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40 a 59 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor Tocantins

“A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal”

A esperança chegava aos estados brasileiros. A vacina foi recebida com expectativa e, ao mesmo tempo, desconfiança, devido às fake news e preconceito, fruto da ignorância e do desgoverno o qual estamos submetidos. Quando os povos indígenas estavam na primeira fase da imunização, trabalhamos muito para que as mentiras não chegassem às aldeias. Mesmo assim, as estórias invadiram o território indígena, trazendo o medo para dentro das comunidades. Por fim, depois de muita luta, as lideranças aderiram à vacina. Logo, os casos começaram a diminuir.

Primeiro, eu tive que esperar um pouco para a minha faixa etária receber a dose da esperança, do amor. Meus pais foram os primeiros a receber a vacina, a alegria foi grande. Então, fico feliz em lembrar que eles conseguiram passar a pior fase da pandemia com vida.

Na foto, é possível ver Eliane Franco na parte interna do posto de saúde erguendo uma placa com os dizeres: "VIVA O SUS. Não ao negacionismo. Fora Bolsonaro! Vidas importam". Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Em maio, celebrei dois aniversários, mas ainda não tinha recebido a vacina. Agradeci a Waptokwazawre pelo dom da vida, por também ter conseguido enfrentar a pandemia com saúde. Celebrar a vida em tempos de pandemia, em que muitas pessoas morreram e foram contaminadas é, de fato, um ato de resistência.

No Conselho Indigenísta Missionário (Cimi), organização a qual faço parte, cada companheiro e companheira que recebia a vacina era motivo de alegria. Acompanhei três pessoas próximas, que receberam as doses. Ficávamos ansiosas para saber qual vacina receberíamos, fizemos até pesquisas sobre a eficácia das vacinas. Foi uma emoção acompanhar tudo isso.

A segunda dose da esperança

Finalmente, chegou a minha tão esperada vez! Tive de aguardar três dias para o agendamento. Por isso, fizemos um mapa para chegar no postinho na hora certa sem imprevistos. É que eu estava nervosa, tinha muitas outras pessoas aguardando a dose da esperança. Então, no dia 09 de julho, recebi a vacina. Fiquei muito emocionada e por dentro pensando: “essas gotinhas tão desejadas vão salvar muitas vidas”. E salvaram a minha também.

Agora, a minha segunda dose, que será disponibilizada em outubro, vai completar a imunização. A espera é longa. Enquanto isso, tomo os devidos cuidados para não pegar a Covid -19 durante esse tempo, e ficar bem até a segunda dose.

Temos que saudar o SUS! “Não ao negacionismo, e sim à ciência”, essas são frases que me marcaram nesse tempo de vacina contra a Covid-19. A esperança de ter a vida normal voltou. Mesmo com tantas propagandas falsas, aderir à vacina é também proteger a todos e todas desse vírus cruel.

Sem esperança e sem vacina: mais de 500 mil mortes

A pandemia está sendo um processo doloroso para todas as famílias brasileiras. No início, tive muito medo da Covid-19, pois pensava nos meus pais idosos, minha mãe com diabetes. Todos os dias ligava para orientar sobre os cuidados. Foram momentos terríveis, nunca imaginei que amigos e pessoas próximas morreriam por causa dessa doença. Outrossim, é desafiador ter que ficar em casa por longas semanas, meses. Senti a saudade das pessoas queridas bater à porta todos os dias.

Hospitais lotados, sem UTIs, sem médicos, oxigênio. Pessoas morrendo sem assistência. Nem os que tinham dinheiro conseguiam sobreviver. Os noticiários dos jornais assustavam, parecia que estávamos vivendo um filme de terror. Era impossível conter as lágrimas.

Para completar, ainda vivemos um desgoverno que não criou estratégias, em tempo hábil, para combater o aumento da Covid-19 no país. Foram dias de revolta por saber diariamente da morte de pessoas, por causa da incompetência de um governo negacionista, que não comprou vacina a tempo de salvar vidas.

A pandemia e os Povos Indígenas

No Cimi, tivemos de paralisar os trabalhos presenciais nas aldeias, porque a chegada do vírus nas aldeias foi desolador. A todo momento, recebíamos notícias de que muitas pessoas estavam contaminadas. Queríamos que os indígenas fossem atendidos com qualidade nos hospitais de referência, mas o que vimos foi preconceito, racismo e discriminação. Denunciamos diversas situações aos órgãos públicos.

Na foto, é possível ver Eliane Franco com três crianças indígenas. Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Inicialmente, em março de 2020, tivemos que aprender a usar as ferramentas da internet para nos comunicar com os povos indígenas. E, ainda enfrentando um vírus tão perigoso, nossos trabalhos de informação e formação nas aldeias se deram através de cartilhas online, programas de rádios, encontros virtuais, folders e vídeos, orientando as lideranças sobre a ameaça da Covid-19.

Outra coisa importante que não posso deixar de falar: a situação do atendimento da saúde indígena durante o período de pandemia foi dramática, com vários problemas de estrutura nunca resolvidos pela Secretaria Espacial de Saúde Indígena (Sesai). Na pandemia, o problema se agravou.

Os povos não tinham o direito de sepultar seus mortos, os rituais fúnebres foram proibidos. Lembro da morte de duas indígenas do povo Javaé, mãe e filha que morreram no mesmo dia. A cena dos caixões sendo atravessados em duas canoas juntas para a aldeia me chocou.

As barreiras sanitárias foram criadas pelos próprios indígenas, dentro dos territórios, com o objetivo de conter o avanço do coronavírus. Tudo isso por causa da falta de apoio dos órgãos governamentais. Com o apoio do Cimi, os povos mantiveram as barreiras sanitárias nas entradas dos territórios indígenas e acredito eu que essa ação tenha salvado muitas vidas ind´´ígenas.

Concluindo, deixo aqui o meu agradecimento à Memória Popular da Pandemia, onde podemos registrar nossas escrevivências neste período tão macabro. Obrigada!

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Mato Grosso Parda Raça/Cor

“Precisei de ajuda para me inscrever no site para receber a vacina”

A minha vez de receber a vacina foi tranquila. Fiz a inscrição em um site de vacina mal feito. Precisei pedir ajuda, pois não entendo muito de tecnologia. Tive que mudar de mês a mês até chegar em julho de 1954. Imagina o tanto de clicada que eu tive que dar! 

Em print, é possível ver o site de vacinação contra a Covid-19 da Prefeitura de Cuiabá. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Site da Prefeitura de Cuiabá

Os meus filhos moram com a minha ex-esposa em Florianópolis. Um deles deu muita risada quando contei a minha experiência com o site de vacina. Ele ainda disse: “Pai, se a prefeitura quiser, eu arrumo esse site pra eles.” Pensando bem, até o meu casamento de 30 anos acabou devido a essa minha vida de militância…

Tomei a primeira dose no dia 16 de abril de 2021. Fui de carro próprio com uma amiga para a fila do drive thru, no Memorial Papa João Paulo II, em Cuiabá. Foi tranquilo, apesar da longa fila. No total, fiquei cerca de uma hora esperando para me vacinar. O pessoal que atendeu a gente é extremamente atencioso e paciente. São muito legais os servidores da saúde.

Sem nome no site de vacina

Já saí de lá com a data da segunda dose no meu cartão de vacinação. Ficou marcada para o dia 15 de maio. No entanto, faltando dois dias, o meu nome não aparecia no site de vacina da Prefeitura de Cuiabá. Só veio aparecer três dias depois, o que atrasou a minha segunda dose para o dia 18 de maio.

Fico imaginando como foi para as pessoas que não têm acesso à internet acessarem aquele site de vacina…

Esperei por cerca de uma hora para receber cada uma das doses da Coronavac. Na primeira, senti uma leve dor de cabeça que aparecia toda vez que eu me lembrava da vacina. A dor durou umas 30 horas, e depois passou. Já na segunda dose, não senti nada.

As vacinas demoraram muito no país inteiro. Ainda hoje, a nossa população não está imunizada. Por isso, estamos pagando um preço muito caro, com quase 600 mil mortes. Sendo que muitas delas poderiam ter sido evitadas se o país tivesse levado a sério a questão da vacinação, bem como todo o protocolo recomendado pela Organização Mundial da Saúde

Foram muitas perdas para a Covid-19

A pandemia afetou a minha família em casos de Covid-19, mas não teve óbito. Tive uma febre muito forte e dor de cabeça. No entanto, fiz uns remédios caseiros e me senti melhor. Fiz o teste para detectar o motivo na Bioenergética e deu positivo para a Covid-19. 

Em foto, é possível ver Sebastião sentado em um banco de madeira embaixo de uma árvore acompanhado de onze indígenas em aldeia. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Acompanho 8 povos indígenas no Araguaia

Foi no trabalho com os indígenas que tive muitas perdas, pois muitos dos que conheci faleceram de Covid-19. Um dia, um amigo do povo Rikbaktsa (terra Eribaktsa, do município Brasnorte) mandou mensagem dizendo que estava indo fazer o teste. Deu positivo. Então, ele veio pra Cuiabá. Não demorou muito e ele faleceu.

Outra perda foi a do cacique Matias, do povo Kayabi (terra Kayabi Abiaká, município de Juara). Foi o primeiro povo que me acolheu, em 1979, quando passei a morar em terra indígena. Sai de lá em 1985. Essa região concentra três povos. Na margem direita do Rio dos Peixes, ficam os povos Abiaká e Munduruku, e na parte esquerda, os Kayabi. 

Em foto, é possível ver o cacique Raoni apertando as mãos de Sebastião, que está de camisa vermelha. Os dois estão se cumprimentando e sorrindo. Há outras duas pessoas em segundo plano, um homem e uma mulher. No primeiro plano ao lado de Raoni, aparece parte do rosto de uma indígena de cocar azul que observa Raoni e Sebastião se cumprimentando. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Com o Cacique Raoni

Acompanhei a situação dos povos de perto em contato com o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (DSEI) e com universidades e institutos federais. Conseguimos álcool, sabonetes, máscaras…

Muitas vezes, lideranças ligavam pra mim contando da tristeza que é essa doença. Porque quando ela chega, todo mundo sofre, pois todos são ameaçados. Além disso, quando um morre na aldeia, as pessoas não podem fazer os rituais sagrados. Isso causa muito sofrimento. Muitos me ligaram chorando. Confesso que eu também chorei muito.  Foi um período de muita dor, muita tristeza. 

Vida inspirada na luta

Eu fui seminarista jesuíta. Sou de uma família tradicional mineira e fui criado na roça. Desde o início, estive na linha de teologia e libertação. Mas, esse negócio de vida religiosa começou a me perturbar. Eu vivia no interior de Nova Denise, em Mato Grosso. Vim pra Cuiabá em 1977 e comecei a estudar, porque eu queria entrar na vida religiosa e pensei em ter uma experiência fora, de conhecer a cidade, antes de entrar para o Seminário. Aqui, em Cuiabá, tínhamos trabalhos sociais ligados a igrejas em bairros, na luta por resistência e moradia.

Em foto, é possível ver uma foto do rosto de Sebastião de quando ele tinha por volta de 30 anos. Ele olha fixamente para as lentes da câmera. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.

Participei da fundação do PT em Cuiabá, em 1979. Foi, então, que eu conheci o pessoal do Conselho Missionário Indigenista (Cimi). Assim, passei a fazer parte. Mas, como eu queria ser padre, no segundo semestre de 1982, fui para o Seminário no Rio Grande do Sul, na cidade de São Leopoldo. Em 1983, fui para o noviciado em Cascavel, no Paraná, onde fiquei por um ano.

Em seguida, voltei para as aldeias Tatuí do povo Kayabi, Mayrob, do povo Abiaká e Nova Esperança, do Povo Munduruku. Passei a morar em cada uma dessas aldeias durante um tempo e saí de lá em 1985. Eu procurava se havia sinais de indígenas sem contato, pois havia história de índios que ainda não tinham sido encontrados. Encontrei alguns sinais, apenas. Peguei malária por 13 vezes. Depois, em Cuiabá, em 1986, entrei na coordenação do Cimi Regional. 

Fake News

Quando chegaram as vacinas, muitas pessoas tiveram uma certa resistência, devido a um monte de fake news, em sites e redes sociais, e por conta da influência evangélica. Tem um rapaz, formado e muito meu amigo, que me ligou à noite contando que não tomou a primeira dose, porque ficou em dúvida. Ele só tomou a primeira dose quando viu pessoas sendo vacinadas com a segunda, para ter segurança. Fico abismado, surpreso, de ver uma liderança esclarecida, com formação superior, sendo do Conselho de Saúde e professor, ficar em dúvida devido às influências externas.

Ele só me contou isso porque é meu amigo, mas me disse também que 30% da população de muitas aldeias teve a mesma atitude dele, por desconfiança. A gente conversou e ele me contou que ficava em dúvida diante das fake news. As pessoas acabam confusas diante de tanta influência negativa. Essas questões são tão fortes que influenciaram uma pessoa como ele. 

Desde a pandemia, nós do Cimi não vamos às aldeias. Antes, ficávamos lá por um mês, mas depois isso mudou. Desde então, a gente tem realizado reuniões virtuais, que são as articulações dos povos da região. Daqui de casa, acompanho oito povos indígenas do Araguaia. 

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Prefiro não informar

“A morte de companheiros deixou a comunidade cigana sem direito ao nosso tradicional ritual de despedida”

Muita coisa foi afetada por essa pandemia. Ela veio e bagunçou a vida de muita gente, mudou a nossa sobrevivência, balançou até a fé das pessoas. Mudou o sentido das coisas! Eu senti na pele toda essa mudança, porque presenciei a primeira morte de um irmão da comunidade cigana, em decorrência da Covid-19, aqui no Ceará. Foi o Barroso, aos 63 anos, no dia dois de Junho. Depois de alguns dias foi o Solimar… 

Foto de rosto e corpo de Antônio Ferreira dos Santos, apelidado de Barroso, acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Barroso morava no Sobral, morreu na Santa Casa. Já o Solimar morreu na cidade de Crateús. Na verdade, recordo que quatro ciganos, aqui no Ceará, foram parar na UTI, por causa desse vírus. Dois conseguiram sobreviver e dois não resistiram… Mas eu sei que o primeiro Cigano a falecer por Covid foi no Estado da Bahia, na cidade de Jitaúna, a 383 quilômetros de Salvador, e enterrado em Jequié. Por isso, vou falar sobre o que é para nós ciganos perder uma pessoa querida durante a pandemia. 

Não esqueço daquele dois de Junho, dia da morte do nosso companheiro Barroso. Ele foi sepultado na cidade de Maracanaú, onde a mãe e familiares haviam sido sepultados. Barroso era conhecido assim porque aqui em Fortaleza tem um bar chamado Barroso e os ciganos foram os primeiros moradores desse bairro. Ele era o nosso grande artista, cantava muito bem, tocava violão… e acima de tudo era um grande amigo. A sua morte nos abalou profundamente. E pior! O outro irmão dele também foi para a UTI. Quando Barroso foi enterrado, dois dias depois o irmão saiu da UTI. Foi um baita susto! Uma porrada pra nós. 

Sem o nosso adeus

Para nós, essa questão de isolamento durante a pandemia da Covid-19 é de um impacto muito grande, especialmente no que diz respeito à falta do funeral, porque temos rituais e homenagens em nossa tradição e não podemos realizar nada, por causa do distanciamento. Somos um povo muito itinerante e gostamos de festa.

Essa questão fúnebre nos causa forte consternação, porque o nosso ritual, quando o grupo vive em barraca, por exemplo, tiramos tudo, queimamos tudo, as mulheres cortam o cabelo e se resguardam por um bom tempo. Algumas viúvas ficam dois/três anos sem se envolver com ninguém. E todo mundo respeita.

Outra situação que evitamos é com relação a nomes iguais. Se houver mais de um Barroso ou Rogério naquela comunidade, por exemplo, e estivermos em uma roda, evitamos falar o nome do que morreu por respeito aos demais e para não voltar aquela lembrança. Somos muito sentimentais e muito família. 

A espera

Já sabíamos que não podíamos fazer o nosso ritual devido às medidas de distanciamento social nessa pandemia. Foi muito triste.

Moro aqui na Caucária, região metropolitana de Fortaleza, onde fica o escritório central do Instituto Cigano do Brasil (ICB). O Joaquim cigano é irmão do Barroso e conselheiro nacional do ICB. Encontrei com ele e a família no cemitério de Maracanaú e aguardamos o corpo vim de Sobral. De Fortaleza à cidade de Sobral dá cerca de 220 quilômetros. Foi uma tortura.

Enquanto o corpo não chegava, fomos até a administração do cemitério adiantar a papelada. É um cemitério humilde, apenas um muro corta o caminho entre até onde o carro pode passar, porque não tem como entrar carro lá. 

Cena marcada na memória

Quando o carro da funerária chegou, foi uma cena que ficou na minha cabeça. Como eu disse, o muro dividia uma fila de sepulturas. Apenas o motorista e outra pessoa pegariam o caixão e levariam até a fileira, porque os coveiros não queriam tocar no caixão. Então, eu e o irmão do Barroso nos prontificamos a carregar o caixão. Já chegara a hora do meio dia quando os coveiros pegaram a alça do caixão e nos ajudaram. As irmãs do Barroso estavam do outro lado do muro em prantos.

O momento em que o caixão era levado até a gaveta foi emocionante. A cena que ficou marcada em minha memória foi a do caimento de uma chuva bem fina, no momento em que o corpo do Barroso era deixado ali dentro daquela gaveta. Entendemos que ali se tratava de um sinal de despedida. Ao mesmo tempo, as lágrimas caindo da face de todas as irmãs do Barroso que choravam muito, dizendo adeus ao irmão… aquelas imagens ficaram na minha mente. 

Foi quando tivemos a ideia de criar o memorial das vítimas da Covid-19 do povo cigano.

Subnotificação

O nosso povo é desconfiado, não gosta de fotos, não gosta de falar. 70% do nosso povo Calon é analfabeto. Ontem, fiquei sabendo da morte de dois ciganos, um em Eunápolis e outro em Petrolina. Todos no Nordeste.

Até o momento, estou sabendo de trinta e sete ciganos mortos, mas acredito que muitos mais ciganos se foram, vitimados pela pandemia. Porque o processo é muito rápido, e, quando o cigano é internado, ele não diz que é cigano. Muitas vezes por sofrer racismo.

Quando a pessoa morre, é logo encaminhada para a funerária. Não dá tempo de fazer nada. 

Mapa de óbitos pela Covid-19 produzido pelo Instituto Cigano Brasileiro. Mapa acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida. No mapa, é possível ver a seguinte distribuição das mortes. Ciganos Calon: MA - 1, CE - 2, PE - 5, PI - 2, AL - 1, BA - 8, GO - 5, MG - 1, ES - 4, MT - 2. Ciganos Rom: SP - 3, MG - 1.

Aqui no Ceará, não temos a cultura do acampamento, somos 108 famílias. A maior comunidade do Ceará fica no Sobral, onde vivia o Barroso. Solicitamos à Secretaria de Saúde, pedimos também à Cruz Vermelha, para fazer a desinfecção. Pedimos à Secretaria para fazer algo, teste, isolamento. Os gestores têm que fazer alguma coisa! 

A nossa preocupação é com o genocídio cigano, porque moramos todos muito próximos.

Despreparo e desencontro de informações

Tudo isso nos abalou, porque, além da Covid-19, vêm outras doenças: a depressão, a ansiedade. Somos muito inquietos, agitados, precisamos trabalhar. As mulheres estão se sentindo presas dentro de casa, os homens não estão podendo trabalhar. No lugar da alegria, uma das características do nosso povo, pairou um ar de tristeza e inconformidade. Nessa pandemia, houve até caso de suicídio em nossa comunidade. Está tudo muito difícil para a gente.

O governo não nos preparou, há muito desencontro de informações. Um tal de usa máscara, não usa máscara. Isso acaba chegando nos acampamentos do nosso povo cigano. 

Só em setembro, oito ciganos, que eu tenha informação, morreram, desde o dia primeiro até o dia 21. Nós, do ICB, realizamos algumas ações de conscientização para a nossa população se proteger.

Fizemos uma cartilha para divulgar, solicitamos ajuda financeira, mas ninguém nos ajudou. Então enviamos a cartilha virtual, elaboramos até máscaras com a frase “fique em casa”! Enfim, é um trabalho em conjunto e feito com amor para, sobretudo, proteger o nosso povo e evitar mais mortes.

A falta de políticas específicas agravou a situação

Fizemos a nossa parte, mas o que sentimos com tudo isso é que o Governo falha em campanhas específicas.

Colocam assim: “em situação de vulnerabilidade”. Isso acaba atingindo todo mundo. É necessário fazer campanhas para o povo cigano, povo quilombola, povo de terreiro.

Estamos dentro do decreto 6.040, que trata dos povos de comunidades tradicionais, mas eles não estão nem aí pra nada! O que falta para o Governo é criar vergonha na cara e fazer políticas ESPECÍFICAS! Não adianta fazer “em situação de vulnerabilidade” porque a gente fica na chuva!

Auxílio insuficiente

Agora, com esse tal auxílio emergencial… muitos povos ciganos não receberam esse auxílio. E tem mais: esses R$600 dá pra quê? Se não morrer de fome, depressão, ansiedade, ainda tem essa pandemia! Nós temos crianças autistas, muitas pessoas com doenças genéticas, e fomos praticamente esquecidos. Não há apoio. Somos atingidos por todas essas situações e com a Covid-19 os problemas só aumentaram.

A gente sempre pede acompanhamento médico, cestas básicas, testes para a Covid-19. Mas é tudo iniciativa do Instituto Cigano do Brasil. Precisamos acionar o Ministério Público (MP) para conseguir tratamento médico para nossos irmãos e irmãs que testaram positivo para a Covid-19. O povo cigano precisa de apoio. Porque tudo isso, sem contar o racismo que o nosso povo ainda sofre. 

Sou Rogério Ribeiro, cigano da etnia Calon. Nós, ciganos, estamos divididos em três grupos: Calón, Rom e Sinti. Há ainda seus subgrupos. Já estamos aqui nesta caminhada em terras brasileiras há 446 anos.  Sou presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), que atua em 15 Estados, incluindo todos do Nordeste. Temos representação em Portugal, na Bélgica e na Grécia. O ICB foi pensado para atender todo o grupo cigano; temos menos de dois anos, mas muitos serviços prestados. 

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor São Paulo

“O bairro Jardim Damasceno precisa de políticas públicas”

O Jardim Damasceno é um bairro residencial situado na Zona Norte de São Paulo, pertencente ao Distrito da Brasilândia — Freguesia do Ó. É um bairro de extrema carência de políticas públicas que afeta o desenvolvimento do bairro e de seus habitantes. Essa carência se evidenciou no período da pandemia, pois muitas situações que eram invisíveis aos olhos da população local, tornaram-se visíveis com a perda de empregos. E, com a insegurança do momento de pandemia, seus casos se agravavam.

Primeiro, a falta de recursos financeiros para compra dos produtos de higiene e limpeza eram altas. No mesmo momento em que faltavam recursos até mesmo para alimentação básica, diante de todas essas observações, entra em ação o trabalho do Espaço Cultural Jd. Damasceno.

Trata-se de um galpão que foi erguido a partir de uma tragédia na época do Governo de Luiza Erundina, quando houve um desabamento em uma área de risco matando então três crianças soterradas. Diante de tamanha tragédia, houve a necessidade de erguer um galpão de emergência para abrigar as famílias destas crianças que vieram a óbito, enquanto era providenciado uma moradia adequada.

Espaço de atividades

A partir daí, o galpão ficou sendo utilizado como um espaço social, com diversas atividades como arte na rua e saraus por exemplo. Desde a construção do espaço, vem sendo travado uma luta com o poder público local e a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), pela concessão de uso do espaço ou por uma gestão compartilhada com o poder público para que a comunidade possa continuar utilizando o espaço. Entre as atividades realizadas no local estão o atendimento de reforço escolar para as crianças e adolescentes, esportes, debates com grupos de mulheres, cinema, biblioteca e horta comunitária.

Todos os trabalhos são voluntários sem nenhum investimento público. O coletivo retira do próprio bolso, recursos para quitar as contas de água e luz. Os trabalhos desenvolvidos, são as formas que encontramos para evitar o maior contato das crianças com os vícios, apontando a elas um outro “mundo possível”.

Impactos da pandemia no Jardim Damasceno

Diante da pandemia, a responsabilidade aumentou, devido à grande procura de muitas pessoas por ajuda, como alimentação, produtos de higiene e máscaras. E diante dessa necessidade, tivemos que nos reinventar. Conseguimos máquinas de costuras emprestadas e doações de tecidos para produzir às máscaras para doar a comunidade local. Além disso, formamos grupos de orientação sobre a importância da higienização da casa, do corpo e dos alimentos.

Porém, como higienizar os alimentos se não os tinham? E essa era a demanda maior. Tivemos que mobilizar amigos e ONG’s parceiras, em arrecadação de alimentos para atender a população que se encontrava desempregada. Conseguimos atender muita gente por um longo período de tempo, o mais critico da pandemia. E até hoje, ainda atendemos com cestas básicas um grupo de pessoas com deficiência e comorbidade e continuamos orientando e distribuindo máscaras a quem procura.

O que nos marcou nessa força tarefa, foi a surpresa da evidência de tantas pessoas com um índice altíssimo de vulnerabilidade social, devido a ausência de políticas públicas e ausência do Estado. A invisibilidade dessas pessoas ainda nos surpreende.

E é o que a pandemia vem fazendo, trazendo a tona essa invisibilidade. O galpão ao qual me refiro, é um espaço construído de madeirite que de tempos em tempos. Temos que trocar as folhas de madeirites porque apodrecem, já que o governo local não nos permite uma construção adequada. 

O Chamamos então de Espaço Cultural do Jardim Damasceno. Consulte nossa página no Facebook:  @EspaçoCulturalJardimDamasceno.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor São Paulo

“Descobri a doença da minha filha durante a pandemia”

Nesse período, minha filha de treze anos, que nunca ficou doente, começou a despertar uma febre acima de 40 graus. Logo, procurei atendimento em hospitais públicos lotados de pessoas com suspeita de Covid. Foi uma luta de dois meses, uma febre que não cedia e vários diagnósticos errados para a misteriosa doença, sendo um deles a Covid-19. 

Depois de mais um tratamento para um diagnóstico errado, ela foi encaminhada ao Centro de Especialização Infantil. Ali precisei tirar forças, não sei de onde, para enfrentar a internação da minha filha. Durante alguns dias em que ela esteve internada em uma unidade do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graac), para averiguação de câncer. Foram realizadas três biopsias e transfusão de sangue.

Ela ainda sofreu dois derrames pleural e uma pneumonia, que quase a levou de mim. Após essa batalha, finalmente chegaram ao diagnóstico correto: minha filha sofre de Lúpus, uma doença inflamatória autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos.

Hoje, ela está bem, apesar de muito inchada, devido ao tratamento da doença. Eu, enquanto mãe solo e mulher militante, me encontro muito mais forte e com muita garra para lutar contra as injustiça sociais desse país.

Militância

Sou uma mulher militante em defesa dos direitos humanos. Escolhi a educação como bandeira de luta por ter como experiência a ausência da educação, que acarreta danos na vida das pessoas que têm esse direito negado. 

É fato que ninguém esperava que fossemos viver um momento como esse em que estamos vivendo. A pandemia nos trouxe muitos desafios e um dos principais foi e está sendo nos manter vivo-as diante de todas as dificuldades, e para isso, tivemos que nos reinventar, portanto.

A princípio, enquanto movimento social, sofremos ataque por parte da prefeitura, que de uma certa forma tentou destruir o movimento de educação existente há mais de 30 anos. Foram retiradas a única ajuda de custo salarial que os educadores recebiam e a ajuda de custo dos lanches dos educandos em meio à pandemia. 

Diante disso, tivemos que travar uma luta acirrada na Câmara Municipal e no Judiciário para reverter esse ato criminoso. Por fim, ganhamos a causa na Justiça. No entanto, tudo aconteceu em um momento em que eu me sentia amedrontada. Acreditava que seria contaminada e morreria, pois o índice de contaminação e mortalidade em minha região era a mais alta e já não havia mais leitos nos hospitais.

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25 a 39 anos Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Parda Pós-Graduação Incompleta Raça/Cor São Paulo

“A pandemia da Covid-19 aprofundou as vulnerabilidades do país”

Sermos atravessados por essa pandemia em um momento já tão difícil nos colocou em um lugar de aprofundamento de muitas vulnerabilidades. Nesse momento, o meu olhar para as pessoas ao meu redor passou a ter uma lente ainda mais forte da importância de suas vidas. A pandemia ainda não passou, e continua a ser ignorada pelos incompetentes governadores, ministros e presidente. Assistimos de boca aberta, lágrimas nos olhos e apunhalados pela indiferença a morte de centenas de milhares de pessoas. E o punhal da indiferença nos mata enquanto seres humanos cada dia mais um pouco, enquanto a política econômica neoliberal avança e temos nossos direitos violados, aprofundando a precariedade e vulnerabilidades de nossas vidas.

No início do ano eu já lia com muita tensão as notícias sobre o novo vírus que havia surgido na China. Sabia que algo grave estava por vir, com notícias indicando possíveis impactos socioeconômicos. Olhei para as condições financeiras na qual estávamos eu e minha parceira, uma travesti que vive com HIV, que também estava sem emprego formal, vendendo o almoço para comer a janta. Mas ainda tínhamos a possibilidade de pagar o aluguel.

Não éramos os únicos, a situação de quase todes que conhecíamos era a mesma ou até pior. A atenção para as tensões já presentes no cotidiano se aprofundou com mais uma ameaça de aumento de crises. Em fevereiro, eu e minha parceira fortalecemos mais uma vez o laço de parceria, cuidado e muita paciência. Foram meses tensos e estávamos sozinhes dentro de casa.

Vulnerabilidades escancaradas

No que concerne ao meu trabalho, assisti com um peso no coração os projetos de prevenção e promoção da saúde minguarem com o fechamento das escolas. As vulnerabilidades foram escancaradas. Nos últimos encontros presenciais vi nos olhares daquelas e daqueles estudantes o receio de mais um terremoto em suas vidas: uma pandemia que trazia expectativas – que infelizmente se realizaram – de centenas de milhares de mortos. Esses jovens são moradores e moradoras de favelas, e já diziam: a gente é quem mais vai se ferrar com isso.

Ouvi na voz de professoras queridas a força de continuar se movimentando pela garantia do direito a uma educação de qualidade, seguido do pesar de reconhecer o fracasso das políticas instituídas pelo estado para a continuidade das aulas. Os/as estudantes não estavam conseguindo acompanhar, e, ainda pior, o contato com muitos/as deles/as foi perdido.

Direitos violados

Os trabalhos de prevenção ao HIV e outras IST ficaram ainda mais difíceis nas escolas. Esse assunto não estava sendo abordado no currículo oficial com as aulas online, e a possibilidade de registro audiovisual de professores/as falando sobre esse tema em meio ao turbilhão de políticas conservadoras apenas aumentou o medo já existente de abordagem do assunto. Pois, essa violação ao direito desses jovens a uma educação sexual baseada em evidências aprofundaria ainda mais suas vulnerabilidades à AIDS.

Em outros projetos com movimentos sociais junto a jovens para trabalhar a prevenção experenciei o enfraquecimento de vínculos tão duramente trabalhados nos últimos tempos. O contato com esses jovens foi extremamente dificultado pela violação do seu direito a uma conexão de internet, além de suas vidas terem mudado de rumos em poucas semanas, sendo forçados/as a procurarem formas para ajudarem suas famílias a continuarem se alimentando e pagando suas contas. Todo o resto ficou em outros planos para depois. Mas continuamos com o trabalho, tentando fomentar a discussão sobre a importância dos direitos humanos e, principalmente, a garantia desses direitos.

Incertezas

Após sete meses sem visitar meus familiares, fui para o interior de São Paulo, carregado de uma grande tensão, um medo muito grande de poder estar levando o novo coronavírus para lá. A dinâmica de interações naquela pequena cidade é muito diferente da de São Paulo, com muitas visitas diárias de parentes e conhecidos na casa de minha mãe. No entanto, consegui me manter em isolamento durante quase duas semanas antes de entrar em contato com essas pessoas.

As minhas diversas tentativas de comunicação sobre a importância de manter distância física e usar máscara falharam miseravelmente. Por isso, me senti um péssimo trabalhador da saúde na área da prevenção.

Mas era tudo muito novo e eu não daria conta dos medos e certezas baseadas em centenas de notícias e informações falsas das mensagens de WhatsApp que apitam o dia todo nos celulares de minhas tias, por exemplo. Certezas que são baseadas na primeira reação emotiva frente a uma notícia absurda se endurecem rápido, ficam sólidas e destrutivas. Enfim, qualquer contestação é recebida com agressividade. São efeitos do fundo buraco político da ascensão neofascista no Brasil.

Sou psicólogo, trabalho com prevenção ao HIV/AIDS em escolas públicas de São Paulo através de projetos da USP. Também faço parte da Coletiva Loka de Efavirenz. Este é um breve relato sobre minha vida pessoal e profissional durante o início da pandemia de Covid-19 na cidade de São Paulo.

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18 a 24 anos Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Paraná Parda Raça/Cor

“Espero que logo a gente possa sorrir, e não apenas com os olhos”

Eu sou Diego Ferreira, militante do Movimento Sem Terra (MST) do Estado do Paraná. Para nós do MST, muita coisa mudou por causa da pandemia. Acho que a gente nunca viveu isso , especialmente em ter que adotar o uso da máscara e o uso do álcool em gel. Sentimos falta do aperto de mão, do abraço no companheiro quando a gente se encontrava no meio da rua, da família.

Hoje foi preciso parar de visitar a família e dos parentes nos visitar. A nossa rotina do MST, os acampados e os assentados da reforma agrária, do trabalho, a quarentena, a produção de alimentos… tudo mudou! Pois esses alimentos eram produzidos para a comercialização, consumo e doação. Isso para a campanha de solidariedade que o MST criou no início da pandemia Já doamos, aqui no norte do Paraná, cerca do 100 toneladas de alimentos, por exemplo.

O que eu, Diego, levo de ensinamento da pandemia é a solidariedade e o trabalho voluntário. Tem muita gente cuidando do próximo. Lembrando que é importante cuidar da gente também.

O vírus, que até hoje não sabemos como funciona, como ele age, nos deixa preocupados. Mas vamos fazer a nossa parte e contribuir nos fortalecendo e torcendo para que forças médicos e cientistas evoluam na busca da vacina contra a Covid-19. E que possamos, logo em frente, nos abraçar, apertar as mãos e sorrir, e não apenas com os olhos.

E é isso aí! Um grande abraço e até a próxima!

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40 a 59 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Minas Gerais Mulher Cis Parda Raça/Cor

“Percebi o quanto abri mão de mim mesma e do que eu gostava”

A pandemia trouxe problemas para muita gente, principalmente afetou o psicológico. Um povo que está acostumado a uma convivência mais calorosa, de repente, se vê obrigado a um isolamento social.

Mas em toda situação por mais difícil e dolorosa que seja, acredito que sempre há um lado positivo. Com a pandemia não foi diferente. Percebi que era necessário esta parada.

Uma parada forçada para uma auto avaliação em todos os sentidos, profissional, afetivo, nos relacionamentos de modo geral. Estava vivendo numa ciranda sem tempo para mim mesma, sem tempo para avaliar minhas ações.

E o tempo surgiu, se impôs. Percebi então o quanto havia aberto mão de mim mesma, das coisas que gostava, das pessoas, de tanta coisa boa…

Ainda é difícil não ter uma proximidade física com as pessoas, um aperto de mão, um abraço, mas em compensação eu tenho resgatado a pessoa que sou, o meu eu. E estou feliz, apesar de tudo.

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40 a 59 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mato Grosso do Sul Mulher Cis Parda Raça/Cor

“Tenho medo e me preocupo com os impactos do futuro”

Sou Agente Comunitário de Saúde em Três Lagoas/MS. Sou profissional da linha de frente na pandemia, mas tão esquecida quanto diversas outras profissões. Desde antes deste período complexo já sofria pela falta de compreensão de muitas pessoas acerca da importância do meu trabalho. Infelizmente, grande parte da população desconhece o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS). Fato este que continuou quando a pandemia chegou ao Brasil. 

Enfrentei e enfrento muitos obstáculos. Faço parte do grupo de risco por ser hipertensa, no entanto, ocorre que para que eu pudesse me afastar perderia o incentivo pago pelo estado do Mato Grosso do Sul. Assim, para que minha família não fosse prejudicada, decidi continuar.

No início, faltaram Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), a população ficou com medo e também senti medo. Após algum tempo o município reorganizou as funções e o trabalho começou a desenvolver com certa eficácia. Em setembro aumentaram demasiadamente a microárea dos agentes e criaram o monitoramento de pacientes com suspeita e confirmação de Covid-19. Funções necessárias durante o enfrentamento de uma pandemia, mas feitas sem remuneração adicional. Trabalhei em dobro, inclusive aos finais de semana, sem ganhar nada a mais por isto.

Me sinto exausta, mas satisfeita pelo meu trabalho ter contribuído para a população. Temo pelos impactos econômicos, temo pelo futuro. Sigo na esperança da vacina para que possamos recomeçar.

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Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Mulher Cis Parda Raça/Cor Rio de Janeiro

“Sou mãe e consegui sobreviver graças ao tão batalhado auxílio emergencial”

Trabalhava com produção de buffet saudável para festas infantis e também com turismo domiciliar no bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, onde moro.

Em dezembro de 2019, com a casa cheia de hóspedes de vários países, estava muito feliz. Finalmente havia encontrado uma fórmula de atuação em meu trabalho que se equilibrava entre a baixa temporada de festas e a alta temporada de turismo local! Acreditava que 2021 poderia ser o ano da minha tão sonhada virada de mesa e conquista de estabilização profissional.

Ledo engano. Logo, com a chegada apavorante desta pandemia que nos assola até hoje, estas duas áreas foram cortadas do cenário econômico atual. Assim, sem festejos familiares para produzir e sem poder receber turistas dentro de minha casa, me vi com o chão aberto e sem perspectivas de um retorno.

Mas consegui sobreviver financeiramente a este terrível ano com a estratégia de viver um dia de cada vez. Para tanto, contei com o tão batalhado auxílio governamental para garantir o básico do estrutural da vida e com apoio solidário de família e amigos.

É preciso se reinventar

Também voltei a fazer bolos e quitutes sob encomenda. Sigo tentando entender como me reinventar num cenário de milhões de novos desempregados, milhares de negócios fechando e a negativa do nosso desGoverno Federal de prosseguir dando assistência governamental a quem perdeu sua fonte de renda.

Sinto falta de minha empresa, não apenas porque ela gerava minha própria subsistência, mas porque a cada festa produzida, outras sete pessoas, no mínimo, entre cozinheira, auxiliar, garçons, fretista e faxineira se somavam a mim e formávamos uma equipe potente para realizar nosso trabalho feito com competência, garra e amor. Bons tempos…

Enfim, escrevo esse relato em dezembro de 2020. Mas 2021 se aproxima com suas incertezas de braços abertos para nos receber. Não me sinto mais feliz, mas me sinto viva e sigo lidando com uma questão de cada vez para conseguir ir vivendo. Apesar de tudo e dos desgovernos aos quais estamos submetidos, amanhã vai ser outro dia… Acredito.

Sou Eliz, mãe solo de uma criança de 11 anos, sul-matogrossense de nascença e carioca de coração. Sou uma micro empreendedora individual, ou era…