, quando retornei, a gestão havia doado todo material para outros serviços da região. Fiquei muito triste! É foda quando o seu trampo não é reconhecido. Eu reclamei, ainda exemplifiquei, pois, o que aconteceu é a mesma coisa que tirar a lâmpada de sua própria casa para iluminar a casa do vizinho e ficar no escuro.

Quando a perseguição culmina em demissão

Antes do plantão, eu e minha colega conversámos sobre o que realizar no plantão. Era um mix do nosso saber sempre misturado ao deles. Aliás, aprendi muito nesses anos dedicados à Redução de Danos. Sinto-me sempre reafirmando o compromisso na luta antimanicomial. Minha amiga, por exemplo, tem seus dons culinários e arrastava todos para a cozinha. Era lindo de ver a galera num aprendizado mútuo. A cozinha da Unidade de Acolhimento foi o local mais terapêutico durante a pandemia.

Imagem mostra seis bonecos de azul e acima de cana um contém um balão contendo sinal de exclamação. Todos estão virados para um boneco vermelho, acima deste está um balão com o sinal de interrogação. Imagem acompanha relato sobre perseguição no ambiente de trabalho durante a pandemia. O texto foi enviado por Maria Izabel Fernandes à Memória Popular da Pandemia. Imagem licenciável.

Em um término de plantão, pela manhã, perguntei para uma colega Técnica se ela tinha notado o pé do acolhido, inchado demais. A resposta foi que ela não tinha o que fazer e que “estava inchado porque ele bebe demais”. Senti o desprezo de uma pessoa racista. Foi visível que aquela senhora tinha dificuldade em cuidar de um homem negro retinto.

Pedimos uma reunião com a gestora, que nos explicou o que faz cada papel, e que esse não era o papel do redutor de danos. Duas semanas antes das minhas férias, todos comparecemos em uma reunião online, quando soubemos da informação do desligamento de uma colega afastada. Todos ficamos abalados, pois, a profissional trabalhava conosco há 5 anos e se afastou para ter um bebê. Como assim, demitida após a licença maternidade?

Reflexo da escravidão moderna

A Gestora Suprema, representante da empresa, pediu para que as pessoas se pronunciassem sobre e disse que não íamos sofrer nenhuma consequência. Foi quando falei, olhando para duas mulheres que se dizem feministas: “qualquer mulher que entende o mínimo sobre feminismo conseguiria compreender que a demissão da colega trata-se de um retrocesso. As mulheres deveriam estar de luto, pois ser mãe é um direito, que deveria ser respeitado. A colega demitida não teve a oportunidade de exercer nem um dia de profissional e mãe.”

Foi aí que começou a caça às bruxas. No meio dessa perseguição demitiram minha amiga, que trabalhou 5 anos comigo. Sofri horrores, pois me senti culpada por sua demissão. Houve outras reuniões horrorosas, só desgaste, mas eu fui transferida para outra unidade. Sinto que as pessoas que têm esse poder não se importam com o desgaste do profissional de saúde, em especial o da saúde mental. O vínculo com os usuários é desconsiderado, dando espaço à construção de horripilantes figuras de poder.

Quando anunciaram que nos separariam, segurei firme na mão dela e começamos chorar. A justificativa foi de que a nova supervisora precisava montar sua equipe, para trabalhar do jeito dela. Tínhamos um vínculo muito forte, o que parecia ruim para a empresa. Isso só pode ser reflexo da necropolítica, ou da escravidão moderna: trabalhar 12 horas com uma pessoa e não poder demonstrar afeto por ela. Na escravidão separavam famílias assim. Senti-me como uma peça em um jogo de xadrez, pois é sem sentido, principalmente partindo de profissionais que trabalham com o vínculo. Naquela noite, estávamos de plantão e a tristeza contaminou o local.

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