Praticamente, de todos os relacionamentos tóxicos que já tive, este, na verdade, se revelou o pior. No final de 2019, começamos a trabalhar na praia, alugando piscinas, e fomos morar juntos, dividindo aluguel com a minha mãe.
Chamo-me Heberti, tenho 25 anos, sou ator e estudante Teatro na UFBA.
Estou presente na militância partidária do movimento estudantil, trabalho com o Secretário de Cultura do PT, e sou Diretor da União Estadual dos Estudantes da Bahia.
Uma infância de relacionamentos difíceis
Meus pais se separaram quando eu tinha apenas 14 anos. Os desafios da minha história começam antes mesmo de eu nascer: um “golpe da barriga” ao contrário.
Meu pai descobriu que minha mãe pensava em se separar dele e, então, ele decidiu furar o preservativo, pois sabia que, em 1995, uma mulher preta, solteira e grávida, enfrentaria diversos dilemas.
Quando ela descobriu a gravidez, comunicou-lhe, que, rindo, disse que já sabia que isso aconteceria, que era proposital, — e deu certo. Ela se manteve casada com ele.
Nunca fui o filho favorito, desejado. Sempre fui uma criança afeminada e tímida.
Expressava meus sentimentos abertamente. A primeira violência homofóbica de que tenho lembrança de ter sofrido foi, ainda, aos 6 anos, quando, na rua, meu pai me agarrou pelo braço e gritou: “fale como homem”.
A partir desse dia me tornei ainda mais calado e atento a esse tipo de agressão. As outras crianças me batiam, me trancavam no banheiro da escola, e os adultos faziam “piadas”.
A escola e a descoberta da sorologia
Desenvolvi um trauma com a escola. O período do Ensino Médio foi mais tranquilo.
Descobri a minha sorologia em dezembro de 2016, enquanto participava de um evento com o Gapa.
Eu já realizava estudos sobre HIV/AIDS há cerca de um ano. Naquele dia, usando meu figurino de apresentação para aquela ocasião, “inventei” de fazer a testagem.
Deu positivo.
Peguei a minha mochila, saí do evento sem que ninguém visse, fiz o exame comprobatório e retornei. Lá, contei para uma colaboradora do Gapa de confiança.
O meu mundo só não caiu porque eu já tinha informações suficientes para entender que, aquele diagnóstico, não seria o meu fim.
Consegui resolver tudo muito rápido. Em uma semana eu já iniciara o tratamento, e estava tomando a medicação.
Fiz tudo sozinho, sem contar para ninguém. A primeira pessoa da minha família para quem contei foi a minha irmã mais nova, sendo minha cúmplice em tudo, porque eu precisava que alguém tivesse ciência caso, algum efeito colateral dos remédios, me acometesse.
O que também me manteve mais tranquilo, na época do descobrimento, foi o fato de estar namorando um garoto mais novo, com quem eu ainda não tinha me relacionado sexualmente.
Após seis meses, eu já estava indetectável. O tratamento foi muito tranquilo.
Sempre fui extremamente agitado, do tipo de pessoa que acumula demandas e faz mil coisas simultaneamente. Passava o dia na rua e ficava extremamente sobrecarregado. Mas não eram apenas as demandas do cotidiano que me sugavam, — além de não ser tão simples lidar com o diagnóstico, pois havia uma rotina nova a ser incorporada.
Eu também perdia muita energia com as minhas relações interpessoais, principalmente as românticas.
Desgastes emocionais
Tive alguns parceiros muito problemáticos. Eu tinha muitas crises de ansiedade, crises depressivas. Cheguei a tentar suicídio, ingerindo diversos remédios, inclusive, os antirretrovirais.
Passei três dias internados, fazendo lavagem. Foi este o momento em que toda a minha família soube da minha sorologia.
Depois de 2017, as coisas se tornaram mais tranquilas, eu comecei a ter noção de que precisava equilibrar tudo o que eu fazia, porque seria impossível dar atenção a tudo que eu me propunha.
Não conseguiria abraçar o mundo.
Relacionamentos tóxicos
Em 2019, eu iniciei um relacionamento. Eu só decidi namorar essa pessoa, pois, eu era tratado como um deus na terra. Ele agia como se tivesse conquistado a pessoa mais perfeita do mundo.
Ninguém nunca havia me tratado assim. Eu passei uma boa parte da infância, sozinho, apanhando de outras crianças na rua e sofrendo humilhações do meu pai em casa. Ver alguém me tratar daquela forma me parecia interessante.
Estive preso em um relacionamento abusivo
Ele começou a me manipular, exigia que eu vivesse para ele, porque “ele vivia para mim”. Uma obsessão.
A manipulação era tamanha, que ele chegava a me chantagear para mantermos relações sexuais com outras pessoas, ao mesmo tempo.
Em meio ao caos, ele também se descobriu soropositivo. Como eu era obrigado a manter relações sexuais sem preservativo, eu fui reinfectado.
Ele já tinha até invadido o meu quarto com uma faca, após uma discussão.
Desenvolvi insônia.
Eu tinha medo de dormir, de ser atacado, chegava a passar mais de 48h acordado, e precisei passar a tomar medicamentos para dormir. E não apenas para dormir, mas para conter as crises de ansiedade, que foram se tornando mais comuns.
Não foi fácil, mas consegui me livrar desse relacionamento.
Eu fiquei o tempo todo em casa, com ele.
Quando consegui, enfim, me libertar, também senti uma necessidade muito grande de sair de casa. Por isso, acabei descumprindo a quarentena. Durante a pandemia, eu precisei encontrar formas de trabalhar, como a arte, e comecei a postar monólogos, nas redes sociais.
Com relação ao meu tratamento, moro perto do Hospital das Clínicas, onde eu sou acompanhado. Então, não enfrentei grandes dificuldades. Eles passaram a liberar remédios para dois, até três meses.
Em um relacionamento com a solitude
Hoje, eu vivo um novo relacionamento. Todas as minhas relações sempre foram acolhidas pela minha família, e me sinto privilegiado nesse aspecto. A minha relação com a minha mãe é ótima, mesmo sendo evangélica. Não existe distância entre nós.
Ainda estou me curando dos traumas.
Mas a minha relação com meu pai não é boa. Eu, nem sequer, o chamo “pai”, ou o considero como tal, — todos sabem que me refiro a ele quando digo “o outro”. Apenas cumpro as minhas obrigações sociais como “filho”.
Agora, que ele está extremamente doente, preciso ir ao hospital e ajudar. Eu vou, mas faço apenas o que preciso.
Eu espero que quando a pandemia acabar, eu possa voltar à rotina, retomando contatos com tudo e todos que deixei de acessar desde dezembro de 2019, — como as salas de ensaio, os teatros e as pessoas.
Enquanto isso não acontece, vou vivendo essa realidade com o maior aprendizado, até então, que tem sido lidar, não com a solidão, mas com a solitude.
Aprendi a ficar comigo.