Eu sou Deuzenira de Souza e Souza, conhecida como tia Deca. Eu nasci no interior, vim pra Parintins muito cedo. Estudei no Colégio Aderson de Menezes, no Brandão de Amorim e passei pelo Colégio Batista. E, assim, trabalhei por dois anos como professora, parei porque veio os filhos e não tinha quem cuidasse, mas foi tudo bom.
Também não tenho muitos filhos, só tenho dois, perdi um, só tenho uma. Aí já veio os netos e os bisnetos, e cá estou. Gosto de ajudar as pessoas, me esforço pra ser uma boa pessoa, ser justa e assim vai. Quando veio a pandemia, a gente sentiu muito.
A chegada da pandemia
Eu perdi pessoas queridas, perdi dois cunhados, um primo que tinha sido criado junto comigo na mesma casa. O mais sentido é que foi enterrado naquelas valas, sem ter direito de um enterro digno. Muito triste, mas foi o jeito a gente se acostumar, porque a gente não estava acostumado a ficar em uma prisão, né!? Que a gente não podia sair pra canto nenhum, que era tudo ali naqueles minutos, naquelas horas.
Então tem tudo isso daí, mas não pode ser muito, né!? Porque o vírus ainda está por ai. Tem gente também que até agora não tomou a primeira nem a segunda dose, tem medo. Eu já tomei as duas, se vier a terceira eu tomo.
Vivendo de peixe
Aí quando a pandemia tenta passar, nós, aqui em Parintins, nos deparamos com a doença do peixe da urina preta. Aí, como meu marido é pescador, se tornou novamente difícil, entendeu? Porque aqui ninguém trabalha, a gente depende da pescaria.
Quando pegamos o peixe, não vendemos, porque não tem ninguém que compre. Então, é difícil, não é fácil não. Mas a gente espera em Deus que tudo melhore, que tudo mude, pro mundo, para as pessoas. E espero também que, as pessoas que ainda não tomaram a vacina, que vá, que tome, que obedeça e que use máscara para podermos sair dessa doença maldita.
Eu acho que é uma maldição
É isso que eu tenho de falar, porque não é fácil. Passei horríveis na pandemia, em alguns momentos eu só queria gritar. Mas a gente tem que ter muita fé em Deus mesmo, porque só ele, o socorro vem dele, né?
E aí, se a gente não tiver fé nele, não tem uma outra pessoa. Ele que sabe se a gente possa sair na rua sem máscara, sem um vidro de álcool, sabe? Para a nossa vida voltar ao normal.
Porque aqui na nossa cidade vem o Boi, vem o festival. Para nós pudermos ir olhar, sabe? Já que há dois anos não tem. Então é ruim até para nós, pra todo mundo aqui da cidade. Como é que vai trabalhar? Não foi só eu que sofri, foi todo mundo – artistas inclusive.
Peço a Deus que passe logo, que a gente possa viver a nossa vida normal. Que tem gente que ainda tá teimoso, que vai, que anda, que não usa mais máscara. Mas eu não faço. Eu acho que eu já estou tão acostumada que, se eu sair na rua, tem que ser de máscara.
Então, bora confiar em Deus e a gente tem que fazer também a nossa parte, pois, se não fizer, não anda.
A essa altura já estava bastante envolvido, mas vi o Festival pela internet por conta da pandemia. E em 2020 e 2021 não teve Festival. Então nunca passei por um Festival como Conselho, de verdade, na arena.
Meu nome é Diego Omar da Silveira. Sou professor da Universidade do Estado do Amazonas, aqui em Parintins, na divisa do estado com o Pará. Cheguei aqui há quase dez anos, na minha aventura amazônica.
Quando vim, recém-aprovado no concurso, tudo era muito novo. Desembarquei aqui com meu filho – apenas eu e ele – e era uma nova vida que começava. De lá para cá, muita coisa mudou. Conheci já nos primeiros dias a Priscila, minha companheira, com que estou desde então e com quem tive uma filha, a Maria Bethânia, uma menininha amazonense. Aos poucos fomos construindo juntos uma vida.
Gosto da cidade e desde cedo achei a festa dos Bois rica e interessante. Demorou um pouco para que aquilo me interessasse como tema de pesquisa ou como um lugar de atuação. Mas tudo se encaminhou para que eu escolhesse o Caprichoso… na verdade, a minha chegada se deu em uma “semana azul” – como dizem aqui, quando toda a cidade se preparava para a gravação do DVD do Centenário do Caprichoso, em 2013. Tudo muito lindo e que me capturou.
Sou Caprichoso e não pretendo mudar
Desde então sou Caprichoso e não pretendo mudar. Na medida em que comecei a guinar meus temas de pesquisa fui me aproximando mais do Bumbá também. Sempre gostei do ambiente, da construção, das referências sonoras e estéticas do Caprichoso. Elas têm uma brasilidade que escapa ao contrário e, talvez por isso, sempre me senti muito acolhido aqui. Mas fiquei uns anos sendo apenas torcedor mesmo.
Fui conhecendo as pessoas, orientando alguns trabalhos, lendo a bibliografia sobre folclore e Boi-Bumbá, mas sem muitas pretensões. Os contatos com quem fazia o Boi nunca foi muito próximo até 2017, acho. Foi quando conheci o Ericky Nakanome e passamos a trocar algumas ideias.
Em 2018 ele me convidou para olhar alguns textos, num exercício de revisão e no final daquele ano me chamou pra fazer parte do Conselho – foi um susto e uma alegria. Ajudei como pude em 2019, em meio a um momento familiar difícil, já que a minha filha faria uma cirurgia de relativa complexidade às vésperas do Festival e em Brasília.
Imprevistos da pandemia
Esse “título” foi entregue aos Bumbás em 2019 e depois não teve mais festa. Mas tínhamos que pensar em políticas de salvaguarda, precisávamos dialogar com a sociedade e começamos a discutir estratégias. Vieram as lives e, depois, com a Lei Aldir Blanc, a ideia de publicar alguns livros e organizar o Centro de Documentação e Memória do Boi. Tiramos nossas intenções do papel e isso permitiu, inclusive, que a gente fizesse o registro da memória das pessoas ligadas ao Caprichoso nesse edital da DHESCA Brasil.
Como a gente já estava construindo um banco de memória, esse se tornou um projeto paralelo. E é isso… estamos nessa luta. Quando o Caprichoso suspendeu o funcionamento de todos os setores para que a gente evitasse os riscos e não colocasse ninguém em risco.
Mas discutimos muito nossos projetos, aprofundamos as pesquisas, pensamos nossa história e articulamos os livros que estão saindo agora, nesse fim de ano. Foi difícil ver a situação dos artistas, dos trabalhadores do Boi de uma forma geral. Muita gente do setor da cultura ficou desamparada – mas travamos juntos essa batalha. E a ideia é continuar… O CEDEM tem uma tarefa enorme pela frente e queremos tratar com mais carinho a memória do Boi.
Não vamos parar de receber, tratar e divulgar esse enorme legado que ainda é pouco visibilizado.
Quando a pandemia ainda não tinha chegado ao Brasil, eu já estava acompanhando as informações, por ser jornalista. E os dados que nós temos hoje sobre a pandemia são levantados pelo observatório de imprensa. Isso evidencia a importância desse ofício, tão atacado pelo governo vigente. Em 2019, eu atuava como assessor parlamentar de um deputado, que não se reelegeu e, por isso, fiquei desempregado.
Tenho 31 anos, nasci em Salvador, que é uma terra que eu amo, mas que não me ama. Digo isso por uma série de questões estruturais.: sou cristão, filho de pastor – mas costumo dizer que sou um cristão sem frescuras, porque eu bebo, xingo, fumo, transo e acredito em um ser que não me julga por essas questões. Tenho uma fé que, acima de tudo, acolhe e aceita as diferenças.
Sou jornalista e, apesar de saber, me esforçar e receber feedbacks sobre a minha competência profissional, eu ainda carrego um complexo de inferioridade que me atrapalha bastante, mas que não me impede de realizar. Sou cantor, compositor, músico… também sou ativista, de vez em quando – porque ativismo não paga boleto. Desde cedo, o que me fez ser taxado como “rebelde” foi o fato de eu nunca ter aceitado a missão de ser exemplo. Eu nunca quis ser exemplo de nada – e meus pais queriam que eu fosse.
Laços de família
Normalmente, só falo com as pessoas que tenho intimidade. Minha família era muito humilde. Lembro que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, meu pai ficou desempregado. Eu e meu irmão fomos matriculados numa escola em tempo integral, que ficava do outro lado da cidade. Acordávamos às 4 da manhã e chegávamos em casa às 20h/21h. Sem dinheiro para pagar passagem, subíamos no ônibus pela parte de trás, com o caderno dentro de um saco, e descíamos em um ponto muito distante e completávamos o trajeto até a escola caminhando.
Era um processo delicado. Na escola, me batiam e praticavam bullying comigo – em um tempo que nem se chamava de “bullying”. Aturei essas situações por algum tempo, até que um dia eu me revoltei e a introspecção se tornou violência. Passei a revidar as agressões. Apesar de gostar de estudar, eu não era estudioso, porque eu assimilava o ambiente da escola a algo parecido com uma cadeia. Ainda assim, passei a me envolver com o grêmio estudantil.
Perdi vários anos na escola – era reflexo de eu estar tentando me encontrar em casa e me encontrar em meio aos questionamentos que a sociedade fazia sobre mim. Minha mãe faleceu em 2014, vítima de um infarto. E eu presenciei a passagem dela. Tínhamos acabado de chegar da igreja, ela tinha pregado naquele dia. Ela pregou sobre um texto que dizia:
“Deus amou o mundo de tal maneira que deu Seu Filho unigênito para que todo aquele que Ele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”.
E nesse dia ela pereceu. E eu questiono a morte da minha mãe até hoje, porque sempre fui um ser questionador. Meu maior exemplo de fé era a minha mãe e de conduta cristã, o meu pai. A rigidez do meu pai me tornou mais introspectivo.
Eu trabalhava no Pelourinho antes da pandemia
Eu trabalhava no Pelourinho como cinegrafista de turismo. Um amigo, que foi recrutado no colégio, pelo Gapa, para um processo de formação, me falou sobre a capacitação. Eu quis participar, mas já não havia mais vagas – mesmo assim, insisti. Após o curso, me tornei arte educador, trabalhando com música, através do hip-hop, e foi no Gapa, através das oficinas temáticas, que eu comecei a me enxergar enquanto pessoa preta, e perceber as diferenças de raça, de gênero e tudo mais que existia e ainda existe.
Passei a estar muito mais atento aos preconceitos. Cheguei a cursar o técnico em música na UFBA e saí de lá, justamente, porque sentia que as pessoas tinham um pensamento muito elitista. Quando ingressei na faculdade de jornalismo, passei por dificuldades. Ia de bicicleta, ou tentava entrar no ônibus sem pagar, negociava com o motorista. Eu ainda não entendia muito do que se passava, mas a maneira como as pessoas me liam era consequência do racismo, dessa ideia de que o homem preto não tem sensibilidade.
Quando namorei com uma mulher negra de traços finos, lida pela sociedade como branca. Eu, mais retinto, de cabelo crespo, traços negroides, enfrentava um tipo de preconceito, que eu nem sabia que era preconceito, quando perguntavam se eu era o segurança dela. Hoje, em outro relacionamento há 7 anos, ainda sinto essa falta dessa aceitação social.
Do carnaval à pandemia
Como, na comunicação, eu tenho bastante possibilidades – trabalho com audiovisual, fotografia, jornalismo “convencional” e mais uma série de coisas – busquei trabalho como freelancer. Cheguei a participar da cobertura do carnaval para a Secretaria de Turismo. No penúltimo dia de carnaval eu me tranquei em casa e não saí mais – somente para o que era essencial.
Moro com meu o irmão, mas nós sequer nos vemos. Eu passo o tempo dentro do quarto, e ele tem uma rotina de trabalho de uma média de 9h – do trabalho ele vai para a academia e quando chega, eu continuo no meu quarto. Segui isolado. A única pessoa com quem convivi durante quarentena foi a minha namorada, que, em home office, foi ficar comigo, não na minha casa, mas no meu quarto. Isso foi muito doido, porque a gente se conhecia, mas não tão intensamente – não dividindo por tanto tempo o mesmo ambiente.
Eu sou um cara muito ativo, mas me vi mais uma vez ficando introspectivo, porque estava sem saber como lidar com essa fase de autoconhecimento, na qual eu conheci partes de mim que não gostei. Na mesma proporção em que eu desgostava da minha própria personalidade, eu passei a só olhar para mim, não conseguia enxergar a minha companheira. Estávamos afastados de tudo.
Tive que depender do auxílio emergencial
O desemprego, que me forçou a depender do auxílio emergencial, também foi um fator de incômodo. Eram conflitos internos e externos. Cheguei a viajar quando surgiu uma proposta de trabalho a mais de mil quilômetros de Salvador e era a minha única saída – ou eu ia, ou a situação financeira ficaria ainda pior. Passei pouco mais de um mês fora e voltei.
O meu maior medo na pandemia foi perder – tanto para o vírus quanto para os desafios da convivência – a pessoa que eu mais gosto depois de mim – a minha companheira. Foi uma fase muito difícil, de muito desentendimento. Mesmo estando no mesmo lugar, ficamos muito distantes. Não conseguíamos mais ter compreensão, cumplicidade.
Eu venho de um processo de depressão muito grande, então, eu me cuido para não voltar a ter um pico de depressão severa. E tudo isso que passamos, me machucou bastante, porque dói viver isso com quem a gente ama. Mesmo assim, as pessoas me procuravam em casa pedindo ajuda, porque, como falei, sou ativista social – sou coidealizador do Coletivo Social Fábrica de Rimas – e sempre tentei apoiar a comunidade.
Conseguimos pensar em estratégias, criamos a Geladeira Solidária, uma iniciativa que repercutiu na imprensa e foi copiada por instituições, até mesmo em outras cidades. Quase 800 famílias foram ajudadas por esse projeto.
O desejo de um futuro próspero após a pandemia
Eu quero conseguir construir um futuro para mim no qual eu tenha o suficiente para prosperar as pessoas que eu amo e, se eu constituir uma família, não deixar que eles passem pelo que eu passei. Infelizmente, eu acho que as pessoas sairão dessa pandemia mais egoístas.
Em compensação, penso que as pessoas se olharão mais.
Quando começou essa pandemia, a gente recebeu ajuda da CONAQ, que é uma associação nacional que ajuda as comunidades quilombolas e da UNICEF. Nós conseguimos ranchos para a nossa e outros comunidades no Amazonas. Conseguimos máscaras, álcool em gel. O que a gente tínhamos de sobra na comunidade acabamos doando para outras que estavam com poucos recursos.
Meu nome é Jamile Souza da Silva, tenho 45 anos, sou analista de comércio exterior. Hoje estou como atual organizadora dos festejos de São Benedito, no quilombo do barranco de São Benedito. Sou quilombola e represento como líder a comunidade desde a certificação. Realizamos um trabalho social na comunidade juntamente com a nossa Associação Crioulas do Quilombo de São Benedito, onde começamos trabalhando somente com artesanato, e hoje, realizamos um trabalho mais amplo com as crianças e com as famílias da comunidade.
Falar sobre o Boi é falar sobre os mais antigos da nossa comunidade
O vovô Raimundo Nascimento Fonseca, lá no Maranhão, já tinha o seu Boi, que era o Caprichoso. Um boi todo malhado, que ele trouxe para Manaus na bagagem, juntamente com São Benedito. Então, esse amor que a comunidade do quilombo do São Benedito tem pelo Caprichoso, se transformou também no amor do Boi Caprichoso que acabou sendo transferido para Parintins.
Tanto que, a cada vitória do Caprichoso em Parintins, a gente lembra muito dos antigos que soltavam fogos e comemoravam. Em 2018, a gente teve um contato bem mais próximo, quando o Babá Tupinambá assumiu o Caprichoso e foi falar um pouco sobre a cultura negra – convidando-nos a fazer parte da toada “Boi de Negro.
A pandemia levou pessoas queridas do nosso quilombo
Eu, na minha família, perdi a minha irmã, que morava no Rio de Janeiro, e veio na comunidade pra ajudar a cuidar da nossa mãe, que teve um AVC. E, nesse período que ela esteve aqui, foi internada – ela acabou se infectando. Passado um mês minha irmã veio a falecer.
Na nossa comunidade perdemos minha irmã e meu primo – foi muito difícil esse momento.
Graças a Deus a gente conseguiu ajudar muita gente. Mas foi, assim, bem difícil, e, de certa forma, ainda é doloroso. Nós conseguimos que a comunidade fosse vacinada. Por mais que o governo tenha feito aquela portaria, onde as comunidades tradicionais e quilombolas fossem tratadas como prioridades, não foi fácil. A gente só conseguiu através do Ministério Público Federal. Porque, para você ter uma ideia, a SEMSA, que é a Secretaria Municipal de Saúde, apesar de ter proximidade com a nossa comunidade, eles simplesmente disseram que não tinha nada para a nossa comunidade. Não tinha vacina pro quilombo urbano, somente para os quilombos do interior.
Então, fizemos um ofício, denunciando no Ministério Público, e assim, a gente conseguiu com que a nossa comunidade fosse vacinada em abril de 2021.
Esperanço do pós-pandemia
Bem, tudo o que a gente espera para o futuro é um espaço de muito acolhimento e cuidado. Essa pandemia ainda não parou, ainda continua, e ainda temos um certo medo. Continuaremos com os protocolos de segurança e, pelo visto, isso vai ser para o resto da vida, enquanto não houver um medicamento que sane esse vírus.
Na semana da Consciência Negra, a gente vai abrir a comunidade para as pessoas visitarem, principalmente o estande das criolas, que estava fechado durante toda essa pandemia. A gente vai ter a festa do dia 20 de novembro, mas não vai ser uma festa como era anteriormente. Só vai ter mesmo a feijoada e o samba no pagode do quilombo, que é administrado por mim. Para que as pessoas conheçam lá um pouquinho da nossa comunidade
A pandemia chegou e não conseguimos mais ter esse lucro de vendas. E, também, nós da comunidade, para tentar prevenir à Covid-19, acabamos usando muitos remédios caseiros, como raízes, sementes, plantas e folhas.
Meu nome é Gabriele Maraguá Otero, sou do povo Baré. Meu nome indígena é Yra, que significa mel. Sou do município de São Gabriel da Cachoeira (AM), um município onde há a maior predominância de indígenas do Brasil. Onde têm 23 etnias. Eu nasci e cresci no meio da Amazônia, perto do Rio Negro e nos verdes da Amazônia.
Defendo o meu povo como uma Yauaretê, como uma onça. Não só o meu povo, mas as 23 etnias. Sou Técnica de Enfermagem e, atualmente, eu estudo teatro. Sou do Corpo de Dança – CDC Caprichoso, sou ativista e defendo a causa das mulheres artesãs indígenas. No meu município não tem festa de Boi, lá as festas são organizadas por tribo: tribo Baré, tribo Tukano e tribo Filhos do Rio Negro.
Para eu amar o Boi, do jeito que amo hoje… é uma longa história.
Cheguei aqui em Manaus em 2017, e um amigo me chamou pra eu fazer parte da Raça Azul. Eu queria viver essa experiência, queria conhecer mais o Boi. E eu fui lá, participei da galera… e fui amando cada vez mais. E hoje, eu sou uma das dançarinas do CDC. É muito lindo escutar música de Boi, escutar um ritual, os maracás, as flautas, as histórias, contos e lendas, ainda mais as lendas que são esquecidas – aí o Boi levanta e traz a identidade dos povos indígenas.
Eu achei isso muito lindo.
A música do Boi traz a originalidade de cada povo, de cada nação. Nosso passo, em São Gabriel, é um passo tribal, o nome que eles falam aqui é o Oca-Oca, – e para eu aprender foi uma dificuldade imensa.
Eu tive que ensaiar muito, mais ou menos um ano, pra eu poder pegar o gingado, o bailado. Eu ia fazer o teste e falei para a coordenadora, Edinalda. Disse que eu não tinha tanto esse movimento. E ela falou com um amigo dela, o Carlos Vieira, para me ensinar um pouco do ritmo de Boi. Aí foi quando eu fui aprendendo e me adaptando com o gingado, ficando mais solta a jogada de perna.
A partir disso comecei a me desenvolver na dança. Atualmente, eu moro na comunidade Parque das Tribos, primeiro bairro indígena de Manaus, onde existem mais de 30 etnias. Lá existem as etnias Toto, Munduruku, Tukano, Baré, Dessana e diversas outras.
A pandemia afetou diversas pessoas do meu povo
A pandemia afetou as mulheres indígenas, os senhores artesãos e trabalhadores em vendas. As pessoas que vivem de vendas e artesanato precisam ir para à cidade divulgar e vender os seus produtos. É uma das únicas formas de conseguirmos nosso sustento.
Infelizmente, aqui na comunidade, tiveram várias mortes por causa da Covid-19, como a do nosso Cacique Geral, Messias Kokama – que logo no começo da invasão da comunidade lutou com os policiais do começo ao fim.
Entramos em pânico.
Como é uma doença nova, ninguém sabia como fazer e o que fazer. Nossa única opção era evitar que nosso povo pegasse a doença.
Ainda não estamos em 100%, mas estamos em 40, 50%. Dessa forma, vamos evitar a exposição, usar máscara e colocar álcool em gel.
Ainda espero que, logo quando tudo isso acabar, nós possamos nos abraçar e nos reunir novamente para cartar, dançar e receber aquele calor forte que só o Boi Caprichoso possui.
Se reunir, e todo mundo vacinado, para podermos curtir sem nenhuma preocupação.
Foi neste momento que começou a pandemia. Antes de tudo, nós estávamos com uma perspectiva muito boa para o Festival de 2020. Sendo que, em 2019, a gente estava com um projeto bem legal de artistas, para fazer umas fantasias para 2020. Desde então, a gente estava fazendo o show de turistas e, quando veio a pandemia, a gente teve que parar.
Meu nome é Diego Cruz Azevedo. Atualmente sou figurinista do Boi-Bumbá Caprichoso. Comecei sendo figurinista em 2017, na gestão do presidente Babá Tupinambá. Mas venho trabalhando desde 1998 com o tio Deco, fazendo tribo e tuxaua, na agremiação.
Então, assim, comecei com ele, depois fui para a Escolinha do Boi-Bumbá Caprichoso e aprendi mais ainda. Fiz desenho, fiz artesanato de luxo e depois eu fiz dança. E depois da Escolinha eu comecei já a ingressar na vida de artista. Então, trabalhando com meu tio e com outros artistas do Boi-Bumbá Caprichoso que sempre me convidaram pra trabalhar. Aí, aprendi muito trabalhando no Festival.
Eu comecei a viajar pra São Paulo, sendo reconhecido pelo meu trabalho. Na gestão do Babá Tupinambá, em 2017, foi que eu fui convidado pelo presidente do Conselho de Artes, Éricky Nakanome, pra ingressar no quadro oficial de artistas, para fazer a Marujada. Desde então, eu estou no quadro de artistas.
“Perdi alguns parentes na pandemia”
Com a pandemia, todo mundo ficou nas suas casas, com os cuidados básicos pra não pegar a doença. Perdi alguns parentes na pandemia. Quando vieram as lives dos Bois, os diretores me convidaram para participar, para fazer fantasia, com o intuito de não ficar parado. Então a gente sempre ficou ajudando aqui na agremiação, nas lives. Quando tinha algum evento do Boi, a gente ia, mas ia sempre prevenido. Então, com isso, a gente teve que aprender a lidar com a pandemia, porque já não voltamos ao normal.
Com a pandemia de Covid-19 que foi acontecendo, nós tivemos que nos renovar. Então, com essas lives do Boi, eu tenho uma equipe de seis pessoas – como eu não podia contratar muitas pessoas, eu sempre ficava revezando com os meninos que sempre me ajudam.
Eu ficava revezando, porque, é claro, sempre dependemos muito do festival. A nossa renda é o Festival. Então, como o evento não aconteceu, a nossa renda ficou muito baixa. Além disso, eu sempre revezava com as pessoas mais carentes que eu, para poder, de alguma forma, ajudar com o sustento de suas famílias.
A esperança da vacina
Com a chegada da vacina, já deu mais uma esperança pra gente. Reuni mais pessoas para o trabalho e isso ajudou mais ainda o Caprichoso a fazer as fantasias – que são os figurinos que a gente começou a fazer com a minha equipe.
Fora as equipes dos outros artistas também que começaram a se juntar. Começou a renovar a nossa vida de novo. Não ao ponto de estar tudo normal, mas a vida já começou a melhorar.
A expectativa que nós estamos tendo é de que para o ano que vem, seja o melhor Festival de todos os tempos. Porque é uma espera de dois anos, e por isso, o Festival vai ser grande! E, com isso, o Caprichoso vem muito bonito. Além do mais, temos conversas corriqueiras com o Conselho, que repassa todos as informações necessárias, portanto, a expectativa é alta para o ano que vem.
Ser mais é abranger o coleguismo, a amizade.
Perdemos muitos amigos na pandemia, mas, os que permaneceram em nosso meio, a gente tem que acolher.
A pandemia veio e mostrou pra gente que a gente tem que gostar do próximo, para podermos ir para a frente. E você que ainda não se vacinou, vacine-se.
Eu já tomei as minhas duas doses, e aqui, o pessoal do Caprichoso, para conseguirmos fazer tudo o que quisermos, precisamos estar completamente vacinados.
A vacinação garante maior tempo de vida para as pessoas.
A pandemia me pegou em um momento muito desafiador. Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar.
A maioria das pessoas me chamam de Juli. Nasci em Salvador. Morei um tempo em Feira de Santana com minha família, mas a música trouxe o meu pai de volta para o Candeal.
Meu pai, músico, foi um dos fundadores da Timbalada. Mas a música, infelizmente, não é suficiente para sustentar as pessoas. O sonho da maioria da população que nasce no Candeal é viver de música. Mas, infelizmente, as oportunidades não chegam para todos da forma que se espera e muitos se frustram — foi o que aconteceu com o meu pai.
Houve um tempo que a única alternativa para ele foi sair do país. Dos EUA, ele mandava dinheiro para que minha mãe e eu — que chegamos a tentar ir morar com ele, mas não conseguimos, — nos mantivéssemos. Com esse dinheiro foi que compramos nossa casa. Eu não achava a minha infância estranha, mas, hoje, ao olhar para trás, eu consigo identificar coisas que passaram despercebidas.
O racismo estrutural no Brasil
Como eu tive o privilégio de crescer no Candeal, tive acesso a curso de inglês, aulas de violino e estudei em colégio particular. O dinheiro que meu pai conseguia fazer no carnaval, era destinado a pagar as mensalidades de todo o ano letivo da escola. A gente não sabia o que iria comer durante o ano, mas a escola estava paga. E era esse “bastidor” que reverberava na maneira como eu identificava e enfrentava pequenas e grandes diferenças entre mim e meus colegas, como, por exemplo, o fato de que todo mundo tinha um celular e eu não tinha — e isso gerava exclusão.
Meus colegas não me incluíam porque eu sequer sabia sobre o que eles falavam. Com 9 anos, eu pedi para que alisassem o meu cabelo porque todas as referências ao meu redor eram de cabelos lisos — tanto na família quanto na escola — e eu pensava ter algo de errado comigo e com o meu cabelo. Isso só mudou quando eu acessei a universidade e tive contato com outros questionamentos e passei a fazer reflexões sobre tudo isso que eu, antes, não percebia.
Eu me limitava muito por medo da opinião alheia. Deixava de ser quem eu era para que minhas tias, por exemplo, não falassem e nem me julgassem mal. Quando mudei para um colégio público, meus colegas marcaram de ir ao cinema. Como eu não tinha dinheiro, resolvi vender brigadeiro para conseguir.
Ainda lembro do orgulho que meu pai sentiu de mim por isso. Daí para a frente, comecei a lidar com vendas e ir vendendo outras coisas. Descobri esse gosto e talento.
Os problemas gerados pela pandemia
Eu havia abandonado a faculdade de Hotelaria alguns anos antes, porque eu precisava trabalhar. Meu pai só estava tocando em casamentos — quando tinha casamento —, recebendo R$100 por cada cerimônia… se um mês tem, em média, 4 fins de semana, ele receberia R$200 no mês se conseguisse tocar em duas festas.
Nesse ponto, eu já ganhara um irmão. O dinheiro não era suficiente. Nem o xerox da faculdade eu conseguia tirar, por isso, também, tranquei o curso. Além disso, eu, que escolhera Hotelaria por acreditar que me renderia maiores oportunidades por ter inglês fluente, já firmara a certeza de que queria mesmo Psicologia. Passei a trabalhar com vendas de suplementação alimentar.
Como já disse, eu amo vender e me sentia bem exercendo aquele ofício. Mas, por conta da pandemia, a emprese fechou.
Isso me deixou sem chão — mas, não só isso. Meus pais, há alguns anos, já estavam se desentendendo. Acontece que meu pai estava adoecendo lentamente. Ele tinha dificuldade de lidar com o fato de não conseguir manter sozinho a nossa casa e ter eu e minha mãe sendo as principais mantenedoras. Hoje, eu entendo que isso despertou nele um processo depressivo — que o fez se sentir estagnado.
Emocional abalado pela pandemia
Tentamos de tudo para ajudá-lo, mas quanto mais a gente tentava, mais ele ficava estagnado. Ele sempre bebeu, mas passou a beber cada vez mais. Eu sofria com isso, mas não dava vazão, me ocupava com o trabalho. Quando eles se separaram, isso me afetou absolutamente, porque sou muito apegada à minha família. Caí de vez… nesse momento eu iniciei um processo de depressão profunda. Não dormia nem de dia e nem de noite — só conseguia chorar.
Fazendo terapia, entendi que eu não via o meu pai como um ser humano, mas como sobre-humano — por isso, não entendia a dor dele. Quando meu pai saiu, ele não pensou em muita coisa. Eu entendo que ele não estava bem, mas ninguém estava. Todo esse peso recaiu sobre a minha mãe. Ele retornou para os Estados Unidos — onde mora até hoje — para reencontrar um irmão dele que estava lá, na tentativa de reconstruir a vida dele — ele dizia que não tinha mais nada.
Depois que ele foi embora, ele e minha mãe voltaram a conversar e reataram o relacionamento — à distância.
A partir disso, algumas coisas começaram a melhorar, inclusive, porque ele começou a mandar dinheiro. Apesar disso, eu continuava no mesmo estado. A minha maior dificuldade nesse período é que eu sou uma pessoa muito sensível. Quando eu tentava recuperar as forças, eu declinava novamente. Não conseguia constatar os fatos, as pessoas morrendo, tantas tragédias juntas. Tudo aquilo me assustava e eu só conseguia chorar. Pensava “como morre tanta gente e ninguém faz nada?”.
Já não sou a mesma de antes da pandemia
Por mais que eu evitasse assistir aos jornais, a energia parecia mais tensa e eu sentia e absorvia isso. Esse foi o start para eu buscar uma conexão com a minha espiritualidade. Parei de me voltar tanto para fora e me voltei para dentro. Foi aí que eu consegui voltar à superfície. Eu sentia como se algo estivesse me segurando até que eu me reestabelecesse.
Chegamos a viajar durante a pandemia e, ao chegar lá, descobrimos que a família toda estava doente, mas eu, minha mãe e meu irmão, não tivemos nenhum sintoma e ajudamos a cuidar deles. Eu não tive medo do vírus, mas me sentia desesperada pela quantidade de mortes. Ficava me perguntando como as pessoas estavam encarando tudo isso, principalmente quem perdera pessoas, porque era uma dor muito grande.
Já sei que não sou mais a pessoa que eu era. Não tenho como voltar… não sei sequer como estão os meus laços de amizade e nem como serão, porque assim como não sou mais a mesma pessoa, tenho certeza de que os meus amigos também não são. Não tem nem como se manter igual. Mesmo sem ter perdido alguém próximo, não tem como não se sentir “perdendo algo”.
Aprendi que nós precisamos fazer uns pelos outros. Por mais que a dor seja grande, precisamos olhar para fora, porque, talvez, a dor do outro seja ainda maior do que a nossa. Eu tenho esperança de que as pessoas melhorem, que nada do que vivemos seja esquecido.
Eu tenho 23 anos. Curso Bacharelado Interdisciplinar em Artes desde 2017 e teria me formado em 2020, se não fosse a pandemia. Passei a maior parte da minha vida em Cajazeiras.
Meus pais são separados. Minha mãe criou a mim e meu irmão. Ela é empregada doméstica e sempre trabalhou em casas situadas em bairro considerados nobres, como Rio Vermelho e Barra, para onde eu ia com ela — já que ela me matriculou em colégios públicos próximos à área em que trabalhava. Assim, saíamos juntos, e, depois que a minha aula terminava, eu ficava com ela até que fosse liberada do serviço e voltássemos para casa.
Sempre existiram algumas questões que me afastavam da minha família. Meu pai, ausente, morando em outra cidade, só nos ajudava quando conseguia algum trabalho. Meu irmão, usuário de drogas, se envolveu com o tráfico e chegou a ser preso. Minha mãe conseguiu um advogado para libertá-lo. Questões como essas geraram um afastamento familiar. Mas minha mãe sempre trabalhou para colocar comida na mesa e nos dar o mínimo.
Os abismos da realidade
Éramos vulneráveis e nem tínhamos essa consciência. O mais doido de tudo isso era que enquanto eu vivenciava essa realidade em casa — e convivia nos colégios com colegas, na maioria pretos, como eu, que vinham de um contexto similar —, na casa dos patrões da minha mãe eu percebia outra categoria de arranjo familiar. Era completamente desigual. Eu experienciava um “não-lugar”. Não me sentia pertencente a nenhum dos mundos.
Em Cajazeiras ou no colégio, eu tinha pouco tempo, e no trabalho da minha mãe, eu sabia que não fazia parte daquele lugar. Esses trânsitos me impediam de criar vínculos e relações estáveis, duradouras. Eu era bem introvertido.
Sou gay e minha mãe age com indiferença, como se não soubesse.
Sempre fui a pessoa mais escura da minha família. Eu sabia que muito do que eu passava na vida era, primeiro, por conta da minha cor, e também, por perceberem minha sexualidade dissidente.
A desigualdade é anterior à pandemia
Eu ainda era uma criança quando já me preocupava em, quando comprar o pão para a família que a minha mãe trabalhava, não parecer ou ser confundido com um delinquente, por exemplo. Eu pensava desde as roupas que usaria, que não estivessem minimamente rasgadas, até a maneira como andaria. A neta da patroa da minha mãe tinha a minha idade e era com ela (e com os amigos e familiares dela) que eu tinha algum tempo para brincar, de vez em quando. E, obviamente, existia um contraste gritante… sofrendo violências que, pela pouca idade, eu nem sequer percebia na época, sendo excluído de algumas brincadeiras.
Era um recorte de classe, mas que, principalmente no Brasil, está intrinsecamente ligado ao recorte de raça. O subconsciente e inconsciente coletivo de que preto é pobre e branco é rico. E as pessoas ao meu redor acreditavam que eu deveria enxergar naquele lugar uma oportunidade de transformação — apesar das violências. Eu era visto como um exemplo, principalmente porque, comparado ao meu irmão — que apontavam como alguém que “deu errado” — eu era alguém em que se podia depositar alguma confiança de que “daria certo”.
Isso era extremamente incômodo para mim, porque eu não queria ocupar esse lugar de expectativas. Fiz o possível para me esquivar dessa perspectiva. Até por tentar enxergar meu irmão de forma mais humana e, sem desresponsabilizar ele, entender os contextos e perceber quais as responsabilidades dele, do Estado, da família, da sociedade. Enquanto isso, fui tomando consciência, cada vez mais, sobre a minha raça e sexualidade.
A chegada da pandemia
Por conta da universidade, primeiro, fui morar com um casal de amigos, no Alto das Pombas. Envolvi-me bastante com o movimento estudantil, e essa foi a maior oportunidade de fazer coisas novas, que eu tinha vontade. Além disso, a fazer parte de um coletivo de teatro, e nele, eu estava atuando. Em 2019, eu sentia que a minha vida estava fluindo bem e eu estava dando conta de tudo, até comecei um namoro.
Quando ainda só ouvíamos os rumores e não sabíamos a dimensão de tudo que viveríamos, fomos vivendo normalmente e deixando para ver como seria quando chegasse aqui. Até aí, eu estava muito conectado às pessoas.
A cada passo que eu dava no campus da universidade, eu falava com alguém. Eram muitas relações. O distanciamento social me impactou. E os amigos, com quem eu morava viajaram… passei 7 meses sozinho, recebendo visitas apenas do meu namorado. Foi uma época meio louca, porque era preciso se preparar tecnologicamente, porque era através da tecnologia que se manteriam as relações.
Houve muita briga no meu curso por questões administrativas e afins. Eu temi muito por minha mãe. Eu não estava com ela, mas ela ainda trabalhava na casa das pessoas de classe média. Ela chegou a ficar um tempo parada, mas depois retornou. E não tem como não pontuar que a primeira pessoa a morrer por Covid no Brasil foi uma empregada doméstica. Ela ficou bem.
Não perdi familiares, mas vizinhos e conhecidos faleceram.
Uma possível esperança para o pós-pandemia?
O que mais me dava medo dessa pandemia era essa ideia de uma “coisa invisível” que, em algum momento, poderia pegar em mim. E aí tinha toda aquela paranoia, limpando tudo, separando as roupas que eram usadas e tudo mais. Hoje eu avalio que foi ótimo estar só — não completamente só, porque, como disse, via meu namorado aos fins de semana. Mas penso que se eu estivesse com mais alguém em casa… acredito que ficaria louco.
A pior parte da pandemia era estar em espaços virtuais nos quais eu não me sentia contemplado, não tinha tanto acesso e o medo dessa ameaça iminente, o que me gerou crises de ansiedade. Fiquei bloqueado para o choro, as lágrimas não vinham.
E um momento muito difícil foi a morte do meu namorado — que não foi por Covid — sobre a qual eu ainda nem consigo elaborar.
A sensação que eu tenho é de que a vida parou. Tudo ficou estagnado em algum lugar, paralisado, esperando o momento de reiniciar. Agora, espero que eu consiga retomar tudo de onde parei. Quero muito conseguir tirar do passado para o presente tudo o que eu iniciei, e precisei pausar. Mas, por enquanto, tanto individual quanto coletivamente, não existe alegria, estamos longe de estar bem.
Espero sairmos dessa preparados e com forças para encarar coisas piores.
Me reconheci como trans em 2002, entre 13 e 14 anos, quando tomei meu primeiro hormônio escondida.
Sou de Ilhéus, mas moro em Salvador desde 2014. Sou graduada em Educação Física. Tive dificuldade de conseguir emprego na área de formação, por isso, passei a atuar na área de ‘telemarketing’.
Estou envolvida no ativismo trans desde 2008. Minha relação com meu pai não é tão boa. Os pais criam expectativas sobre os filhos, de forma geral, e quando esse filho é trans (ou até mesmo cis-gay), eles acreditam que não terão netos, uma descendência. Já com a minha mãe, tenho uma relação de amizade.
Se reconhecer como uma pessoa trans
Roubava calcinhas da minha irmã, para usar e sair na rua. O que foi definitivo para eu saber que sou trans tão cedo, foi o fato de ter referências, como Roberta Close, uma mulher trans da minha cidade, que viajou para a Itália e depois retornou transformada — quando eu nem sabia o que era silicone.
A partir dessas referências, pude entender ser aquele corpo, aquela forma que eu queria assumir. Elas — mulheres trans famosas e precursoras na visibilidade — foram muito importantes para muitas se verem nelas, assim como nós somos e seremos importantes para outras. Durante o ensino médio enfrentei dificuldades com o preconceito e cheguei a evadir devido à discriminação, visto que eu era impedida de acessar o banheiro feminino, sendo a única trans da escola — tinham muitos gays.
Às vezes eu tinha que sair da escola para usar o banheiro da casa de uma colega que ficava do lado — já cheguei a urinar na roupa.
Também tive questões com o ensino de disciplina ligada à religião, que usava de práticas evangelísticas e cristãs, cujo discurso era transfóbico e não contemplava outras religiões.
Uma juventude conturbada
Voltando a falar da minha relação com a minha mãe… é muito fraternal. No início houve a não aceitação, mas as coisas mudaram, principalmente, quando me tornei a única filha – entre mais 3 mulheres e 4 homens cis – que se formou numa faculdade.
Isso é motivo de orgulho para mim, e motivo de orgulho para ela, ainda mais tendo outros filhos que se envolveram no mundo do tráfico.
Ela acreditava que, por ser trans, eu seria inferior, mas percebeu, na prática, que isso não era uma verdade. Por isso, costumava dizer que — “eu não lhe dava orgulho em um ponto (por ser trans ) — mas dava orgulho de outras formas”
Eu precisei tentar compreender muitas falas dela, como essa.
Entender que ela já é uma mulher de mais de 60 anos e sua formação foi outra. Eu passei a interpretar não apenas o que ela dizia, mas o que ela queria dizer. Esse acolhimento é importante, inclusive, devido ao que minha mãe já sofreu, sendo agredida e espancada pelo meu pai, em um contexto machista e de subserviência. Entretanto, ela sempre foi batalhadora… não esperava pelo meu pai, mas ia à luta, trabalhava e fazia todo o possível para trazer o sustento para a nossa casa.
As dificuldades de uma pessoa trans
Depois de um tempo eles se separaram, e nós, os filhos, ficávamos com ela. Após me formar no ensino médio, trabalhei na Secretaria de Educação.
Lá, tive meu nome social respeitado.
Experiência importante para que eu me posicionasse na faculdade, em Itabuna, quanto a preservação do nome social — eu e uma colega fomos as primeiras trans da faculdade a termos o nome social na caderneta — e, também, quanto ao uso do banheiro feminino.
Estagiando no SESI, em Ilhéus, em 2011, não era aceita como mulher trans, mas tratada como homem cis gay.
Era difícil não ter o meu nome respeitado, mas eu precisava daquele dinheiro, porque não queria ter que me prostituir, como já havia feito algumas vezes.
Em 2014, mudei para Salvador e saí do SESI, mas retornei em 2016. Foi quando eu disse que só aceitaria voltar se tivesse a minha identidade de gênero plenamente respeitada, o que me foi negado, de modo que recusei me submeter àquela condição de trabalho.
O mercado de trabalho para pessoas trans
De volta a Salvador, encarei a dificuldade de conseguir um emprego. Dizem que a culpa é da falta de formação, mas quando formamos, continuamos amargando o desemprego. Isso é cansativo… marcas, empresas e instituições que se promovem se afirmando inclusivas porque oferecem um curso, uma oficina, mas que não mudam a realidade e nem oferecem o que realmente precisamos, que é trabalho.
Passei a atuar na área de telemarketing, mas como o dinheiro só é suficiente para pagar as contas básicas, ainda faço alguns trabalhos de prostituição. Durante a pandemia de Covid-19, mantive a minha rotina de trabalho, porém, com todas as limitações impostas pelos protocolos sanitários de prevenção ao coronavírus.
Tive medo, mas não me infectei pelo vírus. Eu cheguei a sair, sim, durante o lockdown, até por uma questão de necessidade. Eu sentia urgência em aproveitar a vida, que é tão curta. Mas prezei por minha mãe, que estava em Ilhéus, em quarentena.
Não tive nenhuma perda significativa de pessoas. Apenas conhecidos distantes, o que, de alguma forma, me entristecia, mas não impactava tanto. O que realmente me impactou foi, já em 2021, ter ficado desempregada. O que garantiu o meu sustento fora os clientes que mantive enquanto garota de programa.
Os anseios do pós-pandemia
As ajudas dos projetos e iniciativas sociais, que ofereceram cestas básicas para pessoas em vulnerabilidade, incluindo pessoas trans, também foram de suma importância para eu conseguir passar por esses momentos de isolamento social.
Usei o tempo em casa para aprender a cozinhar melhor, fazer cursos online e estudar — aproveitei para assistir filmes, séries e aprendi a me cuidar mais e dar valor a minha vida.
Quero muito conseguir voltar a trabalhar e dentro da minha área de formação.
Desejo tocar projetos sociais e de ativismo que ajudem as minhas iguais, e espero o momento em que esse presidente saia do cargo, para podermos ressignificar tudo ao nosso redor, retomando políticas públicas e enfrentando o preconceito e a discriminação.
A questão da negritude chegou-me dentro da academia, me impulsionando ao ativismo. Eu, primeiro, vi o racismo enquanto estrutura, antes de vê-lo como uma problemática nas particularidades da minha vida, porque nunca sofri violências individuais explícitas.
Sou um jovem negro de 24 anos. Filho único. Costumo dizer que me tornei negro…
O universo das escolas particulares
Sempre fui bolsista em escola particular. Apesar de nunca ter passado por privações, tínhamos limitações. E isso se evidenciava quando eu comparava a minha realidade com a de colegas do colégio. Colegas, esses, com quem não conseguia construir relações por falta de afinidades.
Eu era introspectivo e não me sentia pertencente a nenhum dos grupos que existiam lá. Romanticamente, eu nunca tive o meu interesse despertado por ninguém. O meu foco era, realmente, nos estudos.
Universidade e o olhar para a negritude
Na universidade, foi onde comecei a ter vivências de juventude. Eu senti como se tivesse ganhado uma missão: como cursava no turno noturno, as minhas experiências eram um tanto diferentes das de outros jovens na universidade… Eu lidava com colegas mais maduros, em sua grande maioria mulheres, pessoas que trabalhavam no turno oposto ao que estudavam, e, logo de cara, fui pego pela militância e fui atuar no movimento estudantil.
Esse tipo de contexto também fazia com que minha socialização fosse um tanto limitada.
Ter entrado em contato com o Gapafoi um divisor de águas, principalmente por ser um movimento social que pautava temáticas de sexualidade, o que ia me trazendo provocações e compreensões que ainda não tinha. Passei a me questionar sobre meus desejos (ou a falta deles).
No Rio de Janeiro, em um encontro do movimento estudantil, eu tive uma primeira experiência com um rapaz. Ao retornar para Salvador, resolvi me desenvolver mais nesse aspecto. Conversando com uma colega, ela me apresentou algo que eu nunca pensara em usar: os aplicativos de relacionamento. Ao questioná-la, ela me disse que não tinha expectativas, que apenas passava algum tempo olhando os perfis das pessoas e que se não conhecesse ninguém, ao menos poderia fazer amizades.
Pandemia e o boicote às descobertas
Aquilo me interessou e comecei a ver, nisso, a possibilidade de começar a me relacionar. Após dois encontros e muita animação por desbravar essa área da minha existência, veio a pandemia, mudando todos os planos e dificultando essas oportunidades.
O início da pandemia me encontrou num momento de muita atividade, conciliando faculdade e trabalho. Como sou da área de Saúde Coletiva, a pandemia não me assustou a ponto de me paralisar, por entender todos os processos que estavam acontecendo.
Eu já tinha vivido um momento de isolamento social, em 2015, quando, ao finalizar o Ensino Médio, fiquei integralmente em casa, estudando para o vestibular. Sem sair, sem ver amigos… Isso me gerou um pico de ansiedade, visto que eu só tinha 18 anos. Mas foi uma fase, também, em que pude refletir sobre estar só, entender e aprender a lidar com isso. Lidar, inclusive, com a falta de privacidade que acontece, vez ou outra, com meus pais. Sendo assim, consegui lidar bem com o fato de estar em casa durante o lockdown.
A minha dificuldade era que, apesar de ter familiaridade com aquela realidade, o momento de vida que eu estava vivendo era de querer ir para fora e explorar espaços que eu ainda não explorara. Em meio a isso, mergulhei na espiritualidade. Sou da religião Messiância e sempre fui muito requisitado… fui me aproximando mais. Me dedicava ao audiovisual — que se tornou essencial. Passei a priorizar estas relações. E, por isso mesmo, não senti medo, apesar do caos. Eu me sentia muito protegido.
“Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza em minha negritude”
Também desenvolvi o TCC durante a quarentena, mas o mais marcante, para mim, nesse momento foram as mudanças das minhas percepções sobre mim mesmo. Eu passei a enxergar coisas que eu nunca enxergara. Ao deixar cabelo e barba crescerem — coisas que eu não deixava antes —, vi nascer em mim um homem que eu não vira ainda. Foi quando ficou mais forte a negritude em mim. Eu comecei a enxergar os meus traços e ver beleza neles. Eu não me via como alguém bonito. Todo empoderamento que, com a militância, vinha à tona de fora para dentro, com essa transformação estética, passou a florescer de dentro para fora.
Além disso, com a pandemia, eu entendi que a vida é urgente e demanda urgência. Tudo que aconteceu é, também, resultado de uma conjuntura política que trouxe à tona muitas vulnerabilidades e, agora, entendendo-as.
Quero usar minhas forças para lutar contra elas, sem deixar de acreditar num futuro melhor.
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