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60 anos ou mais Distrito Federal Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Tudo o que está acontecendo já era predestinado”

Relato de Margarida Silva, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Tragédias como pandemia e vulcões que estão acontecendo no mundo, tudo já estava predestinado a acontecer, e virão, ainda, outros desastres pelo que eu sei. Logo, a solução é se prevenir e esperar, ver o que é que Deus tem pra fazer com cada um de nós, porque ninguém tá livre de nada. Só que eu não tenho medo, apesar de esperar viver mais tempo, ainda. Eu perdi uma irmã há pouco tempo, ela tinha 90 anos, nem óculos usava. Fazia até labirinto, um bordado feito em grades.  

Quando eu me casei, tinha medo de morrer e deixar os meus filhos pequenos sofrerem o que eu passei. Eu e outras irmãs passamos por isso. Hoje, quero viver até a hora que Deus achar que está bom. Embora eu tenha alguns problemas, a minha mente não foi afetada. Ao contrário, a minha mente é lúcida, tranquila. Tudo o que eu fiz, tudo o que eu consegui, foi já depois de idosa. Eu era louca para estudar, terminar meus estudos e não conseguia. Trabalhava muito, era aquela correria toda. Até que decidi fazer um concurso. Passei na Fundação Educacional, terminei o segundo grau, fiz curso de inglês, tudo depois de idosa, com 50 anos. 

Enfim, tudo o que eu consegui, hoje não preciso mais, graças a Deus. Hoje, estou só curtindo. Minha mente está boa, eu resolvo tudo sozinha. Eu vou ao banco, eu vou para todo o canto que eu tiver de ir e vou sozinha. 

Destino predestinado

Nasci em Fortaleza, no Ceará. Cheguei em Brasília em 1967, depois que meu pai faleceu. Eu e minhas irmãs ficamos desgarradas, porque ele já tinha outra família, havia casado pela segunda vez e tinha um monte de filho pequeno. Eu e minhas irmãs já éramos adultas. Fiquei em Fortaleza trabalhando com bordados para uma espanhola.

Um dia, após a morte do meu pai, cheguei de roupa preta à casa da espanhola, para trabalhar, quando ela me perguntou: “o que foi que houve? Porque você está com essa roupa?” Respondi: “é porque meu pai faleceu”. Eles se conheciam. Ela, então, me sugeriu uma viagem, dizendo que eu estava muito abatida. Eu disse que queria ir para outro canto, então ela me disse que arranjaria, mas se fosse numa casa de família.

Só queria sair dali um pouco. Queria ser enviada ao Rio ou à Bahia, porque era onde ela tinha parentes. Entretanto, o destino estava predestinado. A espanhola me enviou à Brasília com um pessoal. Eu vim e, logo em seguida, arranjei meu namorado aqui. Sei que abri caminho em Brasília para a maioria do meu povo. Hoje, eu tenho uma sobrinha formada em Relações Internacionais, com mestrado na Inglaterra, e morando na Ceilândia. Ela trabalha na ONU, aqui em Brasília. Ou seja, todo mundo que veio para minha casa, saiu bem empregado.

Racismo

Eu não tinha ninguém por mim, era só eu e Deus. Eu vim pra cá confiando em Deus, porque a família do meu marido é branca. Meu marido era loiro do olho azul e os parentes dele não gostavam de mim, por causa da minha cor. A família dele não me tolerava. Eu não sabia que o nome para isso era racismo.

Meu marido era simples demais, muito tranquilo, o mundo podia pegar fogo, e ele era o último que saía da casa, ele não tinha pressa para nada. Eu sempre fui mais agoniada, queria resolver as coisas rápido. Tanto que, uma vez, eu disse a mim mesma: eu vou fazer o concurso, nem que seja para limpar chão, eu quero.

Pra dizer a verdade, nada na vida me marcou tanto, porque eu tinha cuidado. A vida me obrigava a ter cuidado comigo mesma, porém, nunca tive medo. Nunca deixei de ir ao mercado, à farmácia ou à igreja. Alguma coisa me dizia que eu não ia pegar a Covid. Talvez, um ser tenha me dado essa luz que eu não ia ter Covid, porque eu rezava muito por mim e por eles. A minha filha, que é o meu braço direito, também não pegou Covid. Eu sempre dizia: “meu Deus, cuida da minha filha, cuida do meu filho, pois eles precisam trabalhar”.

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60 anos ou mais Distrito Federal Ensino Fundamental Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor

“O maior impacto foi ter ficado parada e sofrer de ansiedade”

Relato de Lindalva Batista, produzido pela Organização Olívia Gama para o 2º Edital de Fomento da Memória Popular da Pandemia

Tenho 86 anos e oito meses. Vim morar aqui aos 14 anos. Antes [de morar no Distrito Federal], vivia no Rio de Janeiro. Nós moramos uns 20 anos no Rio de Janeiro. Casei no Rio, tive seis filhos. Nós viemos para procurar coisa melhor. Veio todo mundo, eu, os filhos e o marido. Chegando aqui, tive mais dois filhos. Primeiro, eu tinha sete, aqui tive mais dois. No total, são nove filhos, e estamos aqui até hoje.

A pandemia marcou mais a minha vida por eu ter que ficar parada, por ter que ficar em casa. Antes eu saía, mas nesse período passei o ano todo sem sair, só para ir pro médico. A ansiedade piorou. É que a gente escuta “um morreu lá, outro morreu acolá”, por isso fiquei com muita ansiedade. Tinha dia que eu ia dormir e acordava durante a noite pensando que estava doente. Muita ansiedade mesmo.  

O trabalho parou e isso foi horrível, pois eu era muito ativa. Todo dia ia pra loja. Eu moro na casa de um dos meus filhos. Então, a pandemia atrapalhou a minha rotina. Gostava muito de sair, de festa, não tinha uma festa que eu não estivesse. Tenho uma família muito grande, então cada vez tem um filho para visitar. Eu gostava muito de sair, passear, shopping era toda semana, almoçava fora, tinha uma vida melhor. De repente, parou tudo. Fiquei sem chão. 

Vou receber a terceira dose depois de amanhã.  Agora já não tenho mais ansiedade, passou. Já vou até viajar. O aprendizado que eu tive foi ter muita fé em Deus, muita oração pra conseguir passar essa fase, e graças a Deus consegui. 

“O isolamento me fez lembrar dos tempos da Ditadura”

A expectativa que eu tenho é de que a situação melhore, que tudo volte ao normal. Acho que normal mesmo não volta mais. Essa doença aí deu medo em todo mundo. Não tem como ficar calma. Acho que desses dois anos, só agora que eu estou mais calma. Então, fizemos assim, cada um que fazia aniversário só chamava a família, só os de casa. Mas, eu mesma, só fiquei em casa. 

Passeio de shopping acabou, as festas… Ainda não estou indo na missa. Porque ainda tenho medo. Porque dizem que mesmo quem se vacinou duas vezes ainda pode pegar a doença. Então, assisto a missa na televisão. Vamos ver se essa pandemia acaba nesse ano que vem.  

Essa situação de ficar em casa me fez lembrar da Ditadura, que era quando não podíamos sair na rua. Ficávamos trancafiados dentro de casa, íamos apenas ao mercado fazer compra. Foi uma época bem ruim também que passei. Hoje, o que eu mais quero é saúde para mim e todo o mundo. Que as coisas voltem a ser como eram antes. Acredito que vai melhorar, se Deus quiser, vai melhorar.

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25 a 39 anos Branca Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Paraná Raça/Cor

“Hoje o meu quarto é minha sala de aula e lugar de estudo”

“Eu sou Tamile Rizmann Fronczak e o meu quarto agora é minha sala de aula e lugar de estudo. Sou natural de Curitiba – PR, tenho vinte e seis, e dois grandes sonhos acalentados desde criança: ser professora e conhecer Paris. Escolhi o curso de pedagogia e estou firme no propósito. Eu tenho Síndrome de Down e acredito na inclusão das pessoas com deficiências na escola regular e na sociedade. A formação universitária é uma opção minha e conta com o apoio da mãe e do pai.

Antes, já havia feito três de anos de pedagogia em uma Instituição de Ensino Superior privada. Minha mãe diz que o primeiro ano foi um investimento financeiro perdido porque a IES não ofereceu os apoios que ela precisava. Porém, foi uma grande vitória de sua tenacidade e persistência: ela se superou, provou o seu valor e ganhou paulatinamente o respeito de todos/as. Isso tudo marcado por significativo desgaste emocional e físico, inclusive. Nos dois anos que se seguiram, foram sendo adequados os apoios e os arranjos necessários para o sucesso nas disciplinas matriculadas”, conta Tamile.

Diante do quadro de instabilidade financeira familiar, em 2020 e após passar no vestibular (2019) optamos pela escola pública para que a Tamile não adiasse ainda mais a realização de seu sonho. Ela mudou de IES muito a contragosto, mas obediente. Como todo mundo, ela tem dificuldade em lidar com a mudança. Sente muita falta dos/as amigos/as e do ambiente escolar já conhecido na IES anterior.

Isolamento

Nos primeiros quinze dias de isolamento (março/2020), Tamile mostrava, pela primeira vez na vida, desinteresse pelos estudos e nenhuma vontade de retornar à universidade, por vários fatores desde a comodidade de estar em casa ou pela total falta de vínculos com a nova Instituição de Ensino.

Figura 2: Chocolate quente no café da manhã de mãe e filha

Quando chegou a primeira informação, por e-mail, sobre alguma atividade não presencial ficamos muito apreensivas com as demandas e imediatamente entramos em contato com a Coordenação do Curso e com Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidade Educacionais Especiais.

A nova rotina de vida estabelecida em casa era algo a ser explorado: a família toda em casa todos os dias e não só nos finais de semana éramos duas, mas essa era toda a nossa família; um pouquinho mais de tempo para dormir pela manhã; trabalho diário nas tarefas da casa: secar a louça, ajudar a preparar as refeições, arrumar o quarto; cuidar de si, desenhar, pintar, dançar, ouvir música, tomar sol pela janela; mais tempo de TV e celular também. Portanto, voltar ao ritmo de estudos parecia desgastante.

Figura 3: Tamile “sous-chef” na nossa casa – 1º semestre

Nova rotina

A partir do citado e-mail e da primeira reunião virtual com a IES  (professores e alunos) e dos contatos frequentes por telefone com quatro professoras, as dúvidas foram sendo esclarecidas e os combinados construídos. As conversas virtuais das segunda-feira foram trazendo a universidade mais para perto e o ânimo e compromisso com o estudo foi retomado. Então, Tamile passou a ler com afinco o livro indicado pela IES e presenteado pelo pai “Pedagogia do Oprimido”. Fez seus resumos e seus mapas mentais com o apoio somento das conversas familiares à mesa a partir de suas demandas.

Com o início das atividades pedagógicas não presenciais e o apoio da professora designada para acompanhá-la estabeleceu-se uma rotina e dinâmica organizadora não só dos estudos, mas também com influencia positiva no equilíbrio emocional, pois minimizava as perdas de contato impostas pelo isolamento social devido à pandemia Covid19. A chegada de um tablet emprestado pela IES também ajudou muito em toda a dinâmica.

Figuras 4, 5, 6 , 7 e 8: “Qualquer um pode cozinhar”, mas somente um paladar apurado sabe apreciar uma boa comida. Essa é a Tamile! 

Destaque na Figura 5 é o omelete preparado pela Tamile (somente com supervisão da  mãe) – 1º semestre/2020.

“Qualquer um pode cozinhar” é uma frase famosa do Filme “Ratatouille”, dita pelo Chef Gusteau como expressão de suas crenças pessoais. E nós também acreditamos que qualquer um pode realizar coisas maravilhosas, pode sim ser um artista, ser bem sucedido e alcançar os seus sonhos. O rato Rémy simboliza alguém simples e pobre, que sofre preconceito e perseguição e mesmo assim consegue realizar o seu maior sonho, contra todas as expectativas e contra todos. 

Consultado em 15/08/2020, às 14h, em: clique aqui.

Mudanças

Muitas coisas mudaram nas nossas vidas desde que participei do vídeo convocatório da Campanha Memória Popular da Pandemia. A partir de setembro/2020 a dinâmica da nossa casa mudou bastante com a chegada da Vovó Gertrudes. E o nosso espaço de vida que parecia aconchegante ficou pequeno demais.

Em novembro/2020 mudamos para Ilhéus, na Bahia. Moramos, hoje, em frente à Praia de Olivença, margeando o Território Indígena Tupinambá de Olivença. O lugar de fato é um paraíso, mas toda mudança exige um esforço nas adaptações. Vovó Gertrudes, de fato, melhorou muito.

  1. As minhas produções e a nossa vida:

Figuras 9, 10 e 11: Comemoração familiar dos 169 anos da chegadada Família Ritzmann ao Brasil – 12/07/1857 – 2020

Figuras 14 e 15: Produções artísticas da Tamile – 1º semestre/2021 

Para mim, a educação é simultaneamente um ato de conhecimento, um ato político e um  ato de arte” (Paulo Freire) 

Acesse o teaser da Campanha que contou com a participação da Tamile em: encurtador.com.br/ktwCZ

Leia também: “Minha casa e meu espaço de trabalho se fundiram em um mesmo lugar”

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25 a 39 anos Branca Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pós-Graduação Completa Raça/Cor São Paulo

“Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância”

Tudo mudou com a pandemia. Eu, por exemplo, que sempre conciliei vários trabalhos, tive que me reorganizar radicalmente. Em minha atividade principal, de educador nas prisões juvenis na Grande São Paulo, aconteceu uma organização de educadores/as inédita de início, seguida de muitas demissões. Quem sobrou teve que aprender a dar aula à distância.

Pela minha experiência em rádio e Podcast, acho que foi mais fácil dar o passo para o vídeo e ver o que conseguiria fazer. Tinha de tudo um pouco na minha oficina: de leitura de jornais a gravação de músicas, de shows de grupo de rap a rodas de conversa.

À distância, fui por dois caminhos: música e leitura, tentando trocar o máximo possível de ideias com os meus alunos. Completamos 6 meses de aulas remotas e, apesar de tudo, ante às condições, aconteceu.

Foram 17 turmas, em 6 unidades diferentes, que renderam nove podcasts, quatro saraus e até duas fanzines. Fora as trocas, reflexões e afetos que não foram contabilizados.

Seguimos para 2021 na expectativa do fim da crise sanitária; das aulas presenciais serem retomadas sem colocar em risco a saúde de ninguém; da recontratação de quem perdeu o emprego e de encontrar algum aluno dessas aulas à distância, só que em liberdade

Veja também: “Hoje o meu quarto é minha sala de aula e lugar de estudo”