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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

A pandemia forçou nossa renovação

Foi neste momento que começou a pandemia. Antes de tudo, nós estávamos com uma perspectiva muito boa para o Festival de 2020. Sendo que, em 2019, a gente estava com um projeto bem legal de artistas, para fazer umas fantasias para 2020. Desde então, a gente estava fazendo o show de turistas e, quando veio a pandemia, a gente teve que parar.

Meu nome é Diego Cruz Azevedo. Atualmente sou figurinista do Boi-Bumbá Caprichoso. Comecei sendo figurinista em 2017, na gestão do presidente Babá Tupinambá. Mas venho trabalhando desde 1998 com o tio Deco, fazendo tribo e tuxaua, na agremiação.

Então, assim, comecei com ele, depois fui para a Escolinha do Boi-Bumbá Caprichoso e aprendi mais ainda. Fiz desenho, fiz artesanato de luxo e depois eu fiz dança. E depois da Escolinha eu comecei já a ingressar na vida de artista. Então, trabalhando com meu tio e com outros artistas do Boi-Bumbá Caprichoso que sempre me convidaram pra trabalhar. Aí, aprendi muito trabalhando no Festival.

Eu comecei a viajar pra São Paulo, sendo reconhecido pelo meu trabalho. Na gestão do Babá Tupinambá, em 2017, foi que eu fui convidado pelo presidente do Conselho de Artes, Éricky Nakanome, pra ingressar no quadro oficial de artistas, para fazer a Marujada. Desde então, eu estou no quadro de artistas.

“Perdi alguns parentes na pandemia”

Com a pandemia, todo mundo ficou nas suas casas, com os cuidados básicos pra não pegar a doença. Perdi alguns parentes na pandemia. Quando vieram as lives dos Bois, os diretores me convidaram para participar, para fazer fantasia, com o intuito de não ficar parado. Então a gente sempre ficou ajudando aqui na agremiação, nas lives. Quando tinha algum evento do Boi, a gente ia, mas ia sempre prevenido. Então, com isso, a gente teve que aprender a lidar com a pandemia, porque já não voltamos ao normal.

 Com a pandemia de Covid-19 que foi acontecendo, nós tivemos que nos renovar. Então, com essas lives do Boi, eu tenho uma equipe de seis pessoas – como eu não podia contratar muitas pessoas, eu sempre ficava revezando com os meninos que sempre me ajudam.

Eu ficava revezando, porque, é claro, sempre dependemos muito do festival. A nossa renda é o Festival. Então, como o evento não aconteceu, a nossa renda ficou muito baixa. Além disso, eu sempre revezava com as pessoas mais carentes que eu, para poder, de alguma forma, ajudar com o sustento de suas famílias.

A esperança da vacina

Com a chegada da vacina, já deu mais uma esperança pra gente. Reuni mais pessoas para o trabalho e isso ajudou mais ainda o Caprichoso a fazer as fantasias – que são os figurinos que a gente começou a fazer com a minha equipe.

Fora as equipes dos outros artistas também que começaram a se juntar. Começou a renovar a nossa vida de novo. Não ao ponto de estar tudo normal, mas a vida já começou a melhorar.

A expectativa que nós estamos tendo é de que para o ano que vem, seja o melhor Festival de todos os tempos. Porque é uma espera de dois anos, e por isso, o Festival vai ser grande! E, com isso, o Caprichoso vem muito bonito. Além do mais, temos conversas corriqueiras com o Conselho, que repassa todos as informações necessárias, portanto, a expectativa é alta para o ano que vem.

Ser mais é abranger o coleguismo, a amizade.

Perdemos muitos amigos na pandemia, mas, os que permaneceram em nosso meio, a gente tem que acolher.

A pandemia veio e mostrou pra gente que a gente tem que gostar do próximo, para podermos ir para a frente. E você que ainda não se vacinou, vacine-se.

 Eu já tomei as minhas duas doses, e aqui, o pessoal do Caprichoso, para conseguirmos fazer tudo o que quisermos, precisamos estar completamente vacinados.

A vacinação garante maior tempo de vida para as pessoas.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

Foi assim, nessa fase, que me deparei com a pandemia

Eu tenho 23 anos. Curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes desde 2017 e teria me formado em 2020, se não fosse a pandemia. Passei a maior parte da minha vida em Cajazeiras.

Meus pais são separados. Minha mãe criou a mim e meu irmão. Ela é empregada doméstica e sempre trabalhou em casas situadas em bairro considerados nobres, como Rio Vermelho e Barra, para onde eu ia com ela — já que ela me matriculou em colégios públicos próximos à área em que trabalhava. Assim, saíamos juntos, e, depois que a minha aula terminava, eu ficava com ela até que fosse liberada do serviço e voltássemos para casa.

Sempre existiram algumas questões que me afastavam da minha família. Meu pai, ausente, morando em outra cidade, só nos ajudava quando conseguia algum trabalho. Meu irmão, usuário de drogas, se envolveu com o tráfico e chegou a ser preso. Minha mãe conseguiu um advogado para libertá-lo. Questões como essas geraram um afastamento familiar. Mas minha mãe sempre trabalhou para colocar comida na mesa e nos dar o mínimo.

Os abismos da realidade

Éramos vulneráveis e nem tínhamos essa consciência. O mais doido de tudo isso era que enquanto eu vivenciava essa realidade em casa — e convivia nos colégios com colegas, na maioria pretos, como eu, que vinham de um contexto similar —, na casa dos patrões da minha mãe eu percebia outra categoria de arranjo familiar. Era completamente desigual. Eu experienciava um “não-lugar”. Não me sentia pertencente a nenhum dos mundos.

Em Cajazeiras ou no colégio, eu tinha pouco tempo, e no trabalho da minha mãe, eu sabia que não fazia parte daquele lugar. Esses trânsitos me impediam de criar vínculos e relações estáveis, duradouras. Eu era bem introvertido.

Sou gay e minha mãe age com indiferença, como se não soubesse.

Sempre fui a pessoa mais escura da minha família. Eu sabia que muito do que eu passava na vida era, primeiro, por conta da minha cor, e também, por perceberem minha sexualidade dissidente.

A desigualdade é anterior à pandemia

Eu ainda era uma criança quando já me preocupava em, quando comprar o pão para a família que a minha mãe trabalhava, não parecer ou ser confundido com um delinquente, por exemplo. Eu pensava desde as roupas que usaria, que não estivessem minimamente rasgadas, até a maneira como andaria. A neta da patroa da minha mãe tinha a minha idade e era com ela (e com os amigos e familiares dela) que eu tinha algum tempo para brincar, de vez em quando. E, obviamente, existia um contraste gritante… sofrendo violências que, pela pouca idade, eu nem sequer percebia na época, sendo excluído de algumas brincadeiras.

Era um recorte de classe, mas que, principalmente no Brasil, está intrinsecamente ligado ao recorte de raça. O subconsciente e inconsciente coletivo de que preto é pobre e branco é rico. E as pessoas ao meu redor acreditavam que eu deveria enxergar naquele lugar uma oportunidade de transformação — apesar das violências. Eu era visto como um exemplo, principalmente porque, comparado ao meu irmão — que apontavam como alguém que “deu errado” — eu era alguém em que se podia depositar alguma confiança de que “daria certo”.

Isso era extremamente incômodo para mim, porque eu não queria ocupar esse lugar de expectativas. Fiz o possível para me esquivar dessa perspectiva. Até por tentar enxergar meu irmão de forma mais humana e, sem desresponsabilizar ele, entender os contextos e perceber quais as responsabilidades dele, do Estado, da família, da sociedade. Enquanto isso, fui tomando consciência, cada vez mais, sobre a minha raça e sexualidade.

A chegada da pandemia

Por conta da universidade, primeiro, fui morar com um casal de amigos, no Alto das Pombas. Envolvi-me bastante com o movimento estudantil, e essa foi a maior oportunidade de fazer coisas novas, que eu tinha vontade. Além disso, a fazer parte de um coletivo de teatro, e nele, eu estava atuando. Em 2019, eu sentia que a minha vida estava fluindo bem e eu estava dando conta de tudo, até comecei um namoro.

Quando ainda só ouvíamos os rumores e não sabíamos a dimensão de tudo que viveríamos, fomos vivendo normalmente e deixando para ver como seria quando chegasse aqui. Até aí, eu estava muito conectado às pessoas.

A cada passo que eu dava no campus da universidade, eu falava com alguém. Eram muitas relações. O distanciamento social me impactou. E os amigos, com quem eu morava viajaram… passei 7 meses sozinho, recebendo visitas apenas do meu namorado. Foi uma época meio louca, porque era preciso se preparar tecnologicamente, porque era através da tecnologia que se manteriam as relações.

Houve muita briga no meu curso por questões administrativas e afins. Eu temi muito por minha mãe. Eu não estava com ela, mas ela ainda trabalhava na casa das pessoas de classe média. Ela chegou a ficar um tempo parada, mas depois retornou. E não tem como não pontuar que a primeira pessoa a morrer por Covid no Brasil foi uma empregada doméstica. Ela ficou bem.

Não perdi familiares, mas vizinhos e conhecidos faleceram.

Uma possível esperança para o pós-pandemia?

O que mais me dava medo dessa pandemia era essa ideia de uma “coisa invisível” que, em algum momento, poderia pegar em mim. E aí tinha toda aquela paranoia, limpando tudo, separando as roupas que eram usadas e tudo mais. Hoje eu avalio que foi ótimo estar só — não completamente só, porque, como disse, via meu namorado aos fins de semana. Mas penso que se eu estivesse com mais alguém em casa… acredito que ficaria louco.

A pior parte da pandemia era estar em espaços virtuais nos quais eu não me sentia contemplado, não tinha tanto acesso e o medo dessa ameaça iminente, o que me gerou crises de ansiedade. Fiquei bloqueado para o choro, as lágrimas não vinham.

E um momento muito difícil foi a morte do meu namorado — que não foi por Covid — sobre a qual eu ainda nem consigo elaborar.

A sensação que eu tenho é de que a vida parou. Tudo ficou estagnado em algum lugar, paralisado, esperando o momento de reiniciar. Agora, espero que eu consiga retomar tudo de onde parei. Quero muito conseguir tirar do passado para o presente tudo o que eu iniciei, e precisei pausar. Mas, por enquanto, tanto individual quanto coletivamente, não existe alegria, estamos longe de estar bem.

 Espero sairmos dessa preparados e com forças para encarar coisas piores.

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18 a 24 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Homem Cis Prta

“Foi quando ficou mais forte a negritude em mim”

A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.

Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro… 

O universo das escolas particulares

Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.

Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.

Universidade e o olhar para a negritude

Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil. 

Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.

Ter entrado em contato com o Gapa foi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).

No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.

Pandemia e o boicote às descobertas

Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.

O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo. 

Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown. 

A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.

“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”

Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora. 

Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.

 Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor. 

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25 a 39 anos Bahia Ensino Médio Incompleto Homem Cis Prta

De todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior

Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.

Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.

Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.

Uma infância de relacionamentos difíceis

Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.

Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.

Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.

Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.

Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.

A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.

A escola e a descoberta da sorologia

Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.

Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.

Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.

Deu positivo.

Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.

O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.

Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.

Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.

O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.

 Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.

Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.

Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.

Desgastes emocionais

Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.

Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.

Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.

Não conseguiria abraçar o mundo.

Relacionamentos tóxicos

Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.

Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.

Estive preso em um relacionamento abusivo

Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.

A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.

Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.

Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.

Desenvolvi insônia.

Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.

Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.

Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.

Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.

Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.

Em um relacionamento com a solitude

Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.

Ainda estou me curando dos traumas.

Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.

Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.

Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.

Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.

 Aprendi a ficar comigo.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Médio Completo Homem Cis Parda

Descobri o meu diagnóstico de HIV aos 48 anos

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como pegamos.

Meu nome é Robson, tenho 52 anos, e fui criado em Salvador. Fugi de casa aos 7 anos, pois passava por diversos conflitos. Sou fruto de uma relação da minha mãe com um homem casado, por isso, ela foi mãe solteira.

Com o passar dos anos, ela conheceu — e passou a morar — com um cidadão que se tornou o meu padrasto, o mais próximo que tive de um pai.

Naquele tempo, a ideia era de que “um bom psicólogo é uma boa surra”. Fui criado numa família com base evangélica, que apontava tudo como pecado. Eu apanhava bastante.

Fugindo de casa

A partir disso, comecei a ensaiar fugas: fugia para a esquina, depois, de Candeias para Salvador, de Salvador para Itabuna e, com 11 anos, eu estava em São Paulo, sozinho.

Fugia porque apanhava. Depois, comecei a fugir porque não conseguia mais trabalhar. E foi assim que eu aprendi a viver. Por isso, sempre disse para mim mesmo que, quando eu pensasse em colocar filhos no mundo, eles jamais seriam criados por padrastos, mas por mim. Para que eles não passassem pelo que passei.

Conheci minha esposa na Praça José Ferreira, em Fortaleza. Eu, com 22 anos, e ela, com 17. Ela também vivia em situação de rua, e estava toda suja de cola de sapateiro — tinha uma história de vida muito parecida com a minha.

Pelos caminhos da vida

Tivemos 3 filhos. Tenho uma filha lésbica e, acho importante dizer isso porque, apesar da criação evangélica, e de ser evangélico, eu não concordo com o que dizem sobre pessoas como a minha filha — que são lésbicas ou que são ‘diversas’.

Eu entendo que eu devo dar a ela o mesmo que Deus dá: amor e respeito. É nisso que eu acredito.

Aprendi a pensar assim depois que um amigo meu me mostrou o quanto eu era ignorante, quando pensava que minha filha tinha que corresponder às minhas expectativas. Ele dizia:

“Veja tudo o que você esperava que sua filha fosse; uma mulher inteligente, bem-educada, com caráter, estudiosa, trabalhadora. Ela é tudo isso! Você também quer escolher com quem ela deve amar e namorar? Isso não lhe cabe! Você está perdendo a sua filha”.

Aquilo me fez mudar…

Descobrindo o HIV

Descobri o meu diagnóstico positivo para HIV em 2 de fevereiro de 2007, aos 48 anos. Tanto eu, quanto a minha esposa, nunca soubemos como adquirimos, ou de quem adquirimos.

Quando ainda planejávamos os filhos — que são HIV negativo — eu disse-lhe que, caso nos separássemos, eles ficariam comigo. E quando a separação aconteceu, meus próprios filhos escolheram ficar comigo.

Não conhecia e nem sabia o que era ter HIV. Nesta época, pensei que teria apenas mais 2 ou 3 meses de vida. Cheguei a pensar em suicídio.

Vivendo com HIV

Um dia, em Belo Horizonte, na Praça Afonso Pena, um lugar que passa ônibus a todo minuto, eu cogitei me lançar na frente de um daqueles transportes coletivos, mas, por incrível que pareça, em quase uma hora esperando, não passou um ônibus sequer.

 A partir daquele momento, passei a tomar um litro de conhaque por dia. Depois, já de volta a minha cidade, meu filho me chamou e disse:

“O HIV não vai lhe matar, mas o senhor está se matando”.

Então, ele me deu o endereço de um Serviço de Atendimento à Pessoas Vivendo com HIV — as nomenclaturas na época eram outras. Lá, conheci uma mulher que me disse viver com o vírus há 25 anos — foi quando eu entendi que iria sobreviver, que havia, ainda, muita vida por vir.

Tive a melhor faculdade que qualquer ser humano poderia ter: o mundo; e o melhor professor: o sofrimento.

Aprendi a me virar de diversas formas, exceto cometer crimes. Sempre trabalhei. Cheguei a levar compras de pessoas do mercado até em casa, lavar carros, vender picolé, e jornal.

 Foi com os jornais que aprendi a ler. Tinha muita curiosidade de entender o que eu estava vendendo. E lendo jornais, vendo as notícias, — entendi a importância de estar informado, para ir à luta.

O lugar de fala de uma pessoa com HIV

Entendo meu lugar como uma pessoa que vive com HIV, mas também como negro, e, ainda, entendo as relações entre o racismo e o classicismo, que oprimem de forma conjunta.

O preto sofre discriminação por ser preto, mas também, de forma agravada por ser pobre. Sei bem o que é isso. Mas venci. Meu filho se formou jornalista, e eu, até na área de caldeiraria trabalhei; e, trabalhando nesse setor, tive a oportunidade de viajar e conhecer 26 capitais do Brasil e 6 países.

Cheguei a ir para a África. Fiquei em São Paulo, passei por Curitiba. Contudo, meu projeto era encontrar o meu filho em Salvador, pois tínhamos planos de abrir um hostel em Fortaleza — em Canoa Quebrada.

A chegada da pandemia

Estava tudo programado para isso. Quando ouvimos sobre as notícias do coronavírus, ainda fora do país. Pensávamos que a pandemia seria apenas mais uma daquelas viroses que sempre nos acometem logo após a época de carnaval. Pensávamos que duraria uma semana.

Mas a pandemia destruiu todos os meus projetos, visto que acabou com o turismo. Retornei para São Paulo, para a casa do meu irmão, na tentativa de redirecionar a vida, mas quando cheguei lá, tive de ficar preso e com medo, transtornado, como todo o mundo.

Com a vida parada, precisei pensar em formas de me manter durante todo aquele momento que se iniciava. Com isso, comecei a trabalhar como motorista de aplicativo. Usava um carro que não era meu e, infelizmente, tive que devolvê-lo quando parei de trabalhar.

E isso não aconteceu apenas comigo, mas com muitos que trabalhavam como motorista de aplicativo, porque já não era mais viável, dado que, com o lockdown, as pessoas não utilizavam mais o serviço.

De volta à Salvador

Voltei à Salvador para tentar atuar como motorista, mas, encontrei uma grande dificuldade. Não perdi ninguém próximo durante a pandemia.

Acredito que não me infectei, ou que fui assintomático. Não segui a quarentena porque não tinha saída: eu precisava trabalhar diariamente.

O máximo que podia era me afastar um pouco mais das pessoas. Não tive dificuldades para conseguir os medicamentos antirretrovirais, mas foi bem difícil ter acesso aos médicos infectologistas. Foi muito difícil fazer os exames e marcar as consultas.

Não tive medo de morrer porque fui treinado pela vida. Eu dormia debaixo da ponte, entrava em baldes de lixo para conseguir ter o que comer.

Vivo com HIV em um país com um governo que não me assiste. O que mais poderia temer?

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25 a 39 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

Não me permiti sofrer para ser suporte

Estava sendo exaustivo trabalhar no segundo e no terceiro setor e, ao mesmo tempo, senti estar sem suporte — ambos os trabalhos estavam exigindo muito de minha parte.

Trabalhei com vendas durante muito tempo, sempre na área da gestão. Após idealizar e co-fundar a ONG Nariz Solidário, percebi que já não conseguia mais realizar às duas coisas.

A Covid-19 tirou o meu suporte

Comecei a perceber que, minha energia era muito maior quando se falava no social, meu interesse era o dobro, e bingo! O universo conspirou, e me fez perder o emprego.

Por dois anos desisti de vagas, reprovei em outras, vi-me vulnerável, e coloquei minha família em vulnerabilidade.

Foi aí que decidi focar no terceiro setor e na ONG. Consegui até uma bolsa para me especializar mais na área, trabalhei brevemente em outra ONG, e adquiri mais experiência.

No início de 2020, decidi ficar 100% dedicado ao trabalho social. Tudo ia bem, de forma muito promissora, até que uma bomba chamada Covid-19, explodiu.

Sem suporte e sem emprego, a Covid-19 chegou

Estou acostumado a trabalhar em ambientes de pressão, mas, poucas vezes, me vi com tanta ansiedade.

Era uma pressão no meu peito e, uma sensação indescritível; golpeava-me com muita força.

 Essa situação se tornou extremamente exaustiva quando, precisei me manter firme, pela minha família, e por todos os voluntários da ONG.

Não me permiti sofrer para ser suporte, ser refúgio, mas, gradualmente, fui percebendo que não estava funcionando.

Eu poderia estar empregado, ganhando bem, sem aquela loucura social, ou quem sabe, já teria sido cortado e estaria, no mínimo, recebendo auxílio emergencial.

De certa forma, não dava para prever e nem para mudar. Minha filha, na época com 12 anos, até entendia algumas questões, já o meu filho de três anos, só entendia querer leite com chocolate, e quando o papai estava feliz, ou nervoso.

Ficamos um ano confinados em um buraco que parecia não ter fim. Ele, querendo brincar, e eu, tentando me organizar entre o meu inferno interior e o equilíbrio de ser um pai para ele e tantas outras coisas para tanta gente.

Nesse período, minha esposa ainda conseguiu manter seu trabalho, mesmo autônoma. Nesse período, também, a saudade da minha filha que mora com a mãe em outro estado me doía. Eu estava falido, sem saída.

Não foi conselho, foi suporte e cuidado

Alguns meses depois, convoquei uma reunião com os facilitadores da ONG. Minha intenção era de pedir ajuda, mas também, estava em busca de alguém que me convencesse a desistir, pois, não estava conseguindo engajar os voluntários afetados pelas problemáticas sociais.

 Eu sabia que nosso público-alvo estava ainda mais vulnerável e, nós tínhamos que estar lá, afinal, nascemos do caos e para ele.

Mas eu também estava sem forças. Em uma pausa de desabafo, o Thiago, do Marketing, me salvou.

 “Du, respira, grandes CEOs de grandes empresas, com profissionais de alta desempenho, não estão sabendo o que fazer.”

Os demais também manifestaram apoio. Foi uma fala tão simples, mas tão potente para mim naquele momento, que me desacelerou e me fez reorganizar as minhas emoções.

O acolhimento emocional

Larguei o computador por uns dias, minhas dores diminuíram, já que eu acordava com o computador ligado e praticamente dormia em cima dele.

Passei a brincar mais com meu filho, peguei novamente no violão, comecei a cuidar de mim e da minha esposa. Fiz umas ligações despretensiosas, assisti a filmes, e desacelerei.

Após esse momento de relaxamento, comecei a analisar o que poderia dar certo: as tendências, urgências, demandas, parcerias, e as amizades de valor.

Em uma tentativa arriscada de fazer lives, já que eu tinha medo de dar opiniões tão abertamente, deu certo. Fomos um dos primeiros grupos artísticos a fazer lives e a abordar assuntos específicos sobre nosso contexto — coloquei tudo para fora.

Esse movimento culminou em cursos ‘on-line’, e na criação de fóruns inéditos no país.

Os recursos começaram a entrar, e com isso, chegou-se a um estágio de eu estar contribuindo para ajudar colegas a saírem do mesmo buraco em que estive.

O que mais me chamou a atenção, foi que à medida que, os problemas sociais e globais iam aumentando, e o nosso trabalho, ia tomando ainda mais força.

Minha mente conseguiu canalizar toda aquela dor e me fez organizar tudo que eu já estudara na vida.

Como um sopre de apoio

Como um sopro de esperança, alguns projetos foram aprovados e, conseguimos gerar empregos para artistas voluntários que, também se encontravam vulneráveis.

Em meio ao caos, conseguimos manter nosso trabalho nos hospitais em um momento em que, praticamente 100% das atividades semelhantes em todo o país, haviam sido bloqueadas.

Recentemente, fiz uma análise dessa trajetória, em busca de entender quais foram os pontos que me tiraram daquele abismo, e me trouxeram a ser corresponsável por impactar mais de 40 mil pessoas na pandemia.

Percebi que, ainda fraco, mantive o propósito e, quando estava prestes a perdê-lo, ele me encontrou e floresceu de dentro daqueles que ajudei de alguma forma, que, assim como eu, estavam aflitos, exaustos e que, por meio da arte, encontraram forças para continuar.

Isso me fez perceber na prática, a lei do retorno. “Do buraco ao solo”

Quem cuida de quem cuida?

A pandemia me fez perder incontáveis amigos e familiares. Contudo, é estranho dizer que o luto, virou cotidiano. Mesmo quando todos em casa positivaram, pareceu não mais causar medo e, até hoje, ainda reflito sobre esse sentimento.

Penso que, é uma utopia sofrer com a esperança de que algo retorne, pois não vai, e essa fase do luto, acabei apaticamente vencendo.

Por outro lado, tudo isso também me fez ser melhor, mais humano, mais forte, um melhor pai, esposo, amigo, profissional. Aprendi a conviver melhor com meu ego, e a ter mais paciência e tolerância de meus medos.

 Ainda não está favorável, continuamos nossa luta, fazemos isso com arte. Talvez nunca esteja favorável, embora lutemos para isso – é um paradoxo que permeia quem mergulha muito na lógica e na tentativa de acabar com a nossas mazelas.

Quanto a isso, não tenho respostas, somente o momento presente.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Homem Cis Paraná Pós-Graduação Completa

A saudade de visitar era maior que o risco

Com a pandemia, a saudade das visitas e dos olhares dos pacientes era grande.

Sou perito contador e advogado, funções que mesmo antes da pandemia já possuíam a característica de ser um trabalho solitário.

 Durante esse isolamento, o trabalho  foi me consumindo e, se tornando, uma das únicas atividades do meu dia.

A saudade de visitar crescia

Por outro lado, crescia em mim a vontade de poder estar em contato com pessoas, e poder contribuir, de alguma forma, com um trabalho solidário.

Eu já realizava esse trabalho em um ONG, atuando como palhaço em hospitais. Porém, como voltar aos hospitais nesse momento, se eles eram o olho do furacão?

A esperança de poder visitar

Por mais que ainda hoje não tenhamos uma data prevista para o fim desse momento delicado em que vivemos, nunca deixei de acreditar que esse período conturbado da pandemia, fosse acabar.

A ONG continuou firme com os seus objetivos e, em parceria com os hospitais, encontrou uma forma de continuar presente na rotina dos pacientes.

 Algo que, antes, era realizado presencialmente pelos voluntários da ONG, passou a ser feito de forma remota, com o auxílio de um robô, que era guiado por um assistente do hospital até os quartos dos pacientes.

A partir disso, conseguimos continuar a interagir com um dos nossos principais públicos-alvo.

Adeus, saudade

A atividade fim da ONG não deixou de ser cumprida, mas agora a forma era bem diferente.

Durante esse período, tive o prazer de acompanhar o crescimento de diversos amigos que lhe tomaram essa missão, e a desempenharam incrivelmente.

Eles realmente fizeram a diferença nesse período, tão inusitado. Eu, por outro lado, não consegui embarcar nessa mesma onda, mas o desejo de continuar atuando como palhaço não diminuiu nem um pouco.

A pandemia ainda não acabou, e precisamos continuar com todos os cuidados e protocolos de proteção, mas já conseguimos ver uma luz no final do túnel.

O tempo continuou passando dia após dia, por vezes, de forma bem lenta, e a esperança de voltar a atuar nos hospitais parecia algo muito distante.

Foi então que, de repente, li em nosso grupo de mensagens, que teríamos a oportunidade de voltar a estar presentes em um dos nossos hospitais parceiros.

Na hora, o coração acelerou muito, acompanhado de uma sensação de desespero só por lembrar que eu não estava em dia com os meus estudos da palhaçaria.

Isso tudo foi agravado, pois, o evento aconteceria no local onde estou lotado como voluntário (meu querido Hospital do Idoso).

Ao ler a postagem, tomei ciência de que o evento para o qual fomos convidados, ocorreria durante a semana, em horário comercial, o que diminui a quantidade de voluntários disponíveis.

Apesar de continuar ativo na ONG ajudando em rotinas administrativas, a vontade de voltar a visitar era absurda.

A maioria das conversas em tempos de pandemia, giram em torno de um só assunto: será que já estamos seguros para voltar a nos encontrar?

A saudade e o reencontro

O evento foi realizado no auditório do hospital, e contou com a presença de diversas pessoas, sendo nossa função, recepcionar esses participantes.

Assim que coloquei os pés no hospital, as lembranças dos diversos momentos ali vividos começaram a visitar a minha memória.

É incrível como aquilo que nos faz bem, volta com uma força gigantesca e nos motiva.

No início da preparação, as mãos estavam trêmulas pela falta de prática em arrumar o figurino, fazendo a preparação demorar muito mais do que o normal.

Foi importantíssimo poder contar com a ajuda dos dois parceiros nessa preparação. Enfim, depois do figurino pronto, fomos recepcionar nossos participantes.

A energia que o palhaço carrega dentro de si, é algo incrível. Ela contagia a quase todos por onde passa. É maravilhoso conseguir olhar nos olhos das pessoas e sentir o carinho transbordar.

“Esse período de reclusão nos ensinou muitas coisas, e penso que, uma das principais, é o fato de percebemos que humanos gostam, e precisam, estar com outros humanos.”

A receptividade dos participantes foi espetacular, e mesmo que os jogos e a dupla não tenham apresentado a sua melhor performance, o resultado foi muito bom.

Depois de um bom tempo interagindo com os participantes, finalizamos nossa atuação entregando o auditório para a palestrante principal.

Eu pensava que já tínhamos terminado a nossa participação, quando recebemos mais um convite.

Matando a saudade na ala do hospital

Agora a missão era visitar todas as alas do hospital, convidando os colaboradores a participarem do evento que estava acontecendo, um evento muito importante que trazia várias técnicas que auxiliavam no gerenciamento da dor.

Não preciso nem dizer que aceitamos de pronto. Voltar a entrar nas alas, trouxe-me um misto de emoções, tais como saudade, alegria e euforia.

Durante os caminhos percorridos, foi inevitável olhar para determinados quartos procurando por pacientes que, por diversas vezes, visitamos. Infelizmente ou felizmente, não consegui encontrar ninguém que já conhecia.

Mas também estava curioso para reencontrar a equipe de enfermagem que sempre me recebeu com sorrisos maravilhosos.

Assim que chegamos ao primeiro posto de enfermagem, o astral subiu para as alturas.

Fomos recebidos com muita euforia e a alegria foi se espalhando por todo o ambiente.

De forma natural e harmoniosa, gradualmente, fomos nos comunicando, brincando. Era como se o tempo não tivesse passado.

Após visitar vários postos de enfermagem, com muita interação, nos despedimos, e fomos ao Centro de Terapia Intensiva.

O reencontro na CTI

O Centro de Terapia Intensiva é um local de cuidados especiais, onde, geralmente, os pacientes ficam por um longo tempo, apenas com a companhia da equipe hospitalar.

Nem sempre é possível termos contato com esses pacientes, seja devido ao seu estado de saúde, pois vários estão desacordados, seja por inspirarem cuidados muito especiais, sem que a aproximação seja possível.

Nessa nossa visita, ao adentrarmos o CTI com todas as precauções possíveis, fomos direto ao posto de enfermagem convidar os colaboradores, e fomos mais uma vez recebidos com sorrisos e com muito carinho.

A grande surpresa veio quando eu já estava saindo. Ao me despedir dos colaboradores, quando me virei para sair do CTI, meu olhar cruzou com uma paciente que estava acamada em um dos leitos.

 A conexão dos olhares foi instantânea. Naquele momento, a minha conexão com o meu parceiro de visita se quebrou e me concentrei naquele olhar. Ela me olhava de um jeito tão especial que me prendia em seu olhar.

Não tinha como não retribuir aquele sorriso e aquele olhar. O reflexo foi imediato e, mesmo estando a uma certa distância física, comecei a retribuir com olhares e gestos de carinho.

Novamente, pude comprovar que a palavra e a fala, não são as únicas formas que temos para nos comunicarmos.

Não sei precisar exatamente o tempo que essa conexão durou, mas tenho a certeza de que as trocas de olhares e os gestos de carinho que trocamos alimentaram nossos corações e tornaram nosso dia mais alegre.

E que saudade que estávamos desse reencontro

O tempo de duração não foi grande, mas a intensidade foi gigantesca. Despedi-me dela com vontade de continuar ali por mais tempo, mas meu parceiro de visita já estava saindo e não podia deixá-lo mais sozinho.

E foi assim que me despedi e retomei a minha visita. No fim, embora a visita não tivesse o objetivo de interagir com os pacientes, acabei me conectando com vários.

Sei que ainda não há previsão de retorno da visitação aos pacientes, mas essa pequena visita me fez sentir, mais uma vez, o quanto é bom poder atuar como palhaço no ambiente hospitalar.

Agora, é retomar as minhas rotinas de estudos da palhaçaria e esperar que, em breve, eu possa voltar à rotina de visitas.

Agradeço aos meus parceiros de visita, ao Hospital do Idoso Zilda Arns, por nos proporcionar esse momento, e agradeço especialmente a todas as pessoas que interagiram conosco com tanto amor e carinho.  


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná

Abraçando a onça

Eu e minha dupla de visita, Sabrina Silva (Palhaça Lupita), encontramos, abraçada à sua onça, a Dona Eliane, uma senhora muito simpática.

Dona Eliane nos contou que trabalha no cemitério e que também é palhaça. Ficamos imaginando-a fazendo palhaçadas no cemitério. Contou-nos ainda que sua tia dançava em cima de um cavalo, já imaginaram? Pois ela e seu tio eram do circo e, entre inúmeras peripécias, amavam-se muito, tanto que, quando ela se foi, ele se foi logo em seguida, para continuarem com seus espetáculos juntinhos.

Paciente em hospital interagindo virtualmente com os palhaços do Nariz Solidário

E a onça? Não quisemos conferir se estava viva. Saímos a bordo de um manequim, ou melhor, de um tablet na cabeça de um manequim – “Se virem uma onça por aí, não diga que fomos por ali”.

Antes da onça

Sou ator e artista há muitos anos, e a pandemia me trouxe ansiedades muito fortes, principalmente por conta de minha profissão ter sido uma das primeiras a saírem de cena, e a última a retornar – inclusive, ainda não retornou por completo.

No meio disso tudo eu, que faço parte da ONG Nariz Solidário, consegui manter o meu ofício por conta de um projeto aprovado, que não só me trouxe um respiro financeiro e emocional, mas também me fez olhar de outra forma para a arte.

Tivemos que nos adaptar e realizar intervenções virtuais, que antes eram presenciais, em hospitais do SUS. No começo foi difícil, novo e estranho. Mas ao longo do tempo fomos percebendo que, mesmo no ambiente tecnológico, era possível promover encontros artísticos que também pudessem gerar transformações mútuas.

Depois da onça

“Enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar”

O isolamento social e as diversas problemáticas causadas pela pandemia e que explodem na saúde física e mental de cada pessoa, ainda podem ser suspensos por instantes, em estados brincantes, ainda que a dor supere a razão e a intenção. Nos hospitais sempre existiram isolamentos temporários, no entanto, o que vivemos se tornou algo longo e duradouro, que nos encaixotou em uma tela pequena, de reflexões sobre realidades dolorosas.

Porém, repito: enquanto houver vida, há sempre espaço para um leve respirar e brincar.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná Prta

Um mergulho musical na UTI

Enquanto a psicóloga hospitalar nos conduzia a bordo da ‘Covidina’ (manequim adaptado para visitação remota do Nariz Solidário), para fazermos um mergulho musical na UTI. Cantávamos ao som de ‘Kazoo’, com um pandeiro e com os sons produzidos em nosso próprio corpo.

Adentrando na UTI

Tivemos uma percepção nítida do impacto do palhaço na UTI, ainda que de forma remota. Ali, do outro lado da tela, profissionais exaustos, com seus múltiplos EPIs, proporcionando-nos apenas um contato com os olhos e sua expressão corporal.

Em um determinado momento, em resposta ao nosso completo desajuste e desafinação de nosso mergulho musical — sorriram, cantaram e dançaram conosco.

Foi quando nos deparamos com um desafio: esquecemos aquela música grudada em nossa cabeça desde dezembro do ano passado, quando cantamos no mergulho musical. Depois de algum esforço — “meu coração, não sei por que, como é grande, o meu amor, por você!”


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Completo Homem Cis Paraná

Visitamos uma princesa

Sou voluntário na Associação Nariz Solidário, onde trabalho como palhaço em hospitais de Curitiba e região. Há cerca de um ano e meio que não sentíamos mais a energia e o amor das visitas presenciais, dos encontros, olhares e sorrisos.

De volta aos hospitais..

No mês de outubro voltamos para a nossa rotina de visitas aos hospitais. No meu primeiro dia foi difícil conter as emoções geradas pelos risos e olhares nos corredores do hospital.

Entrando nos quartos, não conseguia conter a vontade de passar pelos batentes das portas e me mudar para lá, ficar com as crianças até elas melhorarem e irem para casa.

“De palhaços para alteza”

Palhaço Frutoso e palhaça Jupira em um quarto no Hospital em Curitiba (PR).

Batemos em uma das portas para ver se podíamos entrar. Surpreendemo-nos com um olhar calmo, de uma moça que abriu a porta bem devagar para nós. Ao entrar, vimos uma princesa sentada em sua cama, com um arco que se parecia muito com uma coroa, ruiva, lembrando aquelas princesas da Disney.

Será uma princesa?

No início, ela estava tímida, e eu, na característica do Palhaço Frutuoso, ao lado de minha colega, Danila (Palhaça Jupira), começamos a conversar com ela, dizendo termos achado uma princesa.

Conversamos sobre a história de reis e rainhas, e seus olhos, sorriram por trás da máscara, como se sua alegria tivesse se transformado em um grande conto de fadas. Ao sair, descobrimos que quem abrira a porta havia sido a rainha, a mãe da nossa querida princesa. Reverenciamos a majestade e, ao fechar a porta, pudemos ouvir risos que ecoaram pelas paredes rochosas do castelo.


Relato produzido pela Associação Nariz Solidário para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia