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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Mato Grosso Parda Raça/Cor

“Precisei de ajuda para me inscrever no site para receber a vacina”

A minha vez de receber a vacina foi tranquila. Fiz a inscrição em um site de vacina mal feito. Precisei pedir ajuda, pois não entendo muito de tecnologia. Tive que mudar de mês a mês até chegar em julho de 1954. Imagina o tanto de clicada que eu tive que dar! 

Em print, é possível ver o site de vacinação contra a Covid-19 da Prefeitura de Cuiabá. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Site da Prefeitura de Cuiabá

Os meus filhos moram com a minha ex-esposa em Florianópolis. Um deles deu muita risada quando contei a minha experiência com o site de vacina. Ele ainda disse: “Pai, se a prefeitura quiser, eu arrumo esse site pra eles.” Pensando bem, até o meu casamento de 30 anos acabou devido a essa minha vida de militância…

Tomei a primeira dose no dia 16 de abril de 2021. Fui de carro próprio com uma amiga para a fila do drive thru, no Memorial Papa João Paulo II, em Cuiabá. Foi tranquilo, apesar da longa fila. No total, fiquei cerca de uma hora esperando para me vacinar. O pessoal que atendeu a gente é extremamente atencioso e paciente. São muito legais os servidores da saúde.

Sem nome no site de vacina

Já saí de lá com a data da segunda dose no meu cartão de vacinação. Ficou marcada para o dia 15 de maio. No entanto, faltando dois dias, o meu nome não aparecia no site de vacina da Prefeitura de Cuiabá. Só veio aparecer três dias depois, o que atrasou a minha segunda dose para o dia 18 de maio.

Fico imaginando como foi para as pessoas que não têm acesso à internet acessarem aquele site de vacina…

Esperei por cerca de uma hora para receber cada uma das doses da Coronavac. Na primeira, senti uma leve dor de cabeça que aparecia toda vez que eu me lembrava da vacina. A dor durou umas 30 horas, e depois passou. Já na segunda dose, não senti nada.

As vacinas demoraram muito no país inteiro. Ainda hoje, a nossa população não está imunizada. Por isso, estamos pagando um preço muito caro, com quase 600 mil mortes. Sendo que muitas delas poderiam ter sido evitadas se o país tivesse levado a sério a questão da vacinação, bem como todo o protocolo recomendado pela Organização Mundial da Saúde

Foram muitas perdas para a Covid-19

A pandemia afetou a minha família em casos de Covid-19, mas não teve óbito. Tive uma febre muito forte e dor de cabeça. No entanto, fiz uns remédios caseiros e me senti melhor. Fiz o teste para detectar o motivo na Bioenergética e deu positivo para a Covid-19. 

Em foto, é possível ver Sebastião sentado em um banco de madeira embaixo de uma árvore acompanhado de onze indígenas em aldeia. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Acompanho 8 povos indígenas no Araguaia

Foi no trabalho com os indígenas que tive muitas perdas, pois muitos dos que conheci faleceram de Covid-19. Um dia, um amigo do povo Rikbaktsa (terra Eribaktsa, do município Brasnorte) mandou mensagem dizendo que estava indo fazer o teste. Deu positivo. Então, ele veio pra Cuiabá. Não demorou muito e ele faleceu.

Outra perda foi a do cacique Matias, do povo Kayabi (terra Kayabi Abiaká, município de Juara). Foi o primeiro povo que me acolheu, em 1979, quando passei a morar em terra indígena. Sai de lá em 1985. Essa região concentra três povos. Na margem direita do Rio dos Peixes, ficam os povos Abiaká e Munduruku, e na parte esquerda, os Kayabi. 

Em foto, é possível ver o cacique Raoni apertando as mãos de Sebastião, que está de camisa vermelha. Os dois estão se cumprimentando e sorrindo. Há outras duas pessoas em segundo plano, um homem e uma mulher. No primeiro plano ao lado de Raoni, aparece parte do rosto de uma indígena de cocar azul que observa Raoni e Sebastião se cumprimentando. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Com o Cacique Raoni

Acompanhei a situação dos povos de perto em contato com o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (DSEI) e com universidades e institutos federais. Conseguimos álcool, sabonetes, máscaras…

Muitas vezes, lideranças ligavam pra mim contando da tristeza que é essa doença. Porque quando ela chega, todo mundo sofre, pois todos são ameaçados. Além disso, quando um morre na aldeia, as pessoas não podem fazer os rituais sagrados. Isso causa muito sofrimento. Muitos me ligaram chorando. Confesso que eu também chorei muito.  Foi um período de muita dor, muita tristeza. 

Vida inspirada na luta

Eu fui seminarista jesuíta. Sou de uma família tradicional mineira e fui criado na roça. Desde o início, estive na linha de teologia e libertação. Mas, esse negócio de vida religiosa começou a me perturbar. Eu vivia no interior de Nova Denise, em Mato Grosso. Vim pra Cuiabá em 1977 e comecei a estudar, porque eu queria entrar na vida religiosa e pensei em ter uma experiência fora, de conhecer a cidade, antes de entrar para o Seminário. Aqui, em Cuiabá, tínhamos trabalhos sociais ligados a igrejas em bairros, na luta por resistência e moradia.

Em foto, é possível ver uma foto do rosto de Sebastião de quando ele tinha por volta de 30 anos. Ele olha fixamente para as lentes da câmera. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.

Participei da fundação do PT em Cuiabá, em 1979. Foi, então, que eu conheci o pessoal do Conselho Missionário Indigenista (Cimi). Assim, passei a fazer parte. Mas, como eu queria ser padre, no segundo semestre de 1982, fui para o Seminário no Rio Grande do Sul, na cidade de São Leopoldo. Em 1983, fui para o noviciado em Cascavel, no Paraná, onde fiquei por um ano.

Em seguida, voltei para as aldeias Tatuí do povo Kayabi, Mayrob, do povo Abiaká e Nova Esperança, do Povo Munduruku. Passei a morar em cada uma dessas aldeias durante um tempo e saí de lá em 1985. Eu procurava se havia sinais de indígenas sem contato, pois havia história de índios que ainda não tinham sido encontrados. Encontrei alguns sinais, apenas. Peguei malária por 13 vezes. Depois, em Cuiabá, em 1986, entrei na coordenação do Cimi Regional. 

Fake News

Quando chegaram as vacinas, muitas pessoas tiveram uma certa resistência, devido a um monte de fake news, em sites e redes sociais, e por conta da influência evangélica. Tem um rapaz, formado e muito meu amigo, que me ligou à noite contando que não tomou a primeira dose, porque ficou em dúvida. Ele só tomou a primeira dose quando viu pessoas sendo vacinadas com a segunda, para ter segurança. Fico abismado, surpreso, de ver uma liderança esclarecida, com formação superior, sendo do Conselho de Saúde e professor, ficar em dúvida devido às influências externas.

Ele só me contou isso porque é meu amigo, mas me disse também que 30% da população de muitas aldeias teve a mesma atitude dele, por desconfiança. A gente conversou e ele me contou que ficava em dúvida diante das fake news. As pessoas acabam confusas diante de tanta influência negativa. Essas questões são tão fortes que influenciaram uma pessoa como ele. 

Desde a pandemia, nós do Cimi não vamos às aldeias. Antes, ficávamos lá por um mês, mas depois isso mudou. Desde então, a gente tem realizado reuniões virtuais, que são as articulações dos povos da região. Daqui de casa, acompanho oito povos indígenas do Araguaia. 

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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Incompleto Homem Cis Rio de Janeiro

“Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, o aplicativo diminuiu o valor das corridas para os motoboys”

Sou músico (batuqueiro) e há dois anos trabalho como motoboy por meio de aplicativo. Quando começou a pandemia, eu tinha acabado de pegar caxumba e, por conta disso, acabei ficando isolado por duas semanas. Durante esse isolamento, foi me consumindo a dúvida de trabalhar, ou não, por causa do medo de pegar Covid-19. Por outro lado, crescia em mim a vontade de poder contribuir com uma mobilização solidária que crescia em muitos lugares.

Resolvi ir para a rua

Nesse começo, com o grande alarde da pandemia e o fechamento praticamente total da cidade, pipocavam estórias de pessoas que ajudavam outras. Elas se mobilizavam para entregar quentinhas, máscaras e faziam compras para pessoas em isolamento. Essas pessoas tentavam, de alguma forma, ajudar outras que não trabalhavam, ou do grupo de risco.

Apesar da minha namorada, na época, me oferecer ajuda financeira para eu não precisar trabalhar, resolvi ir para a rua. Em parte porque eu queria sair para rodar e não depender financeiramente dela, e em parte porque eu queria participar dessa mobilização solidária.

Quando me senti recuperado da caxumba, coloquei um anúncio numa rede social dizendo que faria fretes grátis para ajudar pessoas que precisassem. Comecei a rodar nos aplicativos que já trabalhava antes, tentando tomar os cuidados recomendados, mas torcendo para que, caso eu pegasse esse vírus, não tivesse complicações sérias. No fim, o anúncio que coloquei me rendeu vários contatos de fretes particulares. Mas somente um ou dois fretes beneficentes.

Ruas vazias

Confesso que o que mais me marcou foi andar pelas ruas do Rio de Janeiro totalmente vazias. Não havia ônibus ou carros (um dos maiores perigos para os motoqueiros), nem transeuntes – nada. 

Em várias horas rodando, eu mal cruzava com outro motoqueiro, pois estavam todos em “pleno vapor” fazendo entregas por aí. O Rio era uma verdadeira cidade fantasma e, por isso, andar de moto era uma maravilha. Não havia sinais fechados, “mão” certa de trânsito nas ruas, calçadas ou esquinas.

Não existiam limites para andar de moto, uma liberdade para transitar que eu nunca tinha experimentado. Gostaria de ter filmado algumas tardes em que eu passava por bairros, que são normalmente cheios, totalmente vazios, sem ver uma pessoa, carro ou qualquer sinal de vida nas ruas. 

Foi estranho e maravilhoso. Eu só tinha contato com pessoas quando eu entrava em alguma porta de estabelecimento para pegar o pedido e depois no prédio, para entregá-lo. 

Aplicativo desvalorizou trabalhadores 

Outra coisa bem marcante foi a política extremamente agressiva e desumana de um aplicativo em que trabalho. Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, a empresa diminuiu o valor das corridas para os motoboys, que estavam de fato se expondo ao risco. O aplicativo ainda aumentou o percentual da cobrança nos pedidos dos restaurantes (que não tinham para onde fugir) de 22,5% para 27,5%, incrementando exponencialmente seus lucros.

Isso evidenciou ainda mais a desvalorização por parte das empresas, e algumas vezes também dos clientes, de quem está de frente, botando a cara. Não que isso seja uma novidade para mim, mas justamente naquele momento em que supostamente existia uma consciência e um esforço coletivo para superar a pandemia, essa política adquirira um ar particularmente nefasto.

No fim, embora não tenha feito nenhum teste, acho que provavelmente peguei Covid-19 em algum momento, porque a exposição era muito grande.

Mas não sei se por sorte de não ter contraído a doença ou por sorte dela não afetar meu organismo mais agressivamente, até hoje estou vivo e não tive nenhum sintoma.

Depois, quando já estava tudo mais ou menos aberto e a vida andava a uns 50 a 70% normal, um motoboy de um dos grupos de WhatsApp que eu faço parte morreu de Covid-19. Seu nome era Felipe e, ironicamente, era um dos poucos que se posicionavam a favor do isolamento e me dava suporte nas discussões políticas do grupo contra as imbecilidades do Bolsonaro.

Eu não o conhecia pessoalmente, mas foi marcante. Porque já naquela hora eu achava que todos que estavam se expondo como eu, provavelmente já tinham sido infectados. E, se não morreram até então, já deveriam estar imunizados. Isso colocou em dúvida a certeza que eu tinha de já estar fora de perigo.

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40 a 59 anos Bahia Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Recebemos conselhos dos orixás para silenciar os atabaques do candomblé”

O candomblé é uma religião de muita proximidade. Diferente das outras religiões que tiveram um protocolo especial para a realização de cultos, nós do candomblé não tivemos. Porque os nossos cultos são diferentes dos demais segmentos religiosos.

É que nós temos em nossas celebrações o toque dos atabaques. As três pessoas que tocam os atabaques se chamam “Ogãs”, “Alabês”. Elas precisam ficar juntas e ainda que estivessem usando máscara estariam colocando suas vidas em risco.

Por outro lado, também recebemos conselhos dos orixás para que os atabaques silenciassem. Também, nessa circunstância de pandemia, temos reverenciado o orixá Obaluaê, considerado o nosso médico. É Ele quem afasta as doenças do nosso caminho. A saudação para esse orixá é “atotô”, que significa silêncio.

E esse é um momento tão difícil, de tantas perdas. Já perdemos mais de 160 mil vidas (até novembro de 2020). São muitas pessoas retornando ao Orum.

Logo, nesse momento pandêmico não podemos entoar as nossas cantigas, tocar os nossos atabaques, mas dobramos os nossos joelhos no chão para pedir misericórdia aos nossos orixás e especialmente ao Pai Obaluaê, à Mae Nanã e ao Pai Ossaim, para que os cientistas desenvolvam logo a vacina para devolver as nossas rotinas.

Cuidado

Quando vou ao terreiro Ilê Axé Olodumare chamo três ou quatro filhas de santo, porque precisamos manter o Axé vivo. Por exemplo: precisamos colocar água nas quartinhas e dar orô, comida para os nossos orixás. Além disso, limpamos tudo, acendemos nossas velas e fazemos nossas preces e orações.

Também não somos à favor de iniciar pessoas nesse período tão delicado.

Por fim, gostaria de pedir a você que não esqueça as palavras de ordem para essa pandemia são: paciência e sabedoria. Seja qual for o seu segmento religioso, abrace ele. Faça suas orações todos os dias. Conecte-se com essa força. Até você que é agnóstico ou ateu, conecte-se a alguma coisa para se fortalecer. Covid-19 não poderá, nunca, ser maior que as energias que regem o universo.

Sou Ìyalọríṣá do Ìlè Àse Ewa Olódùmarè; Conselheira Municipal de Política Cultural de Salvador; Ocupo a cadeira de religiosa do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Nutrição da UFBA; Faço parte do Comitê de Enfrentamento à Covid-19 nas Comunidades de Religião de Matriz Africana; Sou da Rede de Mulheres de Terreiro da Bahia e ativista contra Intolerância, Racismo e Ódio Religiosos.

Veja também: “Nesses momentos difíceis, Tupã tem nos ajudado”

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Prefiro não informar

“A morte de companheiros deixou a comunidade cigana sem direito ao nosso tradicional ritual de despedida”

Muita coisa foi afetada por essa pandemia. Ela veio e bagunçou a vida de muita gente, mudou a nossa sobrevivência, balançou até a fé das pessoas. Mudou o sentido das coisas! Eu senti na pele toda essa mudança, porque presenciei a primeira morte de um irmão da comunidade cigana, em decorrência da Covid-19, aqui no Ceará. Foi o Barroso, aos 63 anos, no dia dois de Junho. Depois de alguns dias foi o Solimar… 

Foto de rosto e corpo de Antônio Ferreira dos Santos, apelidado de Barroso, acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Barroso morava no Sobral, morreu na Santa Casa. Já o Solimar morreu na cidade de Crateús. Na verdade, recordo que quatro ciganos, aqui no Ceará, foram parar na UTI, por causa desse vírus. Dois conseguiram sobreviver e dois não resistiram… Mas eu sei que o primeiro Cigano a falecer por Covid foi no Estado da Bahia, na cidade de Jitaúna, a 383 quilômetros de Salvador, e enterrado em Jequié. Por isso, vou falar sobre o que é para nós ciganos perder uma pessoa querida durante a pandemia. 

Não esqueço daquele dois de Junho, dia da morte do nosso companheiro Barroso. Ele foi sepultado na cidade de Maracanaú, onde a mãe e familiares haviam sido sepultados. Barroso era conhecido assim porque aqui em Fortaleza tem um bar chamado Barroso e os ciganos foram os primeiros moradores desse bairro. Ele era o nosso grande artista, cantava muito bem, tocava violão… e acima de tudo era um grande amigo. A sua morte nos abalou profundamente. E pior! O outro irmão dele também foi para a UTI. Quando Barroso foi enterrado, dois dias depois o irmão saiu da UTI. Foi um baita susto! Uma porrada pra nós. 

Sem o nosso adeus

Para nós, essa questão de isolamento durante a pandemia da Covid-19 é de um impacto muito grande, especialmente no que diz respeito à falta do funeral, porque temos rituais e homenagens em nossa tradição e não podemos realizar nada, por causa do distanciamento. Somos um povo muito itinerante e gostamos de festa.

Essa questão fúnebre nos causa forte consternação, porque o nosso ritual, quando o grupo vive em barraca, por exemplo, tiramos tudo, queimamos tudo, as mulheres cortam o cabelo e se resguardam por um bom tempo. Algumas viúvas ficam dois/três anos sem se envolver com ninguém. E todo mundo respeita.

Outra situação que evitamos é com relação a nomes iguais. Se houver mais de um Barroso ou Rogério naquela comunidade, por exemplo, e estivermos em uma roda, evitamos falar o nome do que morreu por respeito aos demais e para não voltar aquela lembrança. Somos muito sentimentais e muito família. 

A espera

Já sabíamos que não podíamos fazer o nosso ritual devido às medidas de distanciamento social nessa pandemia. Foi muito triste.

Moro aqui na Caucária, região metropolitana de Fortaleza, onde fica o escritório central do Instituto Cigano do Brasil (ICB). O Joaquim cigano é irmão do Barroso e conselheiro nacional do ICB. Encontrei com ele e a família no cemitério de Maracanaú e aguardamos o corpo vim de Sobral. De Fortaleza à cidade de Sobral dá cerca de 220 quilômetros. Foi uma tortura.

Enquanto o corpo não chegava, fomos até a administração do cemitério adiantar a papelada. É um cemitério humilde, apenas um muro corta o caminho entre até onde o carro pode passar, porque não tem como entrar carro lá. 

Cena marcada na memória

Quando o carro da funerária chegou, foi uma cena que ficou na minha cabeça. Como eu disse, o muro dividia uma fila de sepulturas. Apenas o motorista e outra pessoa pegariam o caixão e levariam até a fileira, porque os coveiros não queriam tocar no caixão. Então, eu e o irmão do Barroso nos prontificamos a carregar o caixão. Já chegara a hora do meio dia quando os coveiros pegaram a alça do caixão e nos ajudaram. As irmãs do Barroso estavam do outro lado do muro em prantos.

O momento em que o caixão era levado até a gaveta foi emocionante. A cena que ficou marcada em minha memória foi a do caimento de uma chuva bem fina, no momento em que o corpo do Barroso era deixado ali dentro daquela gaveta. Entendemos que ali se tratava de um sinal de despedida. Ao mesmo tempo, as lágrimas caindo da face de todas as irmãs do Barroso que choravam muito, dizendo adeus ao irmão… aquelas imagens ficaram na minha mente. 

Foi quando tivemos a ideia de criar o memorial das vítimas da Covid-19 do povo cigano.

Subnotificação

O nosso povo é desconfiado, não gosta de fotos, não gosta de falar. 70% do nosso povo Calon é analfabeto. Ontem, fiquei sabendo da morte de dois ciganos, um em Eunápolis e outro em Petrolina. Todos no Nordeste.

Até o momento, estou sabendo de trinta e sete ciganos mortos, mas acredito que muitos mais ciganos se foram, vitimados pela pandemia. Porque o processo é muito rápido, e, quando o cigano é internado, ele não diz que é cigano. Muitas vezes por sofrer racismo.

Quando a pessoa morre, é logo encaminhada para a funerária. Não dá tempo de fazer nada. 

Mapa de óbitos pela Covid-19 produzido pelo Instituto Cigano Brasileiro. Mapa acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida. No mapa, é possível ver a seguinte distribuição das mortes. Ciganos Calon: MA - 1, CE - 2, PE - 5, PI - 2, AL - 1, BA - 8, GO - 5, MG - 1, ES - 4, MT - 2. Ciganos Rom: SP - 3, MG - 1.

Aqui no Ceará, não temos a cultura do acampamento, somos 108 famílias. A maior comunidade do Ceará fica no Sobral, onde vivia o Barroso. Solicitamos à Secretaria de Saúde, pedimos também à Cruz Vermelha, para fazer a desinfecção. Pedimos à Secretaria para fazer algo, teste, isolamento. Os gestores têm que fazer alguma coisa! 

A nossa preocupação é com o genocídio cigano, porque moramos todos muito próximos.

Despreparo e desencontro de informações

Tudo isso nos abalou, porque, além da Covid-19, vêm outras doenças: a depressão, a ansiedade. Somos muito inquietos, agitados, precisamos trabalhar. As mulheres estão se sentindo presas dentro de casa, os homens não estão podendo trabalhar. No lugar da alegria, uma das características do nosso povo, pairou um ar de tristeza e inconformidade. Nessa pandemia, houve até caso de suicídio em nossa comunidade. Está tudo muito difícil para a gente.

O governo não nos preparou, há muito desencontro de informações. Um tal de usa máscara, não usa máscara. Isso acaba chegando nos acampamentos do nosso povo cigano. 

Só em setembro, oito ciganos, que eu tenha informação, morreram, desde o dia primeiro até o dia 21. Nós, do ICB, realizamos algumas ações de conscientização para a nossa população se proteger.

Fizemos uma cartilha para divulgar, solicitamos ajuda financeira, mas ninguém nos ajudou. Então enviamos a cartilha virtual, elaboramos até máscaras com a frase “fique em casa”! Enfim, é um trabalho em conjunto e feito com amor para, sobretudo, proteger o nosso povo e evitar mais mortes.

A falta de políticas específicas agravou a situação

Fizemos a nossa parte, mas o que sentimos com tudo isso é que o Governo falha em campanhas específicas.

Colocam assim: “em situação de vulnerabilidade”. Isso acaba atingindo todo mundo. É necessário fazer campanhas para o povo cigano, povo quilombola, povo de terreiro.

Estamos dentro do decreto 6.040, que trata dos povos de comunidades tradicionais, mas eles não estão nem aí pra nada! O que falta para o Governo é criar vergonha na cara e fazer políticas ESPECÍFICAS! Não adianta fazer “em situação de vulnerabilidade” porque a gente fica na chuva!

Auxílio insuficiente

Agora, com esse tal auxílio emergencial… muitos povos ciganos não receberam esse auxílio. E tem mais: esses R$600 dá pra quê? Se não morrer de fome, depressão, ansiedade, ainda tem essa pandemia! Nós temos crianças autistas, muitas pessoas com doenças genéticas, e fomos praticamente esquecidos. Não há apoio. Somos atingidos por todas essas situações e com a Covid-19 os problemas só aumentaram.

A gente sempre pede acompanhamento médico, cestas básicas, testes para a Covid-19. Mas é tudo iniciativa do Instituto Cigano do Brasil. Precisamos acionar o Ministério Público (MP) para conseguir tratamento médico para nossos irmãos e irmãs que testaram positivo para a Covid-19. O povo cigano precisa de apoio. Porque tudo isso, sem contar o racismo que o nosso povo ainda sofre. 

Sou Rogério Ribeiro, cigano da etnia Calon. Nós, ciganos, estamos divididos em três grupos: Calón, Rom e Sinti. Há ainda seus subgrupos. Já estamos aqui nesta caminhada em terras brasileiras há 446 anos.  Sou presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), que atua em 15 Estados, incluindo todos do Nordeste. Temos representação em Portugal, na Bélgica e na Grécia. O ICB foi pensado para atender todo o grupo cigano; temos menos de dois anos, mas muitos serviços prestados. 

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40 a 59 anos Escolaridade Estado Gênero Idade Minas Gerais Mulher Cis Pós-Graduação Completa Prta Raça/Cor

“Para mim foi muito complicado manter o delivery”

Tive que readaptar meu negócio para o ramo de delivery, devido à necessidade de manter as despesas da empresa. No entanto, entendi que, ao contrário do que se diz da necessidade de transformação, nem sempre a gente vai se adaptar ou o negócio vai dar certo.

Antes da pandemia, oferecia serviços de gastronomia em praças públicas, trabalhava com serviços de catering para camarins, shows e eventos corporativos. Mas com a chegada do coronavírus, tudo isso foi modificado.

A pandemia me fez repensar outras formas de atuação, então dentro da gastronomia afro-brasileira. Então, passei a oferecer serviços de delivery. Mas no meu caso, por exemplo, foi muito complicado manter o delivery. Passou de uma questão financeira a uma questão pessoal e até mesmo de conseguir estar feliz com a minha atuação. Então, em um dado momento decidi não mais continuar com o delivery. Daí começaram a aparecer outras propostas de trabalhos corporativos, os quais têm me mantido hoje em dia.

Aprendizados

O lado transformador foi a possibilidade de poder transitar em outros meios. Porque quando se escreve um projeto para criar uma startup delimitamos um poucos os nichos e dentro do que eu tinha como projeto do ramo gastronômico não tinha delivery. Mas ao mesmo tempo percebi que minha proposta inicial era a que me fazia feliz e a empresa avançar.

Percebi mudanças pessoais também. Hoje vejo que nem tudo está sob controle. Enquanto mulher negra empreendedora percebo que é muito importanto pensar nos obstáculos, nas necessidades de transformação e acreditar na minha certeza, no meu sonho. Hoje creio muito mais em minha capacidade e naquilo que sempre escolhi para ter como ofício.

Aprendi também que nem tudo está sob controle. Especialmente para nós empreendedores. Saber que a qualquer momento uma transformação pode haver é um importante aprendizado. Dessa vez foi a pandemia. Nós, empreendedoras, estamos susceptíveis a mudanças.

Conselho à você, empreendedora

Esteja ancorada de alguma forma. Fique por dentro do que está acontecendo em seu mercado. Qualifique-se para quando acontecer algo imprevisível você possa ter, pelo menos, o mínimo de possibilidade de se manter. É importante ter um suporte financeiro, uma economia preparada para um momento de eventualidades. E nunca deixe de acreditar no seu sonho. Tenha certeza do que você quer e mesmo que o caminho o qual você tenha traçado tenha sofrido algum desvio, lembre-se para onde você quer chegar.

Sou Kelma Zenaide, empreendedora do ramo gastronômico. Moro em Contagem, Minas Gerais.

Veja também:

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40 a 59 anos Bahia Estado Gênero Idade Indígena Mulher Cis Raça/Cor

“Nesses momentos difíceis, Tupã tem nos ajudado”

Essa pandemia tem sido de momentos muito complicados, porque aqui é uma área turística e muita gente não tem renda fixa. Tupã tem nos dado forças para resistir. A maioria de nós sobrevive de pesca, agricultura, artesanato e hotelaria. Por causa da pandemia, o turismo diminuiu muito.

Nesses momentos difíceis, Tupã tem nos ajudado

É importante ter uma ajuda para conseguir apoiar parentes e famílias da nossa comunidade. Por ser concursada, tenho meu salário todo mês. Muito ou pouco, está dando para passar essa fase em paz. Entretanto, tem aquelas pessoas que não têm de onde tirar o sustento. Por isso, eu e alguns grupos da aldeia sempre procuramos ajudar.

Momentos com o neto durante a pandemia

Nesse final da pandemia, tenho feito meus trabalhos da faculdade em casa, cuido dos meus netos e tiro uma renda extra com os matérias indígenas que eu vendo.

Dia 12 de outubro, fiz uma festinha para os meus netos aqui em casa. Amo crianças! Criei quatro netos e sempre tem mais crianças aqui em casa, sejam netos ou não. Fiz a festinha porque eu sei que toda criança quer brincar, se divertir, ganhar presente.

A festa foi pequena, só para os netos, mas, vendo a alegria deles, pensei em quantas crianças queriam um dia de diversão nesse caos que o mundo se tornou. Então estou com um planejamento de, ano que vem, abranger pelo menos cinquenta crianças. Não é muita coisa, mas só pelo prazer de fazer o dia de uma pessoa feliz, já se torna infinito.

Meu nome é Ideilde Santana Ferreira Fernandes. Na cultura é Jassanã, pois sou indígena da etnia pataxó. Sou professora na escola indígena da aldeia e também sou artesã. Parei meus estudos aos 12 anos, por conta das dificuldades que enfrentei, mas nunca desisti. Com 23 anos, já tinha quatro filhos eu voltei a estudar e me tornei professora. Estou na faculdade hoje.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Minas Gerais Mulher Cis Prta Raça/Cor

“As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção”

O fato de sermos mães não nos fazem ser super mulheres. Por isso quero dizer a você, mulher: reconheça os seus limites e não se furte em pedir ajuda! E não se culpe por isso. As super heroínas que não sentem dor nem medo só existem na ficção.

Digo isso porque percebi que o isolamento e toda essa situação de ter que ficar dentro de casa, de trazer todas as tarefas para dentro de casa culminou na falta de tempo para a minha família. Antes, logo quando fomos obrigadas a ficar dentro de casa eu acreditava que teria mais tempo com a minha família. Ledo engano.

Porque a gente já acorda no esquema: trabalho, estudo, ensino dos filhos… Então, eu acredito que a pandemia me colocou em um lugar de entender as relações e repensar a minha organização dentro dos ambientes, pois antes era tudo cronometrado.

Antes da quarentena, eu tinha uma rotina de acordar cedo, chamar as crianças, ir para o trabalho. O meu tempo era bem dividivo em dias de semana e finais de semana. Hoje isso tudo mudou.

Desafios

Acredito que o mais desafiador foi o convívio diário, de quatro pessoas dentro de um apartamento pequeno, tendo que dividir as dinâmicas. Os dias e os fins de semana, por exemplo, eram bem definidos, mas hoje não temos mais dia de semana ou fim de semana. Tornou-se tudo uma coisa só. Por isso, digo a você que lê agora o meu relato: não se desespere. Não somos super heroínas.

Porque perdemos aquela escapatória da rotina, de poder sair aos fins de semana. Agora é tudo junto, dentro de casa. Todos os dias.

Lembro de algo muito legal que ocorreu a mim e à minha família. Foi o aniversário da minha filha. Ela estava tão triste, porque não tinha ninguém no aniversário dela. Entretanto fizemos uma surpresa para ela: conseguimos reunir muita gente, familiares e amigos, de forma virtual, numa chamada de vídeo. Minha filha ficou tão feliz! Aquela lembrança da felicidade dela mesmo durante esse período tão turbulento vai ficar marcada para sempre em minha memória.

Luciana tem 43 anos e é mãe de duas meninas: Luana, de 5 anos, e Luiza de 7. A produtora cultural é moradora da periferia e ativista dos movimentos sociais e culturais negros de Belo Horizonte.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor São Paulo

“O bairro Jardim Damasceno precisa de políticas públicas”

O Jardim Damasceno é um bairro residencial situado na Zona Norte de São Paulo, pertencente ao Distrito da Brasilândia — Freguesia do Ó. É um bairro de extrema carência de políticas públicas que afeta o desenvolvimento do bairro e de seus habitantes. Essa carência se evidenciou no período da pandemia, pois muitas situações que eram invisíveis aos olhos da população local, tornaram-se visíveis com a perda de empregos. E, com a insegurança do momento de pandemia, seus casos se agravavam.

Primeiro, a falta de recursos financeiros para compra dos produtos de higiene e limpeza eram altas. No mesmo momento em que faltavam recursos até mesmo para alimentação básica, diante de todas essas observações, entra em ação o trabalho do Espaço Cultural Jd. Damasceno.

Trata-se de um galpão que foi erguido a partir de uma tragédia na época do Governo de Luiza Erundina, quando houve um desabamento em uma área de risco matando então três crianças soterradas. Diante de tamanha tragédia, houve a necessidade de erguer um galpão de emergência para abrigar as famílias destas crianças que vieram a óbito, enquanto era providenciado uma moradia adequada.

Espaço de atividades

A partir daí, o galpão ficou sendo utilizado como um espaço social, com diversas atividades como arte na rua e saraus por exemplo. Desde a construção do espaço, vem sendo travado uma luta com o poder público local e a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), pela concessão de uso do espaço ou por uma gestão compartilhada com o poder público para que a comunidade possa continuar utilizando o espaço. Entre as atividades realizadas no local estão o atendimento de reforço escolar para as crianças e adolescentes, esportes, debates com grupos de mulheres, cinema, biblioteca e horta comunitária.

Todos os trabalhos são voluntários sem nenhum investimento público. O coletivo retira do próprio bolso, recursos para quitar as contas de água e luz. Os trabalhos desenvolvidos, são as formas que encontramos para evitar o maior contato das crianças com os vícios, apontando a elas um outro “mundo possível”.

Impactos da pandemia no Jardim Damasceno

Diante da pandemia, a responsabilidade aumentou, devido à grande procura de muitas pessoas por ajuda, como alimentação, produtos de higiene e máscaras. E diante dessa necessidade, tivemos que nos reinventar. Conseguimos máquinas de costuras emprestadas e doações de tecidos para produzir às máscaras para doar a comunidade local. Além disso, formamos grupos de orientação sobre a importância da higienização da casa, do corpo e dos alimentos.

Porém, como higienizar os alimentos se não os tinham? E essa era a demanda maior. Tivemos que mobilizar amigos e ONG’s parceiras, em arrecadação de alimentos para atender a população que se encontrava desempregada. Conseguimos atender muita gente por um longo período de tempo, o mais critico da pandemia. E até hoje, ainda atendemos com cestas básicas um grupo de pessoas com deficiência e comorbidade e continuamos orientando e distribuindo máscaras a quem procura.

O que nos marcou nessa força tarefa, foi a surpresa da evidência de tantas pessoas com um índice altíssimo de vulnerabilidade social, devido a ausência de políticas públicas e ausência do Estado. A invisibilidade dessas pessoas ainda nos surpreende.

E é o que a pandemia vem fazendo, trazendo a tona essa invisibilidade. O galpão ao qual me refiro, é um espaço construído de madeirite que de tempos em tempos. Temos que trocar as folhas de madeirites porque apodrecem, já que o governo local não nos permite uma construção adequada. 

O Chamamos então de Espaço Cultural do Jardim Damasceno. Consulte nossa página no Facebook:  @EspaçoCulturalJardimDamasceno.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor Rio de Janeiro

“A invisibilidade é um lugar feito por uma sociedade capitalista e racista”

A invisibilidade não é um poder dos super heróis. A invisibilidade é o lugar que uma sociedade capitalista e racista, coloca os seus. Seu Ubirajara estava na rua do Casa Viva, quando avistou algumas pessoas com cestas básicas. Seu Ubirajara foi em casa, colocou a sua melhor roupa e foi pedir a sua cesta básica. Ele disse assim: vim buscar a minha cesta!  

Parecia uma criança que se arruma para ir a uma festa e pegar sua sacola de docinhos. Respondi: “o senhor é avô de algum aluno do projeto? Pois as cestas são distribuídas para os inscritos nesta lista.” Ele respondeu: “mas, por favor, olhe para este velho que está muito necessitado.”

Assim como seu Ubirajara, muitos outros estão dentro de casa, sem alimento, sem quem cuide, sem quem os apoie, desse modo. 

A invisibilidade é um plano concebido desde a colonização

Com a pandemia da Covid-19, acentuaram–se as desigualdades sociais do nosso país, empurrando cada vez mais seus cidadãos para as margens dos direitos e privilégios. Nesta sociedade, a invisibilidade é determinada pelo endereço, CEP, origem e cor da pele. Seguindo os paradigmas dado à essas condições, que associadas ao nível de escolaridade, idade, condição física e mental, os colocam em um lugar do esquecimento e coisificação, portanto. 

Um plano concebido desde a colonização e acirrado nesses dias de pandemia, o desprezo, distanciamento, desemprego, a fome e o adoecimento estão presente no cotidiano de muitos brasileiros. 

O invisível dos invisíveis, estão nas ruas em busca de um mínimo de dignidade para as suas vidas. A solidariedade dos guetos e favelas é que promove ainda a esperança nos corações. No final da distribuição, chamamos o Seu Ubirajara que foi feliz da vida com o alimento para a sua casa.  

Os moradores de favela são invisíveis ao sistema! Mas dentro da favela, o invisível dos invisíveis tem nome, tem endereço e é visível! 

Vítima da invisibilidade

Este relato se deu em junho de 2020 em plena pandemia. Histórias não deixavam de chegar com sofrimentos e dores do abandono e desespero. Hoje, dezembro de 2020, estou cansada ao ver que os números de infectados e de mortos beiram ao de início da pandemia do Brasil em maio. 

Chega a triste notícia da morte do seu Ubirajara. 

Como sempre sozinho,  foi descoberto pela vizinha que sentiu a falta de ver o basculante do pequeno cômodo se abrir. Triste! Seu corpo ficou inerte dois dias dentro daquele quarto quente.

As diversas manifestações dos vizinhos que lamentavam a morte do seu “Bira” e a ausência de um familiar para assinar o documento para que ele não fosse enterrado como indigente. 

Por conseguinte, foi necessário acionar com a defensoria pública para que o serviço funerário fosse autorizado entrar na favela para a remoção do corpo, porque foram diversas as razões para as negativas em atender as demandas da situação. Empecilhos para um último ato de caridade para uma vida. 

Se seu “Bira” morreu por Covid-19, não sei. Mas sei que foi vítima antes, durante e depois (se há o depois), de abandono e da invisibilidade dos nossos idosos e do nosso povo tão sofrido.  

Das mulheres que estão nas faxinas, nos meios de transportes lotados em busca do alimento para suas famílias. Dos homens desempregados e dos jovens entregadores que enfrentam o preconceito estabelecido pela sociedade cruel e nefasta, que mata nossos jovens e as nossas crianças. Impedindo uma geração de riqueza e sonhos!

Por isso, estou impactada, indignada e sofrida com uma expectativa que muito ainda vamos ver. Se o Covid 19 deixar! 

“Janelas da Conectividade”

Em dias de pandemia da Covid-19, o distanciamento e o isolamento social são determinantes para o não adoecimento. Assim mesmo, somos convidados diariamente a entrar e/ou participar de várias salas virtuais. Pois, salas coloridas, salas embranquecidas, salas floridas, salas com belos quadros ou apenas salas com belas estantes repletas de livros. 

Com novos hábitos incorporados ao cotidiano, a conectividade virtual ganhou novas funções promovendo encontros, reuniões e uma comunicação desafiadora em aprender a ouvir, esperar a sua vez de fala e de escuta. 

Salas com diversas janelas que interagem e trocam saberes, conhecimentos, afetos e sonhos. Sim! As Janelas da Conectividade, que na vida real e cotidiana da favela ainda se mantêm fechadas e ou cobertas com lonas e plásticos; abafando o ambiente e escondendo os diversos dramas das diversas formas das violências de exclusão e desigualdades sociais.

Entrega de cestas básicas na favela

Com um plástico amarelo na janela e um quarto difícil de circular, o encontrei sentado a beira da cama desiludido com tanto abandono. Quando chamamos pelo seu nome, ele não acostumado a receber visitas, ficou surpreso ao nos ver a porta de sua casa. Então, com dificuldade ele se levantou e disse: Vocês são aqueles jovens da Escola de Música? E logo esboçou um sorriso discreto, seguido de um soluço em uma voz embargada e agradecida por receber uma cesta de alimento, carinho e afeto.” 

Sim! Foi “esta a reação de alguém que em meio à tantas conectividades ainda se encontra no isolamento de sempre” – este fato nos foi relatado por jovens em momento de entrega das cestas básicas nas ruas da favela. As Janelas da Conectividade não se fecha para os jovens! Sempre ansiosos às novas descobertas, vasculham a Internet de um modo voraz em busca de novos conhecimentos, novos relacionamentos e aventuras. 

Sim, aventuras! Mas o que dizer de um jovenzinho que, em plena pandemia, adoece de modo a paralisar a sua vida? Onde a janela é o aparelho de celular que o leva as diversas memórias de uma vida que ele precisará se reabilitar? “Mas e a pandemia? Não tenho onde me tratar neste momento. O que será de mim? Sim! O que será?” 

É o que indaga o menino à sua mãe, que muito aflita vem nos contar a triste sorte do menino e que com lágrima nos olhos recebe a sua cesta de alimentos e volta para sua casa revigorada e esperançosa por dias melhores. 

Por fim, que possamos aprende nessa pandemia, em que as Janelas da Conectividade, estão para além das salas virtuais. 

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor São Paulo

“Descobri a doença da minha filha durante a pandemia”

Nesse período, minha filha de treze anos, que nunca ficou doente, começou a despertar uma febre acima de 40 graus. Logo, procurei atendimento em hospitais públicos lotados de pessoas com suspeita de Covid. Foi uma luta de dois meses, uma febre que não cedia e vários diagnósticos errados para a misteriosa doença, sendo um deles a Covid-19. 

Depois de mais um tratamento para um diagnóstico errado, ela foi encaminhada ao Centro de Especialização Infantil. Ali precisei tirar forças, não sei de onde, para enfrentar a internação da minha filha. Durante alguns dias em que ela esteve internada em uma unidade do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graac), para averiguação de câncer. Foram realizadas três biopsias e transfusão de sangue.

Ela ainda sofreu dois derrames pleural e uma pneumonia, que quase a levou de mim. Após essa batalha, finalmente chegaram ao diagnóstico correto: minha filha sofre de Lúpus, uma doença inflamatória autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos.

Hoje, ela está bem, apesar de muito inchada, devido ao tratamento da doença. Eu, enquanto mãe solo e mulher militante, me encontro muito mais forte e com muita garra para lutar contra as injustiça sociais desse país.

Militância

Sou uma mulher militante em defesa dos direitos humanos. Escolhi a educação como bandeira de luta por ter como experiência a ausência da educação, que acarreta danos na vida das pessoas que têm esse direito negado. 

É fato que ninguém esperava que fossemos viver um momento como esse em que estamos vivendo. A pandemia nos trouxe muitos desafios e um dos principais foi e está sendo nos manter vivo-as diante de todas as dificuldades, e para isso, tivemos que nos reinventar, portanto.

A princípio, enquanto movimento social, sofremos ataque por parte da prefeitura, que de uma certa forma tentou destruir o movimento de educação existente há mais de 30 anos. Foram retiradas a única ajuda de custo salarial que os educadores recebiam e a ajuda de custo dos lanches dos educandos em meio à pandemia. 

Diante disso, tivemos que travar uma luta acirrada na Câmara Municipal e no Judiciário para reverter esse ato criminoso. Por fim, ganhamos a causa na Justiça. No entanto, tudo aconteceu em um momento em que eu me sentia amedrontada. Acreditava que seria contaminada e morreria, pois o índice de contaminação e mortalidade em minha região era a mais alta e já não havia mais leitos nos hospitais.

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