“Há perseguição em ambiente de trabalho durante a pandemia”

foto em preto e branco de boneca abayomi acompanha relato de Maria Izabel para a Memória Popular da Pandemia sobre perseguição em ambiente de trabalho durante a crise sanitária mundial.

Memória de Maria Izabel Fernandes

Marcha das Mulheres Negras - São Paulo, SP
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Não sei como falar sobre algo tão delicado. Trabalho na saúde mental há 10 anos. Durante a pandemia, não deixei de trabalhar, mas esse momento foi de reviravoltas, não sei se devido ao desgaste, tensão ou até medo da contaminação. Se está difícil trabalhar, imagina falar sobre os episódios de perseguição que acontecem no ambiente de trabalho durante este momento delicado. E correr o risco de ser demitida, com o pacote de arroz no preço que está, é uma violência.

Vi em plena pandemia que o local de poder ainda alimenta o ego de muitas pessoas. E, em nome de um código de ética, que nunca li, a demonstração de poder, fere e leva ao silenciamento do trabalhador.

A perseguição existe, mas no ativismo com mulheres negras aprendi que falar é preciso.

No início da pandemia, foi difícil para todos os profissionais no mundo todo, especialmente para os da saúde. Trabalho em uma Unidade de Acolhimento e nesse período sentimos os acolhidos mais agitados, devido à fissura e à restrição de saídas. E, foi assim que me descobri oficineira. Fizemos muitas artes juntos, confeccionamos máscaras, bonecas Abayomi, tapetes de retalhos.

Porém, tudo parou quando contrai a Covid-19. Precisei ficar isolada e afastada e, nesse período, a gestão recebeu uma grande doação de materiais de oficina. A pessoa que doou me comunicou e disse que teria material à minha espera e desejou a minha melhora. Entretanto, quando retornei, a gestão havia doado todo material para outros serviços da região. Fiquei muito triste! É foda quando o seu trampo não é reconhecido. Eu reclamei, ainda exemplifiquei, pois, o que aconteceu é a mesma coisa que tirar a lâmpada de sua própria casa para iluminar a casa do vizinho e ficar no escuro.

Quando a perseguição culmina em demissão

Antes do plantão, eu e minha colega conversámos sobre o que realizar no plantão. Era um mix do nosso saber sempre misturado ao deles. Aliás, aprendi muito nesses anos dedicados à Redução de Danos. Sinto-me sempre reafirmando o compromisso na luta antimanicomial. Minha amiga, por exemplo, tem seus dons culinários e arrastava todos para a cozinha. Era lindo de ver a galera num aprendizado mútuo. A cozinha da Unidade de Acolhimento foi o local mais terapêutico durante a pandemia.

Imagem mostra seis bonecos de azul e acima de cana um contém um balão contendo sinal de exclamação. Todos estão virados para um boneco vermelho, acima deste está um balão com o sinal de interrogação. Imagem acompanha relato sobre perseguição no ambiente de trabalho durante a pandemia. O texto foi enviado por Maria Izabel Fernandes à Memória Popular da Pandemia. Imagem licenciável.

Em um término de plantão, pela manhã, perguntei para uma colega Técnica se ela tinha notado o pé do acolhido, inchado demais. A resposta foi que ela não tinha o que fazer e que “estava inchado porque ele bebe demais”. Senti o desprezo de uma pessoa racista. Foi visível que aquela senhora tinha dificuldade em cuidar de um homem negro retinto.

Pedimos uma reunião com a gestora, que nos explicou o que faz cada papel, e que esse não era o papel do redutor de danos. Duas semanas antes das minhas férias, todos comparecemos em uma reunião online, quando soubemos da informação do desligamento de uma colega afastada. Todos ficamos abalados, pois, a profissional trabalhava conosco há 5 anos e se afastou para ter um bebê. Como assim, demitida após a licença maternidade?

Reflexo da escravidão moderna

A Gestora Suprema, representante da empresa, pediu para que as pessoas se pronunciassem sobre e disse que não íamos sofrer nenhuma consequência. Foi quando falei, olhando para duas mulheres que se dizem feministas: “qualquer mulher que entende o mínimo sobre feminismo conseguiria compreender que a demissão da colega trata-se de um retrocesso. As mulheres deveriam estar de luto, pois ser mãe é um direito, que deveria ser respeitado. A colega demitida não teve a oportunidade de exercer nem um dia de profissional e mãe.”

Foi aí que começou a caça às bruxas. No meio dessa perseguição demitiram minha amiga, que trabalhou 5 anos comigo. Sofri horrores, pois me senti culpada por sua demissão. Houve outras reuniões horrorosas, só desgaste, mas eu fui transferida para outra unidade. Sinto que as pessoas que têm esse poder não se importam com o desgaste do profissional de saúde, em especial o da saúde mental. O vínculo com os usuários é desconsiderado, dando espaço à construção de horripilantes figuras de poder.

Quando anunciaram que nos separariam, segurei firme na mão dela e começamos chorar. A justificativa foi de que a nova supervisora precisava montar sua equipe, para trabalhar do jeito dela. Tínhamos um vínculo muito forte, o que parecia ruim para a empresa. Isso só pode ser reflexo da necropolítica, ou da escravidão moderna: trabalhar 12 horas com uma pessoa e não poder demonstrar afeto por ela. Na escravidão separavam famílias assim. Senti-me como uma peça em um jogo de xadrez, pois é sem sentido, principalmente partindo de profissionais que trabalham com o vínculo. Naquela noite, estávamos de plantão e a tristeza contaminou o local.

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