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40 a 59 anos Branca Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Pernambuco Raça/Cor

“Apesar de vacinado, sinto a minha vida em risco diante das novas variantes”

para falar do momento da vacinação, é necessário voltar no tempo. Ao acompanhar manchetes diárias com o anúncio de varias mortes, sentia dor e medo. Pois, era como jogatina macabra do desgoverno em dificultar a vacina à população. Sentíamos muita insegurança. Nosso direito à vida foi desrespeitado cruelmente. Inicialmente, não sabia se seria vacinado. Então, sofri uma angustia muito forte.

Porém, chegou o dia 1º de junho e recebi minha primeira dose, o que me fez sentir fortalecido, aumentando a minha confiança. Mesmo assim, antes da insegurança do acesso à 2ª dose, a tortura mesmo reduzida perdurou até o dia 01/09/2021.

Hoje, mesmo imunizado, continuo inseguro. É que anunciam novas variantes, falam agora da Variante Mu, que apareceu na Colômbia e Equador.

Na foto, é possível ver o cartão de vacina de Ângelo Bueno com as duas doses contra a Covid-19. Imagem acompanha o relato Sinto a Minha Vida em Risco Diante das Novas Variantes, para a Memória Popular da Pandemia.

Um pouco da minha história

A região onde eu nasci fica a uma hora e meia da capital de São Paulo, a oito horas de Belo Horizonte e cinco horas do Rio de Janeiro, entre as Serras da Mantiqueira e a Serra do Mar. Se você subir, em duas horas chega ao Sul de Minas Gerais. Se você descer, em uma hora e meia, chega ao Mar. Foi ali onde nasci, no Vale do Rio Paraíba do Sul, em Jacareí – SP.

Na adolescência ingressei nas produções artísticas, jogos e poesias. Participei com Doni, um dos meus irmãos. Em algumas peças teatrais ensaiamos um som para um festival estudantil.

Com uma letra, um refrão (Cabeça, cabeça quero falar, Cabeça quero dizer o meu pensar de cabeça iê), talvez nessa ingênua frase, tenha surgido o sonho de ser escutado, clamando a metamorfose da sociedade, sonhando com a revolução popular democrática de direito.

Em 1982, me aproximo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Foi então, quando comei a me relacionar com povos indígenas e comunidades tradicionais. Por intermédio de Jussara e Alberto Capucci, fui apresentado ao regional Sul , iniciando minha inserção, passando um longo período em estágio em Xanxerê SC, Diocese de Chapecó. Nessa época, pude vivenciar aspectos da vida cotidiana na região e conviver com a representação dos agricultores rurais, cooperativas e membros do Movimento Sem Terra.

Vida de aprendizados

Conhecer Pernambuco com essas diversas vivências, urbanas, rurais, dentro dos territórios indígenas, me fez delirar e acreditar, que só por Deus mesmo, os Santos e Encantos, com todos os Orixás e a graça da Mãe Jurema, torna-se possível resistir às imposições do mundo, das oligarquias, do corporativismo das instituições de representação do estado.

Desta forma, o Nordeste me acolhia, me fazendo anestesiar dores, demonstrando novos caminhos, me permitindo reconstruir Ângelo Bueno à Babau e Outros 50.

Ainda assim, vivemos sob o regime das capitanias hereditárias. Famílias se entrelaçam no revezamento mantendo-se no poder, por isso é importante cada palmo de terra, cada fazenda retomada, modificar os mapas, revisar leituras geográficas.

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40 a 59 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Parda Raça/Cor Tocantins

“A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal”

A esperança chegava aos estados brasileiros. A vacina foi recebida com expectativa e, ao mesmo tempo, desconfiança, devido às fake news e preconceito, fruto da ignorância e do desgoverno o qual estamos submetidos. Quando os povos indígenas estavam na primeira fase da imunização, trabalhamos muito para que as mentiras não chegassem às aldeias. Mesmo assim, as estórias invadiram o território indígena, trazendo o medo para dentro das comunidades. Por fim, depois de muita luta, as lideranças aderiram à vacina. Logo, os casos começaram a diminuir.

Primeiro, eu tive que esperar um pouco para a minha faixa etária receber a dose da esperança, do amor. Meus pais foram os primeiros a receber a vacina, a alegria foi grande. Então, fico feliz em lembrar que eles conseguiram passar a pior fase da pandemia com vida.

Na foto, é possível ver Eliane Franco na parte interna do posto de saúde erguendo uma placa com os dizeres: "VIVA O SUS. Não ao negacionismo. Fora Bolsonaro! Vidas importam". Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Em maio, celebrei dois aniversários, mas ainda não tinha recebido a vacina. Agradeci a Waptokwazawre pelo dom da vida, por também ter conseguido enfrentar a pandemia com saúde. Celebrar a vida em tempos de pandemia, em que muitas pessoas morreram e foram contaminadas é, de fato, um ato de resistência.

No Conselho Indigenísta Missionário (Cimi), organização a qual faço parte, cada companheiro e companheira que recebia a vacina era motivo de alegria. Acompanhei três pessoas próximas, que receberam as doses. Ficávamos ansiosas para saber qual vacina receberíamos, fizemos até pesquisas sobre a eficácia das vacinas. Foi uma emoção acompanhar tudo isso.

A segunda dose da esperança

Finalmente, chegou a minha tão esperada vez! Tive de aguardar três dias para o agendamento. Por isso, fizemos um mapa para chegar no postinho na hora certa sem imprevistos. É que eu estava nervosa, tinha muitas outras pessoas aguardando a dose da esperança. Então, no dia 09 de julho, recebi a vacina. Fiquei muito emocionada e por dentro pensando: “essas gotinhas tão desejadas vão salvar muitas vidas”. E salvaram a minha também.

Agora, a minha segunda dose, que será disponibilizada em outubro, vai completar a imunização. A espera é longa. Enquanto isso, tomo os devidos cuidados para não pegar a Covid -19 durante esse tempo, e ficar bem até a segunda dose.

Temos que saudar o SUS! “Não ao negacionismo, e sim à ciência”, essas são frases que me marcaram nesse tempo de vacina contra a Covid-19. A esperança de ter a vida normal voltou. Mesmo com tantas propagandas falsas, aderir à vacina é também proteger a todos e todas desse vírus cruel.

Sem esperança e sem vacina: mais de 500 mil mortes

A pandemia está sendo um processo doloroso para todas as famílias brasileiras. No início, tive muito medo da Covid-19, pois pensava nos meus pais idosos, minha mãe com diabetes. Todos os dias ligava para orientar sobre os cuidados. Foram momentos terríveis, nunca imaginei que amigos e pessoas próximas morreriam por causa dessa doença. Outrossim, é desafiador ter que ficar em casa por longas semanas, meses. Senti a saudade das pessoas queridas bater à porta todos os dias.

Hospitais lotados, sem UTIs, sem médicos, oxigênio. Pessoas morrendo sem assistência. Nem os que tinham dinheiro conseguiam sobreviver. Os noticiários dos jornais assustavam, parecia que estávamos vivendo um filme de terror. Era impossível conter as lágrimas.

Para completar, ainda vivemos um desgoverno que não criou estratégias, em tempo hábil, para combater o aumento da Covid-19 no país. Foram dias de revolta por saber diariamente da morte de pessoas, por causa da incompetência de um governo negacionista, que não comprou vacina a tempo de salvar vidas.

A pandemia e os Povos Indígenas

No Cimi, tivemos de paralisar os trabalhos presenciais nas aldeias, porque a chegada do vírus nas aldeias foi desolador. A todo momento, recebíamos notícias de que muitas pessoas estavam contaminadas. Queríamos que os indígenas fossem atendidos com qualidade nos hospitais de referência, mas o que vimos foi preconceito, racismo e discriminação. Denunciamos diversas situações aos órgãos públicos.

Na foto, é possível ver Eliane Franco com três crianças indígenas. Imagem acompanha o relato "A vacina trouxe a esperança de voltar à vida normal", da Memória Popular da Pandemia.

Inicialmente, em março de 2020, tivemos que aprender a usar as ferramentas da internet para nos comunicar com os povos indígenas. E, ainda enfrentando um vírus tão perigoso, nossos trabalhos de informação e formação nas aldeias se deram através de cartilhas online, programas de rádios, encontros virtuais, folders e vídeos, orientando as lideranças sobre a ameaça da Covid-19.

Outra coisa importante que não posso deixar de falar: a situação do atendimento da saúde indígena durante o período de pandemia foi dramática, com vários problemas de estrutura nunca resolvidos pela Secretaria Espacial de Saúde Indígena (Sesai). Na pandemia, o problema se agravou.

Os povos não tinham o direito de sepultar seus mortos, os rituais fúnebres foram proibidos. Lembro da morte de duas indígenas do povo Javaé, mãe e filha que morreram no mesmo dia. A cena dos caixões sendo atravessados em duas canoas juntas para a aldeia me chocou.

As barreiras sanitárias foram criadas pelos próprios indígenas, dentro dos territórios, com o objetivo de conter o avanço do coronavírus. Tudo isso por causa da falta de apoio dos órgãos governamentais. Com o apoio do Cimi, os povos mantiveram as barreiras sanitárias nas entradas dos territórios indígenas e acredito eu que essa ação tenha salvado muitas vidas ind´´ígenas.

Concluindo, deixo aqui o meu agradecimento à Memória Popular da Pandemia, onde podemos registrar nossas escrevivências neste período tão macabro. Obrigada!

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40 a 59 anos Branca Ensino Médio Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Raça/Cor Santa Catarina

“A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel”

Estou imunizada! O dia de receber a minha vacina chegou e quero relatar a minha experiência aqui na Memória Popular da Pandemia. Recebi as 2 doses, eu e meu esposo. Para mim, a vacinação foi uma esperança, e a minha vez foi muito tranquila.

Moro no interior de Guatambu, em Santa Catarina. É um município pequeno, com população estimada em 4.692 habitantes, segundo a estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Por isso, não enfrentei fila. E, como sou hipertensa, me vacinei antes da maioria dos brasileiros.

A Unidade Básica de Saúde (UBS) onde fui vacinada fica a 3 km de minha casa. Fui sozinha de carro próprio. Chegando lá, me deparei com várias pessoas aguardando tão esperada hora. Mas não chegou a fazer fila, pois havia duas profissionais da saúde vacinando. A emoção era visível no olhar de cada pessoa que estava lá. A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel.

Em foto, é possível ver Ana Maria Brighenti de máscara e sentada em uma cadeira. Ao seu lado está uma enfermeira de pé aplicando vacina no braço. O olhar de Ana Maria está focado na aplicação da vacina. Foto acompanha o relato “A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel” da Memória Popular da Pandemia.
Eu recebendo a vacina

A enfermeira que me atendeu foi uma pessoa muito querida, atenciosa e muito profissional. Viva o SUS!

Em 28 dias recebi a segunda dose e não senti nada. Eu fui imunizada com a CoronaVac e não tive reações. Já o meu esposo recebeu a AstraZeneca e teve muita reação: calafrios, dores no corpo, dor de cabeça e náuseas. Tudo isso por dois dias. Enfim, o mais importante é que estamos imunizados. Enquanto isso, alguns familiares seguem aguardando a segunda dose.

“Tive muito medo por minha família”

No início da pandemia fiquei muito apavorada, como todo mundo ficou, pensei que não sobreviveria. Meu medo era também por meus familiares, principalmente por minha netinha que tinha acabado de nascer, estava com 4 meses. Passei muitos dias agoniada, sem dormir e chorando muito.

Em foto, é possível ver os rostos de Ana Maria Brighenti, sua filha e sua neta sorrindo alegremente. Foto acompanha o relato “A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel” da Memória Popular da Pandemia.
Na foto: eu, minha netinha e minha filha.

Faço parte do chamado grupo de risco, sou hipertensa. Minha filha também é do grupo de risco, fez bariátrica, então meu medo era maior ainda. Seguimos todos os protocolos de cuidados, mas, mesmo assim, o que eu temia aconteceu.

Em foto, é possível ver os rostos da filha, genro e neta de Ana Maria Brighenti. Ao fundo há uma praia. Foto acompanha o relato “A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel” da Memória Popular da Pandemia.
Neta, filha e genro

Minha filha e meu genro se contaminaram e minha filha estava amamentando a bebê. Isso foi em fevereiro deste ano, 1 ano após o início oficial da pandemia no Brasil. Foram duas semanas terríveis, eu longe delas sem poder ajudar, me sentindo impotente, amarrada. Ela não foi hospitalizada, porque não tinha vaga nos hospitais e uma internação só ocorreria em último caso. Graças a Deus, o pior passou, mas, até hoje, ela sofre algumas sequelas: como tristeza, desânimo, irritabilidade e cansaço.

“Minha irmã faleceu de Covid-19 antes de receber a vacina”

Em junho deste ano, a pior experiência da pandemia aconteceu na nossa família. Perdi uma irmã de 58 anos e que não tinha nenhuma comorbidade. Digo isso diante da falácia de que só morre de Covid-19 quem já sofre de alguma doença. Não teve tempo para ela receber a vacina. Foram duas semanas de internação, sendo que por 4 dias ela ficou na UTI intubada. Só quem passa sabe a dor terrível de perder uma pessoa querida sem ao menos se despedir. ?

Em foto, é possível ver a irmã de Ana Maria Brighenti abraçada com um neto. Os dois sorriem sentados em um sofá. Foto acompanha o relato “A vacina é uma esperança, uma luz no fim do túnel” da Memória Popular da Pandemia.
Minha irmã com um dos netos

Durante a minha vacinação, senti um misto de emoções: alegria por estar recebendo uma dose de esperança, de vida, mas, ao mesmo tempo, tristeza por minha irmã não ter tido tempo de ser vacinada.

O conselho que dou às pessoas que estão aptas a se vacinarem é: não percam tempo. Muitos não puderam viver esse momento.

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40 a 59 anos Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem Cis Idade Mato Grosso Parda Raça/Cor

“Precisei de ajuda para me inscrever no site para receber a vacina”

A minha vez de receber a vacina foi tranquila. Fiz a inscrição em um site de vacina mal feito. Precisei pedir ajuda, pois não entendo muito de tecnologia. Tive que mudar de mês a mês até chegar em julho de 1954. Imagina o tanto de clicada que eu tive que dar! 

Em print, é possível ver o site de vacinação contra a Covid-19 da Prefeitura de Cuiabá. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Site da Prefeitura de Cuiabá

Os meus filhos moram com a minha ex-esposa em Florianópolis. Um deles deu muita risada quando contei a minha experiência com o site de vacina. Ele ainda disse: “Pai, se a prefeitura quiser, eu arrumo esse site pra eles.” Pensando bem, até o meu casamento de 30 anos acabou devido a essa minha vida de militância…

Tomei a primeira dose no dia 16 de abril de 2021. Fui de carro próprio com uma amiga para a fila do drive thru, no Memorial Papa João Paulo II, em Cuiabá. Foi tranquilo, apesar da longa fila. No total, fiquei cerca de uma hora esperando para me vacinar. O pessoal que atendeu a gente é extremamente atencioso e paciente. São muito legais os servidores da saúde.

Sem nome no site de vacina

Já saí de lá com a data da segunda dose no meu cartão de vacinação. Ficou marcada para o dia 15 de maio. No entanto, faltando dois dias, o meu nome não aparecia no site de vacina da Prefeitura de Cuiabá. Só veio aparecer três dias depois, o que atrasou a minha segunda dose para o dia 18 de maio.

Fico imaginando como foi para as pessoas que não têm acesso à internet acessarem aquele site de vacina…

Esperei por cerca de uma hora para receber cada uma das doses da Coronavac. Na primeira, senti uma leve dor de cabeça que aparecia toda vez que eu me lembrava da vacina. A dor durou umas 30 horas, e depois passou. Já na segunda dose, não senti nada.

As vacinas demoraram muito no país inteiro. Ainda hoje, a nossa população não está imunizada. Por isso, estamos pagando um preço muito caro, com quase 600 mil mortes. Sendo que muitas delas poderiam ter sido evitadas se o país tivesse levado a sério a questão da vacinação, bem como todo o protocolo recomendado pela Organização Mundial da Saúde

Foram muitas perdas para a Covid-19

A pandemia afetou a minha família em casos de Covid-19, mas não teve óbito. Tive uma febre muito forte e dor de cabeça. No entanto, fiz uns remédios caseiros e me senti melhor. Fiz o teste para detectar o motivo na Bioenergética e deu positivo para a Covid-19. 

Em foto, é possível ver Sebastião sentado em um banco de madeira embaixo de uma árvore acompanhado de onze indígenas em aldeia. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Acompanho 8 povos indígenas no Araguaia

Foi no trabalho com os indígenas que tive muitas perdas, pois muitos dos que conheci faleceram de Covid-19. Um dia, um amigo do povo Rikbaktsa (terra Eribaktsa, do município Brasnorte) mandou mensagem dizendo que estava indo fazer o teste. Deu positivo. Então, ele veio pra Cuiabá. Não demorou muito e ele faleceu.

Outra perda foi a do cacique Matias, do povo Kayabi (terra Kayabi Abiaká, município de Juara). Foi o primeiro povo que me acolheu, em 1979, quando passei a morar em terra indígena. Sai de lá em 1985. Essa região concentra três povos. Na margem direita do Rio dos Peixes, ficam os povos Abiaká e Munduruku, e na parte esquerda, os Kayabi. 

Em foto, é possível ver o cacique Raoni apertando as mãos de Sebastião, que está de camisa vermelha. Os dois estão se cumprimentando e sorrindo. Há outras duas pessoas em segundo plano, um homem e uma mulher. No primeiro plano ao lado de Raoni, aparece parte do rosto de uma indígena de cocar azul que observa Raoni e Sebastião se cumprimentando. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.
Com o Cacique Raoni

Acompanhei a situação dos povos de perto em contato com o Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (DSEI) e com universidades e institutos federais. Conseguimos álcool, sabonetes, máscaras…

Muitas vezes, lideranças ligavam pra mim contando da tristeza que é essa doença. Porque quando ela chega, todo mundo sofre, pois todos são ameaçados. Além disso, quando um morre na aldeia, as pessoas não podem fazer os rituais sagrados. Isso causa muito sofrimento. Muitos me ligaram chorando. Confesso que eu também chorei muito.  Foi um período de muita dor, muita tristeza. 

Vida inspirada na luta

Eu fui seminarista jesuíta. Sou de uma família tradicional mineira e fui criado na roça. Desde o início, estive na linha de teologia e libertação. Mas, esse negócio de vida religiosa começou a me perturbar. Eu vivia no interior de Nova Denise, em Mato Grosso. Vim pra Cuiabá em 1977 e comecei a estudar, porque eu queria entrar na vida religiosa e pensei em ter uma experiência fora, de conhecer a cidade, antes de entrar para o Seminário. Aqui, em Cuiabá, tínhamos trabalhos sociais ligados a igrejas em bairros, na luta por resistência e moradia.

Em foto, é possível ver uma foto do rosto de Sebastião de quando ele tinha por volta de 30 anos. Ele olha fixamente para as lentes da câmera. Imagem acompanha o relato “Precisei de ajuda para me inscrever no site da prefeitura” da Memória Popular da Pandemia.

Participei da fundação do PT em Cuiabá, em 1979. Foi, então, que eu conheci o pessoal do Conselho Missionário Indigenista (Cimi). Assim, passei a fazer parte. Mas, como eu queria ser padre, no segundo semestre de 1982, fui para o Seminário no Rio Grande do Sul, na cidade de São Leopoldo. Em 1983, fui para o noviciado em Cascavel, no Paraná, onde fiquei por um ano.

Em seguida, voltei para as aldeias Tatuí do povo Kayabi, Mayrob, do povo Abiaká e Nova Esperança, do Povo Munduruku. Passei a morar em cada uma dessas aldeias durante um tempo e saí de lá em 1985. Eu procurava se havia sinais de indígenas sem contato, pois havia história de índios que ainda não tinham sido encontrados. Encontrei alguns sinais, apenas. Peguei malária por 13 vezes. Depois, em Cuiabá, em 1986, entrei na coordenação do Cimi Regional. 

Fake News

Quando chegaram as vacinas, muitas pessoas tiveram uma certa resistência, devido a um monte de fake news, em sites e redes sociais, e por conta da influência evangélica. Tem um rapaz, formado e muito meu amigo, que me ligou à noite contando que não tomou a primeira dose, porque ficou em dúvida. Ele só tomou a primeira dose quando viu pessoas sendo vacinadas com a segunda, para ter segurança. Fico abismado, surpreso, de ver uma liderança esclarecida, com formação superior, sendo do Conselho de Saúde e professor, ficar em dúvida devido às influências externas.

Ele só me contou isso porque é meu amigo, mas me disse também que 30% da população de muitas aldeias teve a mesma atitude dele, por desconfiança. A gente conversou e ele me contou que ficava em dúvida diante das fake news. As pessoas acabam confusas diante de tanta influência negativa. Essas questões são tão fortes que influenciaram uma pessoa como ele. 

Desde a pandemia, nós do Cimi não vamos às aldeias. Antes, ficávamos lá por um mês, mas depois isso mudou. Desde então, a gente tem realizado reuniões virtuais, que são as articulações dos povos da região. Daqui de casa, acompanho oito povos indígenas do Araguaia. 

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40 a 59 anos Branca Ensino Superior Incompleto Homem Cis Rio de Janeiro

“Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, o aplicativo diminuiu o valor das corridas para os motoboys”

Sou músico (batuqueiro) e há dois anos trabalho como motoboy por meio de aplicativo. Quando começou a pandemia, eu tinha acabado de pegar caxumba e, por conta disso, acabei ficando isolado por duas semanas. Durante esse isolamento, foi me consumindo a dúvida de trabalhar, ou não, por causa do medo de pegar Covid-19. Por outro lado, crescia em mim a vontade de poder contribuir com uma mobilização solidária que crescia em muitos lugares.

Resolvi ir para a rua

Nesse começo, com o grande alarde da pandemia e o fechamento praticamente total da cidade, pipocavam estórias de pessoas que ajudavam outras. Elas se mobilizavam para entregar quentinhas, máscaras e faziam compras para pessoas em isolamento. Essas pessoas tentavam, de alguma forma, ajudar outras que não trabalhavam, ou do grupo de risco.

Apesar da minha namorada, na época, me oferecer ajuda financeira para eu não precisar trabalhar, resolvi ir para a rua. Em parte porque eu queria sair para rodar e não depender financeiramente dela, e em parte porque eu queria participar dessa mobilização solidária.

Quando me senti recuperado da caxumba, coloquei um anúncio numa rede social dizendo que faria fretes grátis para ajudar pessoas que precisassem. Comecei a rodar nos aplicativos que já trabalhava antes, tentando tomar os cuidados recomendados, mas torcendo para que, caso eu pegasse esse vírus, não tivesse complicações sérias. No fim, o anúncio que coloquei me rendeu vários contatos de fretes particulares. Mas somente um ou dois fretes beneficentes.

Ruas vazias

Confesso que o que mais me marcou foi andar pelas ruas do Rio de Janeiro totalmente vazias. Não havia ônibus ou carros (um dos maiores perigos para os motoqueiros), nem transeuntes – nada. 

Em várias horas rodando, eu mal cruzava com outro motoqueiro, pois estavam todos em “pleno vapor” fazendo entregas por aí. O Rio era uma verdadeira cidade fantasma e, por isso, andar de moto era uma maravilha. Não havia sinais fechados, “mão” certa de trânsito nas ruas, calçadas ou esquinas.

Não existiam limites para andar de moto, uma liberdade para transitar que eu nunca tinha experimentado. Gostaria de ter filmado algumas tardes em que eu passava por bairros, que são normalmente cheios, totalmente vazios, sem ver uma pessoa, carro ou qualquer sinal de vida nas ruas. 

Foi estranho e maravilhoso. Eu só tinha contato com pessoas quando eu entrava em alguma porta de estabelecimento para pegar o pedido e depois no prédio, para entregá-lo. 

Aplicativo desvalorizou trabalhadores 

Outra coisa bem marcante foi a política extremamente agressiva e desumana de um aplicativo em que trabalho. Apesar de ter triplicada a demanda de pedidos, a empresa diminuiu o valor das corridas para os motoboys, que estavam de fato se expondo ao risco. O aplicativo ainda aumentou o percentual da cobrança nos pedidos dos restaurantes (que não tinham para onde fugir) de 22,5% para 27,5%, incrementando exponencialmente seus lucros.

Isso evidenciou ainda mais a desvalorização por parte das empresas, e algumas vezes também dos clientes, de quem está de frente, botando a cara. Não que isso seja uma novidade para mim, mas justamente naquele momento em que supostamente existia uma consciência e um esforço coletivo para superar a pandemia, essa política adquirira um ar particularmente nefasto.

No fim, embora não tenha feito nenhum teste, acho que provavelmente peguei Covid-19 em algum momento, porque a exposição era muito grande.

Mas não sei se por sorte de não ter contraído a doença ou por sorte dela não afetar meu organismo mais agressivamente, até hoje estou vivo e não tive nenhum sintoma.

Depois, quando já estava tudo mais ou menos aberto e a vida andava a uns 50 a 70% normal, um motoboy de um dos grupos de WhatsApp que eu faço parte morreu de Covid-19. Seu nome era Felipe e, ironicamente, era um dos poucos que se posicionavam a favor do isolamento e me dava suporte nas discussões políticas do grupo contra as imbecilidades do Bolsonaro.

Eu não o conhecia pessoalmente, mas foi marcante. Porque já naquela hora eu achava que todos que estavam se expondo como eu, provavelmente já tinham sido infectados. E, se não morreram até então, já deveriam estar imunizados. Isso colocou em dúvida a certeza que eu tinha de já estar fora de perigo.

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40 a 59 anos Bahia Escolaridade Estado Gênero Idade Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Recebemos conselhos dos orixás para silenciar os atabaques do candomblé”

O candomblé é uma religião de muita proximidade. Diferente das outras religiões que tiveram um protocolo especial para a realização de cultos, nós do candomblé não tivemos. Porque os nossos cultos são diferentes dos demais segmentos religiosos.

É que nós temos em nossas celebrações o toque dos atabaques. As três pessoas que tocam os atabaques se chamam “Ogãs”, “Alabês”. Elas precisam ficar juntas e ainda que estivessem usando máscara estariam colocando suas vidas em risco.

Por outro lado, também recebemos conselhos dos orixás para que os atabaques silenciassem. Também, nessa circunstância de pandemia, temos reverenciado o orixá Obaluaê, considerado o nosso médico. É Ele quem afasta as doenças do nosso caminho. A saudação para esse orixá é “atotô”, que significa silêncio.

E esse é um momento tão difícil, de tantas perdas. Já perdemos mais de 160 mil vidas (até novembro de 2020). São muitas pessoas retornando ao Orum.

Logo, nesse momento pandêmico não podemos entoar as nossas cantigas, tocar os nossos atabaques, mas dobramos os nossos joelhos no chão para pedir misericórdia aos nossos orixás e especialmente ao Pai Obaluaê, à Mae Nanã e ao Pai Ossaim, para que os cientistas desenvolvam logo a vacina para devolver as nossas rotinas.

Cuidado

Quando vou ao terreiro Ilê Axé Olodumare chamo três ou quatro filhas de santo, porque precisamos manter o Axé vivo. Por exemplo: precisamos colocar água nas quartinhas e dar orô, comida para os nossos orixás. Além disso, limpamos tudo, acendemos nossas velas e fazemos nossas preces e orações.

Também não somos à favor de iniciar pessoas nesse período tão delicado.

Por fim, gostaria de pedir a você que não esqueça as palavras de ordem para essa pandemia são: paciência e sabedoria. Seja qual for o seu segmento religioso, abrace ele. Faça suas orações todos os dias. Conecte-se com essa força. Até você que é agnóstico ou ateu, conecte-se a alguma coisa para se fortalecer. Covid-19 não poderá, nunca, ser maior que as energias que regem o universo.

Sou Ìyalọríṣá do Ìlè Àse Ewa Olódùmarè; Conselheira Municipal de Política Cultural de Salvador; Ocupo a cadeira de religiosa do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Nutrição da UFBA; Faço parte do Comitê de Enfrentamento à Covid-19 nas Comunidades de Religião de Matriz Africana; Sou da Rede de Mulheres de Terreiro da Bahia e ativista contra Intolerância, Racismo e Ódio Religiosos.

Veja também: “Nesses momentos difíceis, Tupã tem nos ajudado”

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25 a 39 anos Ensino Superior Completo Escolaridade Estado Gênero Idade Minas Gerais Mulher Cis Prta Raça/Cor

“Noventa por cento dos profissionais de aviação foram afastados”

Meu nome é Laiara Amorim. Trabalho no setor de aviação, como comissária de voo e sou graduanda em pilotagem de voo. A pandemia me afetou de diferentes formas em diferentes etapas. Este ano eu fui contemplada através de um programa de aceleração de lideranças negras e este programa consiste em acelerar minha formação como pilota. Por conta da pandemia, eu não pude cumprir minhas horas de voo e, com isso, não foi possível desenvolver o que estava previsto no programa. 

Afetou também o meu trabalho, porque a aviação ficou totalmente parada durante um período, pelo motivo de ser um ambiente confinado, pelo fato de ser um espaço muito pequeno e as pessoas ficarem muito próximas umas das outras. E o transporte está paralisado, as pessoas não estão viajando pelo medo da contaminação e pelas recomendações da agência se saúde. 

Com isso, a aviação foi muito afetada. Noventa por cento dos profissionais foram afastados, e, em algumas empresas, grande parte do quadro de funcionários foi demitido. Houve desligamentos de colegas, e eu mesma fiquei afastada do meu trabalho por seis meses. Estou retornando agora. Era um afastamento não remunerado, então a pessoa tinha que sair do trabalho e criar outras formas de subsistência. 

Novas oportunidades no setor de aviação

Em contrapartida, tive a oportunidade de trabalhar em uma companhia aérea executiva, que trabalhava com transporte de pessoas durante a pandemia, que poderiam ser pessoas infectadas ou não, e que na aviação a gente chamava de Aeromed, que era o transporte de vítimas em estado grave para outros estados para que pudessem ter o devido atendimento, bem como os familiares destas pessoas.

Então foi uma oportunidade que tive em decorrência desta pandemia, e que acrescentou muito em meu currículo, acrescentou em meu conhecimento, pois é uma parte da aviação que não conhecia, que é a parte médica. Então teve dois pontos. O ponto negativo foi ver a aviação comercial parar, ver amigos sendo demitidos, ter este afastamento, o que me gerou certa ansiedade, porque até então não sabia como me manter. 

O outro ponto foi ter o ensejo de trabalhar em outra companhia, aprendendo outra parte da aviação que não conhecia. A pandemia afetou fortemente o turismo, o que ocasionou também pré crescimento econômico, o comércio, os lugares, os hotéis, para os pequenos empreendedores também, que trabalham em feiras, qie vivem desse turismo. Então afetou de diversas formas. 

Máscara e álcool

O turismo movimenta o nosso país de diversas formas. Eu desejo que neste momento, as coisas vão retomando aos poucos, e quem tem que viajar, que viaje, que vão encontrar seus pares, sua família, que vão encontrar seus amores, que viajem, mas que mantenham sempre o cuidado, que usem máscaras, álcool, e que continuem se cuidando para que o virus não possa retomar essa segunda onda em outtos países nao venham nos atingir. 

E que o cenário seja o melhor possível para o turismo, pois movimentando o turismo, conseguimos movimentar todas as outras áreas se nosso país. Turismo é cultura e, para certos lugares, a gente só consegue ir de avião. Por isso, desejo essa melhora para que possamos voltar e enegrecer esse céu aí.

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40 a 59 anos Bahia Ensino Superior Completo Homem Cis Parda Prefiro não informar

“A morte de companheiros deixou a comunidade cigana sem direito ao nosso tradicional ritual de despedida”

Muita coisa foi afetada por essa pandemia. Ela veio e bagunçou a vida de muita gente, mudou a nossa sobrevivência, balançou até a fé das pessoas. Mudou o sentido das coisas! Eu senti na pele toda essa mudança, porque presenciei a primeira morte de um irmão da comunidade cigana, em decorrência da Covid-19, aqui no Ceará. Foi o Barroso, aos 63 anos, no dia dois de Junho. Depois de alguns dias foi o Solimar… 

Foto de rosto e corpo de Antônio Ferreira dos Santos, apelidado de Barroso, acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida.

Barroso morava no Sobral, morreu na Santa Casa. Já o Solimar morreu na cidade de Crateús. Na verdade, recordo que quatro ciganos, aqui no Ceará, foram parar na UTI, por causa desse vírus. Dois conseguiram sobreviver e dois não resistiram… Mas eu sei que o primeiro Cigano a falecer por Covid foi no Estado da Bahia, na cidade de Jitaúna, a 383 quilômetros de Salvador, e enterrado em Jequié. Por isso, vou falar sobre o que é para nós ciganos perder uma pessoa querida durante a pandemia. 

Não esqueço daquele dois de Junho, dia da morte do nosso companheiro Barroso. Ele foi sepultado na cidade de Maracanaú, onde a mãe e familiares haviam sido sepultados. Barroso era conhecido assim porque aqui em Fortaleza tem um bar chamado Barroso e os ciganos foram os primeiros moradores desse bairro. Ele era o nosso grande artista, cantava muito bem, tocava violão… e acima de tudo era um grande amigo. A sua morte nos abalou profundamente. E pior! O outro irmão dele também foi para a UTI. Quando Barroso foi enterrado, dois dias depois o irmão saiu da UTI. Foi um baita susto! Uma porrada pra nós. 

Sem o nosso adeus

Para nós, essa questão de isolamento durante a pandemia da Covid-19 é de um impacto muito grande, especialmente no que diz respeito à falta do funeral, porque temos rituais e homenagens em nossa tradição e não podemos realizar nada, por causa do distanciamento. Somos um povo muito itinerante e gostamos de festa.

Essa questão fúnebre nos causa forte consternação, porque o nosso ritual, quando o grupo vive em barraca, por exemplo, tiramos tudo, queimamos tudo, as mulheres cortam o cabelo e se resguardam por um bom tempo. Algumas viúvas ficam dois/três anos sem se envolver com ninguém. E todo mundo respeita.

Outra situação que evitamos é com relação a nomes iguais. Se houver mais de um Barroso ou Rogério naquela comunidade, por exemplo, e estivermos em uma roda, evitamos falar o nome do que morreu por respeito aos demais e para não voltar aquela lembrança. Somos muito sentimentais e muito família. 

A espera

Já sabíamos que não podíamos fazer o nosso ritual devido às medidas de distanciamento social nessa pandemia. Foi muito triste.

Moro aqui na Caucária, região metropolitana de Fortaleza, onde fica o escritório central do Instituto Cigano do Brasil (ICB). O Joaquim cigano é irmão do Barroso e conselheiro nacional do ICB. Encontrei com ele e a família no cemitério de Maracanaú e aguardamos o corpo vim de Sobral. De Fortaleza à cidade de Sobral dá cerca de 220 quilômetros. Foi uma tortura.

Enquanto o corpo não chegava, fomos até a administração do cemitério adiantar a papelada. É um cemitério humilde, apenas um muro corta o caminho entre até onde o carro pode passar, porque não tem como entrar carro lá. 

Cena marcada na memória

Quando o carro da funerária chegou, foi uma cena que ficou na minha cabeça. Como eu disse, o muro dividia uma fila de sepulturas. Apenas o motorista e outra pessoa pegariam o caixão e levariam até a fileira, porque os coveiros não queriam tocar no caixão. Então, eu e o irmão do Barroso nos prontificamos a carregar o caixão. Já chegara a hora do meio dia quando os coveiros pegaram a alça do caixão e nos ajudaram. As irmãs do Barroso estavam do outro lado do muro em prantos.

O momento em que o caixão era levado até a gaveta foi emocionante. A cena que ficou marcada em minha memória foi a do caimento de uma chuva bem fina, no momento em que o corpo do Barroso era deixado ali dentro daquela gaveta. Entendemos que ali se tratava de um sinal de despedida. Ao mesmo tempo, as lágrimas caindo da face de todas as irmãs do Barroso que choravam muito, dizendo adeus ao irmão… aquelas imagens ficaram na minha mente. 

Foi quando tivemos a ideia de criar o memorial das vítimas da Covid-19 do povo cigano.

Subnotificação

O nosso povo é desconfiado, não gosta de fotos, não gosta de falar. 70% do nosso povo Calon é analfabeto. Ontem, fiquei sabendo da morte de dois ciganos, um em Eunápolis e outro em Petrolina. Todos no Nordeste.

Até o momento, estou sabendo de trinta e sete ciganos mortos, mas acredito que muitos mais ciganos se foram, vitimados pela pandemia. Porque o processo é muito rápido, e, quando o cigano é internado, ele não diz que é cigano. Muitas vezes por sofrer racismo.

Quando a pessoa morre, é logo encaminhada para a funerária. Não dá tempo de fazer nada. 

Mapa de óbitos pela Covid-19 produzido pelo Instituto Cigano Brasileiro. Mapa acompanha relato de Rogério Ribeiro para a Memória Popular da Pandemia. Relato trata de subnotificação de morte na comunidade cigana e de impossibilidade de realização de ritual de despedida. No mapa, é possível ver a seguinte distribuição das mortes. Ciganos Calon: MA - 1, CE - 2, PE - 5, PI - 2, AL - 1, BA - 8, GO - 5, MG - 1, ES - 4, MT - 2. Ciganos Rom: SP - 3, MG - 1.

Aqui no Ceará, não temos a cultura do acampamento, somos 108 famílias. A maior comunidade do Ceará fica no Sobral, onde vivia o Barroso. Solicitamos à Secretaria de Saúde, pedimos também à Cruz Vermelha, para fazer a desinfecção. Pedimos à Secretaria para fazer algo, teste, isolamento. Os gestores têm que fazer alguma coisa! 

A nossa preocupação é com o genocídio cigano, porque moramos todos muito próximos.

Despreparo e desencontro de informações

Tudo isso nos abalou, porque, além da Covid-19, vêm outras doenças: a depressão, a ansiedade. Somos muito inquietos, agitados, precisamos trabalhar. As mulheres estão se sentindo presas dentro de casa, os homens não estão podendo trabalhar. No lugar da alegria, uma das características do nosso povo, pairou um ar de tristeza e inconformidade. Nessa pandemia, houve até caso de suicídio em nossa comunidade. Está tudo muito difícil para a gente.

O governo não nos preparou, há muito desencontro de informações. Um tal de usa máscara, não usa máscara. Isso acaba chegando nos acampamentos do nosso povo cigano. 

Só em setembro, oito ciganos, que eu tenha informação, morreram, desde o dia primeiro até o dia 21. Nós, do ICB, realizamos algumas ações de conscientização para a nossa população se proteger.

Fizemos uma cartilha para divulgar, solicitamos ajuda financeira, mas ninguém nos ajudou. Então enviamos a cartilha virtual, elaboramos até máscaras com a frase “fique em casa”! Enfim, é um trabalho em conjunto e feito com amor para, sobretudo, proteger o nosso povo e evitar mais mortes.

A falta de políticas específicas agravou a situação

Fizemos a nossa parte, mas o que sentimos com tudo isso é que o Governo falha em campanhas específicas.

Colocam assim: “em situação de vulnerabilidade”. Isso acaba atingindo todo mundo. É necessário fazer campanhas para o povo cigano, povo quilombola, povo de terreiro.

Estamos dentro do decreto 6.040, que trata dos povos de comunidades tradicionais, mas eles não estão nem aí pra nada! O que falta para o Governo é criar vergonha na cara e fazer políticas ESPECÍFICAS! Não adianta fazer “em situação de vulnerabilidade” porque a gente fica na chuva!

Auxílio insuficiente

Agora, com esse tal auxílio emergencial… muitos povos ciganos não receberam esse auxílio. E tem mais: esses R$600 dá pra quê? Se não morrer de fome, depressão, ansiedade, ainda tem essa pandemia! Nós temos crianças autistas, muitas pessoas com doenças genéticas, e fomos praticamente esquecidos. Não há apoio. Somos atingidos por todas essas situações e com a Covid-19 os problemas só aumentaram.

A gente sempre pede acompanhamento médico, cestas básicas, testes para a Covid-19. Mas é tudo iniciativa do Instituto Cigano do Brasil. Precisamos acionar o Ministério Público (MP) para conseguir tratamento médico para nossos irmãos e irmãs que testaram positivo para a Covid-19. O povo cigano precisa de apoio. Porque tudo isso, sem contar o racismo que o nosso povo ainda sofre. 

Sou Rogério Ribeiro, cigano da etnia Calon. Nós, ciganos, estamos divididos em três grupos: Calón, Rom e Sinti. Há ainda seus subgrupos. Já estamos aqui nesta caminhada em terras brasileiras há 446 anos.  Sou presidente do Instituto Cigano do Brasil (ICB), que atua em 15 Estados, incluindo todos do Nordeste. Temos representação em Portugal, na Bélgica e na Grécia. O ICB foi pensado para atender todo o grupo cigano; temos menos de dois anos, mas muitos serviços prestados. 

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25 a 39 anos Bahia Ensino Superior Incompleto Escolaridade Estado Gênero Homem trans Idade Prta Raça/Cor

“Foi expulsa de casa por ser uma pessoa vivendo com HIV”

Apresento a vocês, Robnete, pessoa vivendo com HIV e em situação de rua há mais de 20 anos. Uma sujeita alegre, humana, espontânea e de identidade indefinida, como a mesma costuma / costumava afirmar!

Um dia Robson, outro dia Robnete, a boa, como ela mesma costumava dizer. Nós sempre tratamos Robnete no feminino por perceber que era a forma como ela gostava de ser chamada.

Robnete, pessoa vivendo com HIV e em situação de rua há mais de 20 anos. Foto: Casa Aurora.

Robnete, com 40 anos ou um pouco mais, saiu de casa, ou melhor, foi expulsa de casa por ser uma pessoa vivendo com HIV. Na época do resultado, seus progenitores a colocaram para fora por achar que era algo contagioso só em dividir um talher.

Falta de acesso? Preconceito? Um pouco dos dois? Não sabemos ao certo, só que Rob era tão incrível… onde chegava brilhava. Sobrevivia de reciclagem, tomava umas para aquecer o corpo e ia sempre na Casa Aurora buscar leite e açúcar, dizia que era pra ficar forte para aguentar os anti retrovirais.

Acessos negados

Na pandemia, Robnete conseguiu o auxílio emergencial e alugou uma casinha, vinha de 15 em 15 dias nos dar notícias de vida, buscar comida e o que mais precisasse.

A ela foi negado o direito à moradia, à alimentação e outros direitos básicos. Tinha vergonha de andar suja, mas o coração estava sempre limpo e a alma transbordando alegrias. Como pode, não ter acesso algum e ter sempre um sorriso no rosto?

Na pandemia, Rob apareceu umas 4 vezes, tinha máscaras, mas como sobreviver na pandemia, estando em vulnerabilidade? Hoje, a esperança é que Robnete esteja viva, mas não sabemos do seu paradeiro há pouco mais de 5 meses. Então, perguntamos: a quem é permitido a vida, os acessos e a identidade? Por isso, a nossa principal questão é: em meio a pandemia, onde está Robnete?

Enfim, seguimos desejando que ela esteja viva e volte para nos dar sinal de vida, sorrindo e pedindo leite e açúcar para se manter forte. De uma coisa temos a certeza, para nós, Rob é uma pessoa de identidade, de alegria e sempre viva!

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“Para mim foi muito complicado manter o delivery”

Tive que readaptar meu negócio para o ramo de delivery, devido à necessidade de manter as despesas da empresa. No entanto, entendi que, ao contrário do que se diz da necessidade de transformação, nem sempre a gente vai se adaptar ou o negócio vai dar certo.

Antes da pandemia, oferecia serviços de gastronomia em praças públicas, trabalhava com serviços de catering para camarins, shows e eventos corporativos. Mas com a chegada do coronavírus, tudo isso foi modificado.

A pandemia me fez repensar outras formas de atuação, então dentro da gastronomia afro-brasileira. Então, passei a oferecer serviços de delivery. Mas no meu caso, por exemplo, foi muito complicado manter o delivery. Passou de uma questão financeira a uma questão pessoal e até mesmo de conseguir estar feliz com a minha atuação. Então, em um dado momento decidi não mais continuar com o delivery. Daí começaram a aparecer outras propostas de trabalhos corporativos, os quais têm me mantido hoje em dia.

Aprendizados

O lado transformador foi a possibilidade de poder transitar em outros meios. Porque quando se escreve um projeto para criar uma startup delimitamos um poucos os nichos e dentro do que eu tinha como projeto do ramo gastronômico não tinha delivery. Mas ao mesmo tempo percebi que minha proposta inicial era a que me fazia feliz e a empresa avançar.

Percebi mudanças pessoais também. Hoje vejo que nem tudo está sob controle. Enquanto mulher negra empreendedora percebo que é muito importanto pensar nos obstáculos, nas necessidades de transformação e acreditar na minha certeza, no meu sonho. Hoje creio muito mais em minha capacidade e naquilo que sempre escolhi para ter como ofício.

Aprendi também que nem tudo está sob controle. Especialmente para nós empreendedores. Saber que a qualquer momento uma transformação pode haver é um importante aprendizado. Dessa vez foi a pandemia. Nós, empreendedoras, estamos susceptíveis a mudanças.

Conselho à você, empreendedora

Esteja ancorada de alguma forma. Fique por dentro do que está acontecendo em seu mercado. Qualifique-se para quando acontecer algo imprevisível você possa ter, pelo menos, o mínimo de possibilidade de se manter. É importante ter um suporte financeiro, uma economia preparada para um momento de eventualidades. E nunca deixe de acreditar no seu sonho. Tenha certeza do que você quer e mesmo que o caminho o qual você tenha traçado tenha sofrido algum desvio, lembre-se para onde você quer chegar.

Sou Kelma Zenaide, empreendedora do ramo gastronômico. Moro em Contagem, Minas Gerais.

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